Dialogando sobre a Lei Maria da Penha

12/05/2020 às 19:25
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Sem a intenção de esgotar o presente tema é apresentado como mecanismo de estudo e conhecimento, apresentando seu histórico, passatempos e atual momento da lei conhecida como "Maria da Penha".

A violência contra as mulheres

Iniciando o nosso diálogo sobre a Lei Maria da Penha, vamos conhecer, como atos abusivos contra as mulheres, naturalizados no espaço da família como algo sem importância e de interesse privado, passaram a ser reconhecidos como formas de violação de direitos humanos. Além disso, vamos refletir sobre a construção do conceito de violência contra a mulher, no âmbito dos estudos teóricos e empíricos brasileiros.

Ao final deste diálogo, você leitor será capaz de:

  • identificar a importância e o lugar das mulheres conferidos pelas diversas legislações nacionais, desde a época do Brasil Colônia, até os dias atuais;
  • correlacionar o status das mulheres conferido pela legislação e o combate à violência contra as mulheres;
  • reconhecer a diferença entre a lei e sua interpretação, em relação à violência contra as mulheres;
  • contextualizar crime passional e legítima defesa da honra;
  • identificar os documentos internacionais de direitos humanos que tratam da violência contra as mulheres;
  • compreender o processo de demandas apresentadas pelos indivíduos perante o sistema de proteção internacional de direitos humanos;
  • listar os direitos assegurados às mulheres pela Convenção de Belém do Pará e as obrigações do Estado, decorrentes dessa Convenção;
  • conhecer como o conceito de violência contra a mulher foi construído no Brasil;
  • identificar as formas de violência que atingem as mulheres;
  • listar algumas formas de violência contra a mulher;
  • compreender as principais nuances dos conceitos de violência contra a mulher no sistema de proteção internacional de direitos humanos e na Lei Maria da Penha.

 

Para início de conversa...

"No dia que for possível à mulher amar em sua força e não em sua fraqueza, não para fugir de si mesma, mas para se encontrar, não para se renunciar, mas para se afirmar, nesse dia o amor tornar-se-á para ela, como para o homem, fonte de vida e não perigo mortal".BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo Vol 2: A Experiência Vivida, Difusão Europeia do Livro, 1967.

 

Mulheres, violência e a legislação brasileira

A violência contra as mulheres nem sempre foi compreendida como violência, ou seja, um fenômeno social grave e complexo que atinge meninas e mulheres, em todo o mundo, de diferentes culturas, idade, classe social, raça e etnia e que gera efeitos negativos não só para a saúde física e mental das mulheres, mas para toda a sociedade. Nesse momento, perpassando a legislação brasileira, desde as primeiras normativas portuguesas do período colonial até a Lei Maria da Penha, vamos conhecer o processo pelo qual os abusos e maus-tratos contra as mulheres passaram a ser reconhecidos como violação de direitos humanos das mulheres.

Para iniciar nosso diálogo, convido você a conhecer um trecho do vídeo Mulheres em Movimento, que conta um pouco da história de formação de nossa sociedade e do papel reservado às mulheres nesse processo. Logicamente o presente artigo não conta com a funcionalidade do mecanismo de vídeo, razão pela qual subscrevo, a seguir, trechos importantes do filme, veja-se:

“(...) Por quatro séculos a sociedade patriarcal baseada no latifúndio e na escravidão reservou para as mulheres um lugar quase invisível. Na casa grande, assim as mulheres entediadas descansavam dos partos frequentes sob a permanente tutela de pais e maridos. Sem vida própria, eram mantidas na ignorância, e a única função social exercida era a maternidade. Enquanto que, na senzala, as mulheres negras eram mantidas como podiam cujo objetivo era impedir a reprodução do sistema escravista (...). Assim, mulheres negras seguiam cortando seus corpos, abortando, justamente no intuito de não permitir a continuidade daquele sistema de escravidão (...). Uma das estratégias utilizada pelas mulheres daquela época foi a educação, onde resultou na primeira escola para mulheres, no Rio de Janeiro, em 1838, ensinando, por 17 anos, línguas e história, matéria banidas no universo feminino de seu tempo”

“Enquanto pelo velho e novo mundo ressoava o brado ‘emancipação da mulher’, nossa débil voz se levanta na capital do Império de Santa Cruz clamando ‘educai as mulheres’.”.

“Nísia Floresta, educadora daquela época, escreve para jornais e, aos 22 anos, pública seu primeiro livro intitulado ‘Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens’, cuja importante passagem assim é descrita – se os homens fossem obrigados a declarar o que sentem a respeito do nosso sexo, diria que somos próprias para procriar e nutrir os filhos, reger a casa, servir, aprazer e obedecê-los.”

A partir daí, as mulheres passam a lutar por direitos tais como educação e informação. Naquela época, poucas eram as mulheres que tinham acesso à leitura, e foi naquele tempo que passaram-se a publicizar seu poder de pensamento através de textos em jornais.

Naquele período, ideias luminosas de Josefina Alvarez de Azevedo, em comédia intitulada como “o voto feminino”, tratou de apresentar um quadro da vida doméstica da mulher, no qual o intuito residia na discussão do direito de voto das mulheres. Além do direito de voto, o trabalho tratou também da liberdade e dos direito iguais.

Nesse ínterim, percebe-se que, além dos padrões discriminatórios ao longo do tempo, a história nos dá conta da existência da violência contra as mulheres desde a época do Brasil Colônia.

Curiosamente, pesquisas realizadas em processos de divórcio na época do Brasil Colônia indicam que as mulheres não eram passivas em relação aos maus-tratos. Eram elas que, muitas vezes, abriam processo de divórcio ou separação de corpos no tribunal eclesiástico (Del Priore, 2013).

Importa destacar o racismo que imperava na sociedade colonial e imprimia contornos mais severos à violência contra as mulheres negras, conforme pontua Del Priore (2013, p.24): "Temperadas por violência real ou simbólica as relações eram vincadas por maus-tratos de todo tipo, como se veem nos processos de divórcio. Acrescente-se à rudeza atribuída aos homens o tradicional racismo, que campeou por toda parte: estudos comprovam que os gestos mais diretos e a linguagem mais chula eram reservados a negras escravas e forras ou mulatas; às brancas se direcionavam galanteios e palavras amorosas. Os convites diretos para fornicação eram feitos predominantemente às negras e pardas, fossem escravas ou forras. Afinal, a misoginia – ódio das mulheres – racista da sociedade colonial as classificava como fáceis, alvos naturais de investidas sexuais, com quem se podiam ir direto ao assunto sem causar melindres".

A violência contra as mulheres, em razão do gênero, geralmente está correlacionada a outros marcadores de desigualdade como raça e etnia, geração (idade), classe social, orientação sexual, entre outros.

Atlas da Violência 2019 indica que houve um crescimento dos homicídios femininos no Brasil em 2017, com cerca de 13 assassinatos por dia. Ao todo, 4.936 mulheres foram mortas, o maior número registrado desde 2007.

Questão que tem chamado muita atenção nos últimos anos diz respeito à percepção de ter havido crescimento nos casos de feminicídios no país.

O ponto principal é que não se sabe ao certo se o aumento dos registros de feminicídios pelas polícias reflete efetivamente aumento no número de casos, ou diminuição da subnotificação, uma vez que a Lei do Feminicídio (Lei no 13.104, de 09/03/2015) é relativamente nova, de modo que pode haver processo de aprendizado em curso pelas autoridades judiciárias.

Se os registros de feminicídio das Polícias podem embutir alguma subnotificação, em função da não imputação do agravante de feminicídio ao crime de homicídio, por outro lado, a análise dos dados agregados da saúde não permite uma elucidação da questão, uma vez que a classificação internacional de doenças (CID), utilizada pelo Ministério da Saúde, não lida com questões de tipificação legal e muito menos com a motivação que gerou a agressão.

Segundo Del Priore (2013, p. 6), “não importa a forma como as culturas se organizaram”a diferença entre masculino e feminino sempre foi hierarquizadaNo Brasil Colônia, o patriarcalismo brasileiro conferia aos homens uma posição hierárquica superior às mulheres, de domínio e poder, sob o qual os “castigos” e até o assassinato de mulheres, pelos seus maridos, eram autorizados pela legislação.

Importante lembrar que a legislação portuguesa trazida para o Brasil era constituída pelas Ordenações Filipinas, composta por leis compiladas em Livros por ordem de D. Felipe I, e vigorou no país até a publicação do antigo Código Civil, em 1916. Pelas Ordenações, a mulher era tida por incapaz para praticar atos da vida civil devido à sua fraqueza de entendimento. Se fosse casada, a incapacidade era suprida pelo marido, seu representante legal.

As mulheres estavam sujeitas ao poder disciplinar do pai ou marido, assim, constava da parte criminal das Ordenações Filipinas que eram isentos de pena aqueles que ferissem as mulheres com pau ou pedra, bem como aqueles que castigassem suas mulheres, desde que moderadamente (Livro V, Título 36, § 1º). Os homens tinham também o direito de matar suas mulheres quando encontradas em adultério, sendo desnecessária prova austera; bastava que houvesse rumores públicos (RODRIGUES, 2003).

Após quase 350 anos de vigência das Ordenações Filipinas no Brasil, o Código Criminal de 1830 afasta parte dessas normas, entre as quais, aquelas que autorizam os castigos e a morte de mulheres, por adultério, seguindo tendência de substituição da vingança privada pela mediação do Estado (CORREIA, 1981). Contudo, o Código Criminal de 1830, refletindo os costumes da sociedade patriarcal brasileira dessa época, tratou desigualmente homens e mulheres quando tipificou o adultério com pena de prisão para ambos os cônjuges, não obstante a primeira Constituição brasileira de 1824, instituir a igualdade formal “para todos”.

Pelo Código Criminal de 1830, o adultério cometido pela mulher casada seria crime em qualquer circunstância. No entanto, para o homem casado, apenas constituiria crime se o relacionamento adulterino fosse estável e público. Segundo juristas do Brasil Império, era patente o caráter de maior gravidade e maior reprovabilidade da conduta da mulher, quando se tratava de adultério, tanto na esfera penal quanto na cível.

O modelo de família patriarcal que legitima o homem como chefe de família, delega poder disciplinar sobre os filhos e a mulher, persiste no século XIX, na época do Brasil Império e se estende para meados do século XX.

Curiosidade: Para se ter uma ideia da força do modelo de família dessa época, Rodrigues (2003, p. 72) conta que, na consolidação das leis civis, realizada por Teixeira de Freitas - destacado jurista do Império, havia um artigo que permitia ao marido requerer diligências policiais, caso fosse necessário obrigar a mulher a coabitar, dando garantias ao poder marital.

Esse trabalho não resultou em Código e o artigo não foi adiante. No entanto, anos mais tarde, na contramão do avanço dos direitos das mulheres, o Código Civil, de 1916, garantiu a continuidade da hierarquização na família, instituindo o pátrio poder e a incapacidade da mulher casada, enquanto subsistisse o casamento. O marido era o chefe da sociedade conjugal e a ele eram conferidos os poderes para a representação legal dos membros da família - inclusive da esposa, a administração dos bens, fixação de domicilio, autorização para o trabalho da mulher, entre outros.

Cabe ressaltar, ainda, que sob a vigência do Código Penal de 1890 e, posteriormente, do Código Penal de 1940, duas figuras jurídicas foram criadas pela defesa dos uxoricidas, assim chamados os noivos, namorados, maridos e amantes acusados de matar suas companheiras. Trata-se dos “crimes de paixão” ou crimes passionais e da legítima defesa da honra, que ganharam força e foram largamente popularizados pela retórica da defesa dos uxoricidas, a incorporação dos argumentos pelos juízes e promotores e a divulgação dos julgamentos pela mídia da época.

Para refletir: Você já ouviu falar em crime passional? Pode ser motivado por amor? Paixão? Poder sobre o outro? Reflita!

Código Penal de 1890, previu, no campo da responsabilidade criminal, que não serão tidos por criminosos aqueles que estivessem em estado de completa privação de sentido e de inteligência no ato de cometer o crime. Os defensores dos uxoricidas se valeram dessa previsão para defender que os assassinos das mulheres estavam em completa privação de sentido no ato do crime (CORREIA, 1981).

No Livro "Crimes da Paixão", Mariza Correia (1981) conta em detalhes o papel desempenhado por dois grandes juristas, Evaristo de Moraes, advogado, e Roberto Lyra, promotor de justiça, nos julgamentos de crimes considerados passionais. O primeiro, advogado dos uxoricidas, se apoiava nas teses da Psicologia e na definição de Enrico Ferri, da escola de direito italiana, segundo a qual o crime passional era “provocado por uma paixão eminentemente social”, produzida pela ofensa à honra e à dignidade familiar. Por sua vez, o promotor de justiça Roberto Lyra, mais tarde, na década de 1930, vai rebater esses argumentos e inverter essa ênfase. Com base nos mesmos argumentos de Ferri, ele defendia que os acusados, em verdade, eram profundamente antissociais. Além disso, questionava e ridicularizava o fato de que as tentativas de suicídio dos acusados, característica essencial do passional por Ferri, eram quase sempre frustradas.

Tamanho foi o embate travado pelos juristas contra a “porta aberta” no Código Penal de 1890 para os crimes passionais, cujas vítimas eram, majoritariamente, as mulheres, que o Código de 1940 consignou em seu artigo 28 que a emoção ou a paixão não excluem a responsabilidade penal. Isso, entretanto, não impediu que, sob a vigência do Código de 1940, mas à margem dele, pois jamais houvera essa previsão legal, nova tese fosse construída para justificar a absolvição daqueles que matavam suas parceiras íntimas - a figura da legítima defesa da honra. Conforme esclarece Correia (1981, p. 61): O período romântico acabara e, lançado o novo argumento, a absolvição tornar-se á um pouco mais complicada, parecendo passar a ser, de fato, privilégio de poucos, já que será preciso “demonstrar” não só a infidelidade da companheira, mas também a honorabilidade de seu assassino. A dupla definição desta honorabilidade, através do trabalho, do valor social do homem e da necessária fidelidade de sua companheira, passa a estar ligada de forma permanente na argumentação da legitima defesa da honra.

A legítima defesa da honra, durante um longo período, era acolhida pela justiça para absolver acusados de matar as mulheres. Apenas em 1991, essa figura jurídica foi definitivamente afastada por decisão do Superior Tribunal de Justiça, sob o argumento de que a “honra” é atributo pessoal e, no caso, a honra ferida é a da mulher, quem cometeu a conduta tida por reprovável (traição), e não a do marido ou companheiro que poderia ter recorrido à esfera civil da separação ou divórcio (Recurso Especial 1.517, 11.03.1991). Segundo Enunciado no. 26 (008/2015), da Comissão Permanente de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (COPEVID) "Argumentos relacionados à defesa da honra em contexto de violência de gênero afrontam o princípio da dignidade da pessoa humana, o disposto no art. 226§ 8º, da Constituição Federal e o disposto na Convenção CEDAW da ONU e na Convenção de Belém do Pará".

Todas as justificativas, tanto para o tratamento desigual no campo do direito penal quanto no direito civil, vão sendo desconstruídas ao longo dos anos, a partir das “resistências” das mulheres às diversas práticas de opressão e abusos e, mais recentemente, da segunda metade do século XX para cá, aos movimentos de mulheres e feministas que incorporam em suas pautas a violência doméstica e o direito de as mulheres viverem sem violência onde quer que estejam, na família, nas ruas, no trabalho, nas escolas, etc.

Assim, até então, os maus-tratos e "castigos" infligidos às mulheres não eram entendidos como forma de violência. Esses atos passam a ser nomeados de violência no final da década de 1970, a partir da indignação do movimento de mulheres e feministas contra a absolvição dos maridos ou companheiros que assassinavam as mulheres, sob a justificativa da legítima defesa da honra.

Continuando o nosso percurso pela legislação brasileira, cabe aqui considerar que uma das estratégias eleitas pelos movimentos de mulheres foi o campo das reformas legais. Nesse sentido, no que tange ao campo penal, gradativamente, leis discriminatórias foram sendo alteradas ou excluídas do ordenamento jurídico, como é exemplo o crime de adultério, inscrito em todos os códigos penais brasileiros e somente afastado, definitivamente, muito recentemente, pela Lei 11.106, de 2005.

No campo cível, em especial no Direito de Família, cabe registrar o trabalho pioneiro das advogadas Romy Martins Medeiros da Fonseca e Orminda Ribeiro Bastos do Conselho Nacional de Mulheres do Brasil (CNMB), que elaboraram texto preliminar do Estatuto da Mulher Casada, questionando a hierarquização e o papel de subalternidade da mulher na família, o que foi conseguido em parte, pois a Lei nº 4.121, de 1962, suprimiu a incapacidade relativa da mulher casada e elevou a condição da mulher na família à colaboradora do homem.

Pela Lei do Divórcio, Lei no. 6.515, de 1977, galgou-se mais um degrau na busca da igualdade entre homens e mulheres. Essa Lei previu o dever de manutenção dos filhos por ambos os cônjuges, na proporção de seus recursos, e abriu nova possibilidade de separação, o que refletiu positivamente para as mulheres em situação de violência.

Constituição Federal de 1988 é o grande marco para os direitos das mulheres, contribuindo, para tanto, os movimentos de mulheres, conhecidos no período constituinte como o Lobby do Batom.

Dentre diversas demandas dos movimentos de mulheres incorporadas ao texto constitucional, cabe destacar os dispositivos que tratam do princípio da igualdade entre homens e mulheres em todos os campos da vida social (art. 5º, I), inclusive na sociedade conjugal (art. 226, § 5º) e, também, a inclusão do art. 226§ 8º, por meio do qual “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.

A inserção desse artigo atribui ao Estado a obrigação de intervir nas relações familiares para coibir a violência intrafamiliar, bem como de prestar assistência às pessoas envolvidas. Contudo, houve reações contrárias a essa iniciativa do movimento de mulheres, sob o argumento de que as mulheres “gostam de apanhar” (PIMENTEL, 2003).

Código Penal de 1940 estabelecia como circunstância agravante o agente ter cometido o crime prevalecendo-se das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, mas ignorava-se aplicação aos casos de violência contra as mulheres. Atualmente, o Código ainda abriga essa circunstância agravante acrescida da norma específica, da Lei Maria da Penha, quando o crime for cometido contra as mulheres nas relações doméstico-familiares e afetivas.

Em 1995, foi publicada a Lei nº 9.099, que instituiu os Juizados Especiais Criminais para julgar as infrações de menor potencial ofensivo. No entanto, a aplicação dessa Lei aos casos de violência doméstica contra as mulheres, desde logo, se revelou incompatível com as especificidades da violência cometida contra as mulheres e voltava no tempo em que a prática era tolerada e a impunidade era a tônica nesses casos. Convém explicitar, desde logo, que essa Lei não foi criada para os casos de violência nas relações domésticas e familiares contra a mulher, mas atendeu ao chamado constitucional do art. 98 que estabeleceu a criação de juizados especiais criminais, para o julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo.

Você deve estar se perguntando.. então, como essa lei passou a reger os casos de violência contra as mulheres?

Essa discussão vai estar presente ao longo do nosso diálogo, mas, de imediato, podemos adiantar que por um critério objetivo, definiu-se que as infrações de menor potencial ofensivo seriam aquelas com pena fixada na lei, até um ano, posteriormente alterada para dois anos, cumulada ou não com multa. Ora, a maioria das “queixas” de violência, relatadas pelas mulheres, referiam-se a delitos que se enquadravam nessa definição legal (lesão corporal, ameaça, injúria, difamação, vias de fato), e, por essa razão, desaguavam nos Juizados Especiais Criminais. Os casos de violência doméstica contra as mulheres eram submetidos aos mesmos procedimentos dos demais, como se fossem iguais a qualquer outro tipo de delito.

O resultado da aplicação da Lei nº 9.099/95 a esses casos, culminando em pagamento de cestas básicas ou prestação de serviço comunitário, banalizava a violência e colocava em maior risco a segurança das mulheres em situação de violência. Essa constatação levou o movimento de mulheres a propor a criação de uma lei específica, com foco na proteção às mulheres em situação de violência.

No campo da saúde, importante passo foi dado na visibilização da violência contra a mulher, mediante a instituição da notificação compulsória, de caráter sigiloso, pelos serviços de saúde públicos e privados. A Lei nº 10.778, de 2003, definiu violência contra a mulher como qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, inclusive decorrente de discriminação ou desigualdade étnica, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público quanto no privado. Assim, em conformidade com a Convenção de Belém do Pará, essa lei incorporou à legislação brasileira o conceito da violência contra a mulher como violência de gênero.

Posteriormente, alterações foram realizadas no crime de lesão corporal pela Lei no. 10.886, de 2004, criando o tipo especial de “Violência Doméstica”, quando a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. No entanto, as alterações anteriores à Lei Maria da Penha, na esfera penal, foram pontuais, em geral, na questão da majoração da pena, e não produziram o efeito esperado tanto na responsabilização dos autores quanto na prevenção e assistência às mulheres em situação de violência.

Assim, no que tange à temática da violência contra as mulheres, muitos anos depois da inclusão do artigo que trata da violência nas relações familiares, no texto constitucional de 1988, surgem leis específicas contra a violência que atinge as mulheres pelo fato de serem mulheres: a Lei Maria da Penha (nº 11.340, de 2006) e a Lei do Feminicídio (nº 13.104, de 2015).

Somam-se à legislação brasileira os documentos internacionais de direitos humanos, incorporados ao nosso sistema normativo.

Mulheres, violência e a legislação internacional de direitos humanos

De início, vamos fazer um percurso pelas normativas internacionais de direitos humanos no sistema de proteção global, da Organização das Nações Unidas (ONU) e do sistema regional da Organização dos Estados Americanos (OEA) e verificar como a violência contra as mulheres passou a ser considerada uma violação de Direitos Humanos, integrando o rol de garantias do sistema de proteção desses organismos internacionais.

Quando ouvimos falar em “Direitos Humanos”, é comum fazer uma associação de imediato à Organização das Nações Unidas (ONU), mas, em se tratando de violência contra as mulheres, é também essencial conhecer o papel da Organização dos Estados Americanos (OEA) nessa questão. Foi no contexto internacional da OEA que surgiu a Convenção Interamericana para Prevenir e Erradicar a Violência contra a Mulher – denominada Convenção de Belém do Pará, e onde Maria da Penha Fernandes denunciou o Brasil por negligência, em razão da morosidade no julgamento de seu ex-marido que, por três vezes, tentou assassiná-la.

Curiosidade: Maria da Penha Maia Fernandes é uma farmacêutica brasileira que lutou para que seu agressor viesse a ser condenado. Maria da Penha tem três filhas e hoje é líder de movimentos de defesa dos direitos das mulheres, vítima emblemática da violência doméstica.

Para que possamos compreender a temática, vale saber que o Direito Internacional tem por fundamento a proteção dos interesses dos Estados, mas, após a Primeira Guerra Mundial, passa a incorporar os direitos sociais relativos ao trabalho e é criada a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919. Essa medida, tomada em prol dos trabalhadores que retornavam da guerra, é considerada um embrião da proteção internacional dos direitos humanos. No entanto, somente após a constatação dos horrores provocados pela Segunda Guerra Mundial e a incapacidade de os Estados garantirem aos seus cidadãos um dos direitos mais básicos de todo ser humano, o direto à vida, o sistema de proteção passa a incorporar em seus Tratados e Convenções os interesses dos cidadãos (PIOVESAN, 2009).

Atenção: Para a garantia dos direitos a todos os seres humanos, o sistema de proteção internacional de direitos humanos ao longo do tempo adota diversos documentos tais como Pactos, Protocolos, declarações, Planos de Ação, Tratados e Convenções. Aqui vamos nos reportar especialmente às Convenções, tendo em vista a adoção desse modelo de proteção na especificidade da violência contra as mulheres.

Nesse cenário histórico, surge a Organização das Nações Unidas (ONU) e os seus primeiros documentos protetivos, que são: Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966); Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); e Convenção para Eliminação de Todas as formas de discriminação contra a Mulher (1979).

Aos poucos, o sistema de proteção se amplia, incorporando mecanismos de denúncia por violação do Estado ou particulares contra as garantias estabelecidas nos atos internacionais de diretos humanos, cujo sistema de proteção é norteado pelos princípios da dignidade humana e indivisibilidade dos direitos.

A incorporação dos Atos Internacionais ao ordenamento jurídico brasileiro segue os ritos definidos pela Constituição Federal. Após, passa a se tornar norma de cumprimento obrigatório, gerando para a cidadã ou cidadão direito de recorrer às instâncias internacionais de direitos humanos contra o Estado brasileiro, por ação ou omissão do próprio Estado ou de particulares.

Em relação à violência contra as mulheres, duas Convenções ganham destaque: A Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW - sigla da Convenção em inglês), adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1979 e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará, adotada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1994 e ratificada pelo Brasil em 1995.

Curiosidade: A CEDAW, embora adotada em 1979 pela Assembleia Geral da ONU, somente entrou em vigor em 1981, quando alcançou o número mínimo de 20 (vinte) ratificações. O Brasil ratificou essa Convencao em 1984, mas com reservas. A declaração de “reserva” significa, em linhas gerais, que a Convenção não será integralmente aplicada. O Brasil fez reservas a essa Convenção, no que tange à obrigação de eliminar a discriminação no casamento e na família, as quais só foram suprimidas em 1994. Afinal, quando foram apostas reservas, ainda remanesciam vigentes normas discriminatórias contra as mulheres, especialmente no Código Civil de 1916, no capítulo da Família. Na atualidade, mais de 200 países ratificaram essa Convenção.

Para compreender a relevância desses documentos na questão da violência contra as mulheres, é importante trazer a origem dessas Convenções no sistema de proteção internacional de direitos humanos, sob o aspecto da iniciativa e também dos objetivos de transformação social da desigualdade entre homens e mulheres.

O primeiro aspecto a se levar em conta é que, sendo essas Convenções específicas na garantia dos direitos de igualdade às mulheres, elas não surgem “naturalmente” no sistema de proteção internacional de direitos humanos. São impulsionadas pelos movimentos de mulheres que levaram para a pauta de discussões dos organismos internacionais os mais diversos tipos de violação aos direitos das mulheres, entre eles a violência.

Os primeiros documentos internacionais de direitos humanos adotando o paradigma do sujeito universal “homem”, bem como a família como entidade inviolável (art. 12) não contemplaram a violência contra as mulheres no espaço público, privado e nas relações familiares. Assim, quando a ONU declarou o ano de 1975 como o Ano Internacional da Mulher, os movimentos de mulheres passaram a reivindicar uma Convenção específica com objetivo de obrigar os Estados-Parte a tomar todas as medidas necessárias para a promoção da igualdade entre homens e mulheres na família e em outros campos da vida pública e privada.

A Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), adotada em 1979 e amplamente ratificada por vários Países vem em resposta a essa reivindicação. Logo no art. 1º. define a discriminação contra a mulher como sendo: “Para os fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher" significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. (Art. 1º.).”.

A partir dessa Convenção, gera para os Estados que a ratificam, como foi o caso do Brasil, a obrigação de adotar diversas medidas necessárias à eliminação da discriminação contra a mulher em todas as suas formas, entre as quais modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres, com vistas a alcançar a eliminação dos preconceitos e práticas consuetudinárias e de qualquer outra índole que estejam baseados na ideia da inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e mulheres (art. 5º. letra a).

A Convenção foi um avanço para os direitos das mulheres. No entanto, foi duramente criticada pelos movimentos de mulheres internacionais pela omissão em seu texto da questão da violência contra a mulher. Conta Télia Negrão (2006) que, mesmo sem essa previsão, as integrantes do movimento feminista brasileiro se valeram da Convenção CEDAW, para buscar, junto aos governos estaduais, a criação de mecanismos de combate à violência no país. A omissão foi sanada por intermédio da Recomendação nº 19/92 , pela qual foi definida a violência contra a mulher como uma forma de discriminação, ou seja, a violência dirigida contra a mulher, pelo simples fato de ser mulher, e que a afeta de forma desproporcional.

É importante ressaltar que, em 1993, ano seguinte à Recomendação, a Assembleia Geral da ONU adotou a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, definida como sendo qualquer ato de violência, baseado no gênero que resulte ou possa resultar em dano físico, sexual ou psicológico ou em sofrimento para a mulher, inclusive as ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, podendo ocorrer na esfera pública ou privada (Resolução 48/104, de 20/12/1993). A partir dessa declaração, a violência contra as mulheres é compreendida como uma violação de direitos humanos (PIOVESAN, 2009).

Na questão da violência contra a mulher, a Declaração e Programa de Ação de Viena, de 1993, e a Declaração e Plataforma de Ação de Beijing , de 1995, constituem importante reforço na proteção dos direitos humanos das mulheres (PIOVESAN, 2009).

Conforme Lia Zanotta Machado (1995), o conceito de gênero, adotado pela ONU, veio do acúmulo teórico feminista acerca do tema, no qual, em linhas gerais, refere-se aos padrões culturais e sociais que ditam o ser mulher e o ser homem. É um conceito gerado a partir da perspectiva da desconstrução das ideias naturalizadas de mulher e homem (MACHADO, 1995). Esse conceito é relativamente bem aceito nas instâncias internacionais, pois se coaduna com as normativas de direitos humanos que propõem mudanças sociais e culturais que geram desigualdades sociais, inclusive de gênero.

A Declaração de Viena de 1993 trouxe outros efeitos positivos na questão da violência contra as mulheres. Foi adotada a transversalidade de gênero, significando que outros órgãos da ONU, além do Comitê CEDAW deveriam abordar regularmente os direitos humanos das mulheres. Assim, no âmbito da Comissão dos Direitos Humanos, foi designada Radhika Coomaraswamy (Sri Lanka) Relatora Especial da Comissão Especial para conhecer a violência contra a mulher no mundo. Os resultados descortinaram um quadro grave de violações contra as mulheres no espaço doméstico e familiar, na comunidade e por vias institucionais do Estado, inclusive a violência contra a mulher em situação de prisão e a violência contra a mulher em situação de conflito armado e refugiadas.

A OEA foi instituída em 1948, adotando como um de seus princípios a proteção das pessoas, sem distinção de raça, nacionalidade, credo ou sexo. É um sistema regional, pois congrega países do continente americano e tem por objetivo fortalecer a cooperação entre esses países, nas questões econômicas, sociais e culturais. Objetiva fortalecer os princípios democráticos, os direitos humanos e o incentivo à paz.

A OEA adotou, em 1994, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará. O Brasil ratificou essa Convencao em 1995. A iniciativa de elaboração dessa norma partiu das integrantes da Comissão Interamericana de Mulheres (CIM), órgão técnico especializado de assessoramento nas questões referentes aos direitos das mulheres na OEA, que incorporou em sua pauta a preocupação advinda dos movimentos contemporâneos feministas nas Américas que denunciavam a existência desse problema social grave, que atingia as mulheres e a omissão do Estado nessa questão. Segundo a Comissão Interamericana de Mulheres, a adoção da Convenção de Belém do Pará, assim conhecida pelo local onde foi adotada, refletiu um poderoso consenso entre atores, estatais e não estatais.

Para as integrantes da CIM, a violência compreende a agressão física, sexual e também a psicológica contra as mulheres. Não se resume apenas ao espaço privado, da família, mas em todos os setores da sociedade. Pela primeira vez, passa a constar de uma Convenção, com natureza obrigatória para os países que a assinam e a ratificam, que a violência contra as mulheres é uma violação de direitos humanos. Além disso, converte-se essa Convenção em “uma verdadeira redefinição do direito interamericano sobre direitos humanos para aplicá-lo com uma orientação concreta de gênero”. A Convenção de Belém do Pará define a violência contra a mulher da seguinte forma:

Artigo 1

Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.

Artigo 2

Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica:

a. ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual;

b. ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e

c. perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.

Curiosidade: A CIM é constituída pelas representantes dos países que compõem a OEA. A formação da CIM é antiga e remonta à época da constituição da OEA. Naquela ocasião, um grupo de mulheres reuniu-se com o propósito de reivindicar o direito de voto e a modificação da condição jurídica da mulher nos países panamericanos, convencidas de que, no âmbito internacional, obteriam um aliado, frente às resistências de seus governos: “As mulheres, que já estavam se organizando em nível nacional, compreenderam que a desigualdade baseada no gênero não somente existia em seus países, mas também em todo o hemisfério. Confiavam que ao tratar esses temas no âmbito internacional tenderiam a obter maior influência junto aos seus próprios governos” (tradução livre).

A adesão ao sistema internacional e regional de direitos humanos é voluntária, mas uma vez ratificada a Convenção ou outro ato internacional, o país se vincula à comunidade internacional, gerando a obrigação de cumprimento das normas acordadas. Cada ato internacional de direitos humanos vincula-se a um Comitê de monitoramento e fiscalização que trabalha a partir de solicitação de Informes aos Estados acerca da situação de direitos humanos no País. Buscam informações junto às Organizações Não Governamentais ou outras entidades da sociedade civil, realizam visitas, recebem denúncias, entre outras ações, para, ao final, avaliarem se as normativas de direitos humanos estão, realmente, sendo cumpridas.

Mas como fazer chegar nossas demandas a esses organismos? O caso Maria da Penha Fernandes contra o Estado Brasileiro, levado à Comissão Interamericana da Organização dos Estados Americanos (OEA), com base na Convenção de Belém do Pará, é bem ilustrativo sobre como esse processo ocorre.

Em 1998, Maria da Penha e duas Organizações Não Governamentais, CEJIL e CLADEM, entram com petição contra o Estado brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, denunciando a tolerância do Estado brasileiro com a violência doméstica, com fundamento na Convenção de Belém do Pará, artigos 3, 4, a, b, c, d, e, f, g, 5 e 7 e outros documentos de direitos humanos no sistema de proteção da OEA. O Estado brasileiro não ofereceu resposta à denúncia.

A conclusão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos consta do Relatório 54/01, pelo qual entendeu que o Estado brasileiro violou os direitos às garantias judiciais e a proteção judicial em prejuízo de Maria da Penha Fernandes. Além disso, entendeu que a violação ocorre como parte de um padrão discriminatório com respeito à tolerância da violência doméstica contra as mulheres no Brasil e, assim, fez algumas recomendações, entre as quais:

  • medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários judiciais e policiais especializados para que compreendam a importância de não tolerar a violência doméstica;
  • multiplicar o número de delegacias policiais especiais para a defesa dos direitos da mulher e dotá-las dos recursos especiais necessários à efetiva tramitação e investigação de todas as denúncias de violência doméstica, bem como prestar apoio ao Ministério Público na preparação de seus informes judiciais;
  • incluir em seus planos pedagógicos unidades curriculares destinadas à compreensão da importância do respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos na Convenção de Belém do Pará, bem como ao manejo dos conflitos intrafamiliares.

Interessante observar que, há um ano da denúncia do Brasil à Corte Interamericana de Direitos Humanos, esse órgão já alertava para a necessidade de se adotar medidas legais e de incidência prática na prestação da justiça que possibilitasse uma resposta mais apropriada aos delitos de violência contra a mulher, conforme consta do Informe de 1997.

Em relação ao monitoramento realizado pelo Comitê CEDAW, desde o primeiro Relatório de Radhika Coomaraswamy, da Comissão de Direitos Humanos da ONU que, o Brasil vem sendo compelido a criar uma legislação específica para prevenção e proteção das mulheres em situação de violência. Em 2002, analisando o relatório enviado pelo Brasil, o Comitê CEDAW avalia que a situação de violência doméstica contra as mulheres não está sendo suficientemente enfrentada e recomenda, entre outras ações, a adoção de legislação específica para tratar do problema, bem como formas de monitoramento para avaliação de sua efetividade.

O sistema de proteção internacional, gradativamente incorporou normativas de proteção aos direitos humanos das mulheres. Esses mecanismos, somados ao constante monitoramento, têm sido essenciais para a cobrança de mudança da legislação e políticas públicas de prevenção e proteção às mulheres em situação de violência, como são exemplos a criação das delegacias especiais de atendimento à mulher, Centros de Referência, Casas Abrigo e, mais tarde, a criação da Lei Maria da Penha, conforme veremos a seguir.

A construção do conceito de violência contra a mulher

A previsão de lei específica que trata da violência contra as mulheres, em especial nas relações domésticas e familiares, é algo recente em nosso ordenamento jurídico e só ocorreu com a Lei Maria da Penha, em 2006. Dessa forma, vale observar como surgiu o conceito de violência contra a mulher e suas derivações ao longo do tempo, a partir da reflexão dos movimentos de mulheres acerca dos "castigos", maus-tratos e os assassinatos de mulheres pelos seus parceiros, os quais passaram a ser nomeados de “violência contra a mulher”.

No final da década de 1970, em um contexto político de reivindicações pelo fim da ditadura e redemocratização do país, os movimentos de mulheres e feministas definiram pautas específicas para as mulheres, como o direito a creches e trabalho doméstico. Posteriormente, as feministas incorporam temas mais controversos como sexualidade, anticoncepção e violência doméstica (COSTA, 2005).

De acordo com Miriam Grossi (1994), o conceito de violência contra a mulher resulta de uma construção histórica do movimento feminista. No final da década de 1970, o movimento de mulheres se indignava contra a justificativa da legítima defesa da honra utilizada nos julgamentos de homens que matavam as mulheres, cujo resultado era a absolvição ou aplicação de pena mínima. As primeiras manifestações do movimento de mulheres se deram sob o slogan “Quem ama não mata”, no ano de 1979, por ocasião do julgamento de Doca Street, que matou sua companheira Ângela Diniz. Assim, nesse primeiro momento, a violência contra a mulher significava homicídios de mulheres cometidos por seus maridos, companheiros ou amantes.

Nesse contexto, importante a leitura de Miriam Pillar Grossi intitulado “De Angela Diniz a Daniela Perez: a trajetória da impunidade”.

A indignação levou à mobilização do próprio movimento para criação dos serviços de atendimento, a exemplo do SOS Mulher, pois se acreditava “que o assassinato era o último ato de uma escalada de violência conjugal que começava com o espancamento” (GROSSI, 1994, p. 474). Posteriormente, face à imensa procura e a pluralidade de demandas das mulheres, buscou-se, por meio de pressão política, a criação das delegacias especiais de atendimento à mulher, DEAMs.

A produção teórica e militante nesses espaços (delegacias especiais e canais de atendimentos geridos pelos movimentos de mulheres) levou à compreensão de que a violência contra a mulher era apenas a violência conjugal e/ou doméstica, pois era grande o número de mulheres nessas relações que buscavam esses serviços para relatar casos de lesões corporais, ameaça, estupro, maus-tratos, sedução, abandono, sequestro em cárcere privado e tentativa de homicídio.

Pesquisas qualitativas trouxeram à tona outras formas de violência (GROSSI, 1994, P. 475):

a) o silêncio e a falta de comunicação entre os companheiros;

b) a destruição de objetos como móveis, eletrodomésticos e roupas;

c) sentimento de humilhação, doença dos nervos pela tensão conjugal; e

d) a violência física na gravidez.

A partir da década de 1990, outras formas de violências contra a mulher foram descortinadas, à medida que eram problematizadas e visibilizadas, tais como o assédio sexual, a violência em razão de práticas discriminatórias no acesso ao trabalho, o abuso sexual infantil no espaço doméstico e familiar, a violência contra as mulheres negras e contra as mulheres indígenas (GROSSI, 1994).

Mas como algo que acontece pode ser invisível? Quando se torna visível?

A invisibilidade refere-se à “falta de reconhecimento de certos acontecimentos como sendo da sociedade como um todo e, por isso, devem ser alvo de propostas de resolução de caráter público para todos, e não de cunho estritamente individual” (SCHRAIBER et al, 2005, p. 35). A violência contra a mulher, portanto, torna-se visível quando deixa de ser interpretada como um problema individual da mulher e passa a ser reconhecida como problema social e a constar das agendas públicas de assistência, prevenção e punição para esses casos.

Mencionamos anteriormente que os serviços de atendimento instituídos pelos movimentos de mulheres e as delegacias de atendimento à mulher, criados nos Estados contribuíram para a visibilidade da violência. Vale acrescentar o papel relevante da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres nessa tarefa, mediante expansão dos serviços de atendimento, criação do Plano Nacional de Políticas de Enfrentamento da Violência contra a Mulher e o trabalho em parceria com os Estados e Municípios, a institucionalização do sistema de atendimento em rede que visa dar conta das várias facetas da violência contra a mulher, entre outras medidas. Ganha destaque a Lei Maria da Penha que não deixa dúvidas quanto à responsabilidade do Estado não só em punir, mas também atuar na prevenção, assistência das mulheres em situação de violência e reeducação dos autores de violência.

No entanto, a grande dificuldade para retirar da invisibilidade a violência contra as mulheres passa também pelo reconhecimento dos maus-tratos como violência pelas mulheres e também pelos agentes do Estado, que trabalham nos diversos serviços de atendimento. Uma dessas dificuldades tem sido reconhecer que a violência não é apenas aquela cometida por estranhos, mas também por pessoas que pertencem ao círculo familiar e afetivo das mulheres (SCHRAIBER, 2005).

Santos e Izumino (2005), em revisão da literatura brasileira no campo das ciências sociais e na área de violência contra a mulher, identificaram, nos primeiros estudos realizados na década de 1980, três correntes teóricas explicativas desse fenômeno:

1) dominação masculina (CHAUÍ, 1985);

2) dominação patriarcal (SAFFIOTI, 1987); e

3) relacional (GREGORI, 1993).

Nos anos de 1990, a partir da inclusão da categoria de análise “Gênero”, os estudos deram ênfase à questão da cidadania das mulheres, em relação ao acesso à Justiça.

Saffioti (1999, p. 83), tendo por base a compreensão da violência contra a mulher como expressão do patriarcado e incorporando também às suas reflexões o conceito de “gênero”, contribuiu de forma decisiva para a definição das diversas formas de violência contra a mulher, conforme consta abaixo:

  • Violência familiar - aquela que envolve membros de uma mesma família extensa ou nuclear, levando-se em conta a consanguinidade e a afinidade. Compreendida na violência de gênero, a violência familiar pode ocorrer no interior do domicílio ou fora dele, embora seja mais frequente o primeiro caso.
  • A violência intrafamiliar - extrapola os limites do domicílio.
  • A violência doméstica apresenta pontos de sobreposição com a familiar, podendo também atingir pessoas que, não pertencendo à família, vivem, parcial ou integralmente, no domicílio do agressor, como é o caso de agregados e empregadas (os) domésticas (os).
  • Violência de gênero é o conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos. No exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio (...).

Gênero diz respeito à construção social do feminino e masculino (SAFFIOTIi, 1999), mas também significa relações de poder e nos estudos mais recentes significa a identidade. Gênero como construção social do feminino e masculino significa que “a identidade social da mulher, assim como a do homem, é construída através da atribuição de distintos papéis, que a sociedade espera ver cumpridos pelas diferentes categorias de sexo” (SAFFIOTI, 1987, 10). Conforme a autora, é exatamente essa dimensão sociocultural que possibilita compreender a famosa frase de Simone de Beauvoir “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”.

Dessa maneira, vimos que no contexto histórico e sociocultural do Brasil Colônia, as mulheres eram tuteladas, devido à suposta “fraqueza de entendimento, o que significou muitos interditos às mulheres, destinadas quase que exclusivamente ao âmbito privado da casa e à tarefa da maternidade.

Em contraposição, aos homens eram atribuídas as qualidades de forte, racional e superior, as quais lhes garantiam o direito à educação formal, a ocupar os postos de trabalho e tomar decisões nos mais diversos espaços de poder, na esfera pública ou privada, na condução da família, exigindo obediência dos filhos e da mulher, em tudo que fosse justo e honesto, cuja definição cabia ao homem, detentor do pátrio poder.

Segundo Saffioti (1999, p. 83) “a desigualdade longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais”. Assim, as desigualdades de gênero podem ser alteradas para relações mais igualitárias. De fato, pela dimensão histórica, percebe-se com mais nitidez as transformações sociais, as quais, no campo dos direitos das mulheres, foram impulsionadas pelos movimentos de mulheres e feministas, repercutindo mudanças em todas as dimensões sociais, no campo legislativo e também nas expectativas sociais quanto aos papéis a serem desempenhados por homens e mulheres.

Constituição Federal de 1988 reflete essas mudanças, proclamando a igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres de forma geral que se estende para as relações familiares, sem descuidar de que a igualdade real é um processo em construção e, assim, cria mecanismos para coibir a violência na família.

O impacto da violência é diferenciado para homens e mulheres. As mulheres estão mais sujeitas a ela no espaço doméstico e familiar, ao passo que os homens estão mais sujeitos à violência no espaço público. Os principais autores da violência contra a mulher são os companheiros ou ex-companheiros, conforme mostram os dados do Retrato das Desigualdades (2014, p. 38).

"Especificamente em relação ao local em que ocorre a agressão física, é possível perceber que 80% dos homens que sofreram este tipo de violência a sofreram em um local público, enquanto apenas 12,2% foram agredidos em suas próprias residências. Em sentido oposto, 43,1% das mulheres vítimas de agressão física estavam em suas residências, ao passo que 49% estavam em lugares públicos. Estes dados apontam para uma possível quebra da sensação de segurança no espaço doméstico (ou da segurança propriamente dita), agravada quando se verifica quem são os autores desta agressão. Entre os homens, 46,4% dos autores eram pessoas desconhecidas, mas somente 2% eram cônjuges ou ex-cônjuges, e 5,7% eram parentes. Para 26% das mulheres, a violência era perpetrada por seus próprios companheiros ou ex-companheiros, e para 11,3%, por algum parente. Ainda que em uma proporção alta (29%), a agressão física de mulheres por desconhecidos era menos significativa que a de homens. Considerando-se apenas a população que sofreu agressão física de cônjuges e ex-cônjuges, tem-se que 56% das mulheres procuraram alguma unidade policial, enquanto somente 32,3% dos homens o fizeram. Vale notar que as barreiras verificadas para acesso às instâncias policiais por parte da população negra vítima de roubo ou furto se repetem aqui: enquanto 61,6% das mulheres brancas haviam procurado a polícia, este valor é 10 pontos mais baixo quando se trata de mulheres negras (51,9%). Ao se indagar o motivo de não terem procurado apoio nas instituições de segurança pública, as mulheres informaram que: não queriam envolver a polícia (27,7%), tinham medo de represálias (23%) ou resolveram sozinhas (21,5%). Apenas 9,4% delas acreditavam que este tipo de agressão não era importante a ponto de demandar uma ação policial. Entre os homens que sofreram agressão de suas companheiras, 24,7% acreditavam não ser este um fato importante, e somente 2,3% tinham algum medo de represálias. Ou seja, ainda que este seja apenas um caso muito específico de violência – somente física –, é possível perceber o quanto as características da violência sofrida por homens e por mulheres são diferenciadas e o quanto os aspectos de gênero são determinantes para entendê-las e enfrentá-las".

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A violência doméstica como violência de gênero tem sido compreendida como a radicalização das desigualdades na relação entre mulheres e homens (SCHAIBER et al, 2005, p.31). Cada vez mais se tem demonstrado que a violência de gênero é socialmente construída e pode ser desconstruída a partir de mudanças nas relações entre os gêneros, em especial, aquelas que resultam em violência.

Lei Maria da Penha aposta na reeducação do autor de violência para alterar o elevado índice de violência contra a mulher no país, no entanto, conforme pesquisa realizada sobre as percepções dos homens sobre a violência doméstica contra a mulher, a maioria dos homens não entende que a Lei Maria da Penha atua para a redução das desigualdades de gênero. A pesquisa detectou também que quase metade dos entrevistados homens considera que a mulher é responsável pelos cuidados com a casa, e 89% considera inaceitável que a mulher não mantenha a casa em ordem; muitos concordam com o perfil tradicional do machão e a maioria considera inaceitáveis certas condutas das mulheres.

Voltando aos conceitos, vimos que a ONU conceituou violência contra a mulher como qualquer ato de violência, baseado no gênero, que resulte ou possa resultar em dano físico, sexual ou psicológico ou em sofrimento para a mulher, inclusive as ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, podendo ocorrer na esfera pública ou privada. E a Convenção de Belém do Pará, no âmbito da OEA, conceituou violência contra a mulher como qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.

A Convenção de Belém do Pará exemplifica algumas formas de violência, destacando que o conceito abrange a violência física, sexual e psicológica (art. 2º):

a) ocorrida no âmbito da família, ou unidade doméstica, ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual;

b) ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e

c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.

O item c da Convenção refere-se à violência institucional. Essa violência é caracterizada como aquela praticada pela ação e/ou omissão das instituições que ofertam serviços públicos como hospitais, postos de saúde, escolas, delegacias, Judiciário, entre outras, no exercício de suas funções. É perpetrada por agentes que deveriam garantir uma atenção humanizada, preventiva e reparadora de danos (TAQUETTE, 2009).

O sistema de proteção internacional de direitos humanos, portanto, abarcou de forma bem ampla a violência contra a mulher como violência de gênero, tendo por pressuposto que se trata de uma ofensa contra a dignidade humana e manifestação das relações de poder historicamente desiguais.

Por que é importante trazer, para o nosso diálogo, esses conceitos que surgiram no âmbito acadêmico e nas normativas internacionais de direitos humanos?

Lei Maria da Penha levou em conta, em seu processo de elaboração, todo esse arcabouço teórico de quase trinta anos de estudos nessa temática; além disso, teve por “pano de fundo” as Convenções CEDAW, Belém do Pará e a previsão constitucional relativa à obrigação de o Estado criar mecanismos para coibir a violência nas relações familiares (art. 226, § 8º.).

Ressalte-se, entretanto, que a Lei Maria da Penha privilegiou, especialmente, as condutas que mais engrossam as estatísticas da violência contra a mulher, com base no gênero, que ocorrem nas relações domésticas, familiares e nas relações afetivas, atuais ou passadas, consoante art. 5o de sua redação:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

A seguir vamos conhecer, com mais detalhes, o histórico da lei, inovações e o sistema de proteção às mulheres, bem como os conceitos, formas de violência e as medidas protetivas, definidas pela Lei Maria da Penha.

"O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades". – Hannah Arendt

 

O novo paradigma da Lei Maria da Penha

Aqui, passaremos a conhecer a origem da Lei e de todo o processo de criação que demandou intenso debate entre os movimentos das mulheres e os poderes executivo e legislativo. Destaca-se inovações, avanços e desafios da Lei, comentando-os ponto a ponto. Ao final deste diálogo, você será capaz de:

  • conhecer o processo de elaboração da Lei Maria da Penha desde sua criação até publicação;
  • refletir sobre o papel dos movimentos de mulheres e feministas na implementação de políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres;
  • identificar os diversos atores e papéis desempenhados no processo de elaboração da Lei Maria da Penha;
  • refletir sobre o novo paradigma introduzido pela Lei Maria da Penha;
  • compreender procedimentos adotados pelo sistema de justiça para lidar com situações de violência doméstica e familiar contra a mulher;
  • compreender alguns desafios impostos a profissionais que lidam com situação de violência doméstica e familiar contra a mulher;
  • nomear alguns serviços de atendimento às mulheres em situação de violência existentes no País;
  • indicar os serviços existentes em seu município;
  • identificar as dificuldades que constituem a rota crítica percorrida pelas mulheres em situação de violência;
  • listar as principais características da rede de apoio às mulheres em situação de violência.

 

Para refletir:

Canção das mulheres

Que o outro saiba quando estou com medo, e me tome nos braços sem fazer perguntas demais.

Que o outro note quando preciso de silêncio e não vá embora batendo a porta, mas entenda que não o amarei menos porque estou quieta.

Que o outro aceite que me preocupo com ele e não se irrite com minha solicitude, e se ela for excessiva saiba me dizer isso com delicadeza ou bom humor.

Que o outro perceba minha fragilidade e não ria de mim, nem se aproveite disso.

Que se eu faço uma bobagem, o outro goste um pouco mais de mim, porque também preciso poder fazer tolices tantas vezes.

Que se estou apenas cansada, o outro não pense logo que estou nervosa, ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.

Que o outro sinta quanto me dói a ideia da perda, e ouse ficar comigo um pouco - em lugar de voltar logo à sua vida.

Que se estou numa fase ruim, o outro seja meu cúmplice, mas sem fazer alarde nem dizendo ''Olha que estou tendo muita paciência com você!''

Que quando sem querer eu digo uma coisa bem inadequada diante de mais pessoas, o outro não me exponha nem me ridicularize.

Que se eventualmente perco a paciência, perco a graça e perco a compostura, o outro ainda assim me ache linda e me admire.

Que o outro não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, mas me aceite quando não estou podendo ser nada disso.

Que, finalmente, o outro entenda que mesmo se às vezes me esforço, não sou, nem devo ser, a mulher-maravilha, mas apenas uma pessoa: vulnerável e forte, incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa - uma mulher.

LUFT, L. Pensar e Transgredir, Canção das Mulheres, Editora Record, 1ª Edição, 2004.

 

Histórico da Lei

A atuação dos movimentos de mulheres e feministas, por meio de práticas de advocacy, promovem mudanças na legislação, na elaboração ou aperfeiçoamento de convenções ou leis nacionais, com a finalidade de remover obstáculos ao pleno acesso das mulheres aos seus direitos, dentre eles o de viver sem violência. Assim, o nosso diálogo não poderia prescindir do histórico da Lei Maria da Penha que mostra a iniciativa desses movimentos e sua articulação com os poderes do Estado para que a Lei no. 11.340, de 2006, se tornasse possível.

Os primeiros estudos visando a construção de um novo marco legal para os crimes de violência doméstica contra as mulheres tiveram lugar na Organização Não Governamental CEPIA, em 2002, e contou com representantes das seguintes organizações: CFEMEA, AGENDE, ADVOCACI, CLADEM/BR e THEMIS. Esse grupo logo passou a ser conhecido como Consórcio de ONGs. O objetivo do Consórcio era apresentar ao Congresso Nacional uma proposta de adequação legislativa, com base na Constituição Federal, art. 226§ 8º, e Convenção de Belém do Pará.

A metodologia de trabalho consistiu em:

a) análise dos efeitos da aplicação da Lei nº 9.099/95 sobre os casos de violência doméstica;

b) análise de projetos em tramitação no Congresso e;

c) estudo comparado de leis especiais sobre violência doméstica, já existentes nos países latino-americanos.

A publicação a Lei nº. 9.099, em 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, impactou diretamente os casos de violência doméstica contra as mulheres. A partir dessa Lei, que não foi pensada para atender as especificidades da violência contra as mulheres, esses delitos passaram a ser denominados de infrações de menor potencial ofensivo, sujeitos a regras mais simples e rápidas de resolução e aplicação de institutos despenalizadores (tais como transação penal, composição de danos, suspensão condicional do processo, dentre outros).

Pela Lei nº 9.099, de 1995, infrações penais de menor potencial ofensivo são as contravenções penais (tais como vias de fato, perturbação da tranquilidade) e os crimes, com pena máxima fixada até dois anos (lesão corporal, ameaça, injúria, difamação, dentre outros), os quais constituíam a maioria dos delitos cometidos contra as mulheres no ambiente doméstico e familiar.

Em um primeiro momento pareceu interessante obter uma resposta rápida do Poder Judiciário. Contudo, verificou-se, nas práticas de atendimento, a insuficiência da Lei no. 9.099, de 1995, aos delitos cometidos contra as mulheres, conforme explica Calazans e Cortês (2011, p. 42):

"No balanço dos efeitos da aplicação da Lei 9.099/95 sobre as mulheres, diversos grupos feministas e instituições que atuavam no atendimento a vítimas de violência doméstica constataram uma impunidade que favorecia os agressores. Cerca de 70% dos casos que chegavam aos juizados especiais tinham como autoras mulheres vítimas de violência doméstica. Além disso, 90% desses casos terminavam em arquivamento nas audiências de conciliação sem que as mulheres encontrassem uma resposta efetiva do poder público à violência sofrida. Nos poucos casos em que ocorria a punição do agressor, este era geralmente condenado a entregar uma cesta básica a alguma instituição filantrópica.

Os juizados especiais, no que pese sua grande contribuição para a agilização de processos criminais, incluíam no mesmo bojo rixas entre motoristas ou vizinhos, discussões sobre cercas ou animais e lesões corporais em mulheres por parte de companheiros ou maridos. Com exceção do homicídio, do abuso sexual e das lesões mais graves, todas as demais formas de violência contra a mulher obrigatoriamente, eram julgadas nos juizados especiais, onde, devido a seu peculiar ritmo de julgamento, não utilizavam o contraditório, a conversa com a vítima e não ouviam suas necessidades imediatas ou não".

Assim, a aplicação da Lei nº 9.099, de 1995, revelava-se incompatível não só com as disposições da Convenção de Belém do Pará, que trata a violência contra as mulheres como violação de direitos humanos, mas também com a complexidade da violência contra as mulheres que envolve, em meio às práticas abusivas, sentimentos, relações desiguais de poder, dependência emocional, econômica, medo, entre outros fatores.

Havia propostas de alteração legislativa em curso no Congresso Nacional, mas eram reformas pontuais da legislação, em geral de aspecto meramente penal e não contemplavam a prevenção e proteção integral das mulheres em situação de violência. Por outro lado, verificou-se que a maioria dos países latino-americanos seguia as recomendações do Comitê CEDAW, da ONU, e da OEA, quanto à criação de uma lei específica para esses casos.O Brasil foi o 18º país latino-americano a elaborar uma lei integral e específica para regular a aplicação dos delitos cometidos contra as mulheres.

A Convenção de Belém do Pará é norma específica na questão da violência contra a mulher no sistema regional de proteção internacional de direitos humanos. Em vigor no país desde 1995, data da ratificação, definiu a violência contra a mulher como uma violação de direitos humanos, sendo considerada uma ofensa à dignidade humana e manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens.

Conforme já vimos, a ratificação da Convenção gera para o Estado-Parte, no caso, o Brasil, a obrigação de cumprimento, sendo que, uma das obrigações diz respeito, exatamente, à adequação legislativa para modificar leis ou práticas jurídicas ou costumeiras que respaldem a persistência da violência contra a mulher, conforme consta da alínea e do art. 7:

“... tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher ...”

Após dois anos de estudos e intensos debates que contaram com a participação de magistrados dos Juizados Especiais Criminais (JECrims), foi elaborada uma minuta de anteprojeto, que, segundo suas propositoras, era apenas um início de discussão que deveria se ampliar para o movimento de mulheres, incluindo parlamentares e membros da magistratura, entre outros atores sociais.

O anteprojeto elaborado pelas representantes do Consórcio ONGs contou com as seguintes propostas (Calazans e Cortes, 2011):

a. conceituação da violência doméstica contra a mulher com base na Convenção de Belém do Pará, incluindo a violência patrimonial e moral;

b. criação de uma Política Nacional de combate à violência contra a mulher;

c. medidas de proteção e prevenção às vítimas;

d. medidas cautelares referentes aos agressores;

e. criação de serviços públicos de atendimento multidisciplinar;

f. assistência jurídica gratuita para a mulheres;

g. criação de um Juízo Único com competência cível e criminal através de Varas Especializadas, para julgar os casos de violência doméstica contra as mulheres e outros relacionados;

h. afastamento da Lei 9.099/1995 – Juizados Especiais Criminais – aos casos de violência doméstica contra as mulheres.

Em 11 de novembro de 2003, a proposta do Consórcio de ONGs foi apresentada à Bancada Feminina no seminário promovido para debater a violência doméstica contra as mulheres na Câmara dos Deputados.

O anteprojeto no Executivo

No início de 2004, o Consórcio de ONGs entregou o anteprojeto de lei à então Ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), que instituiu um Grupo de Trabalho pelo Decreto nº 5.030/2004, para “elaborar proposta de medida legislativa e outros instrumentos para coibir a violência doméstica contra a mulher”.

Dessa forma, cumpria o compromisso reafirmado durante a 29ª Sessão do Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher – CEDAW, no sentido de oferecer apoio oficial à continuidade do trabalho de um grupo de organizações não governamentais feministas que está elaborando proposta legislativa a ser encaminhada ao Congresso Nacional, voltada para prevenir e coibir este tipo de violência e assegurar proteção às suas vítimas (SPM, 2004).

O objetivo do Grupo de Trabalho foi, portanto, dar sequência aos debates para criação de uma lei específica tendo por base a minuta de projeto criada pelo Consórcio de ONGs. Esse Grupo foi composto por representantes de diversos Ministérios e Secretarias vinculados ao Poder Executivo, mas aberto à participação de organizações da sociedade civil e outros órgãos ou entidades públicas.

Participaram das discussões como convidados ou convocados para oitivas a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, representações de mulheres indígenas e negras, representantes da Magistratura, da Segurança Pública, do Ministério Público e da Defensoria Pública e um grupo de juízes integrantes do Fórum Nacional de Juizados Especiais (FONAJE).

O projeto elaborado pelo grupo interministerial contemplou grande parte das propostas do Consórcio de ONGs, inclusive os conceitos, princípios e as medidas cautelares para proteção e segurança das mulheres em situação de violência. Contudo, manteve o julgamento dos casos no âmbito da Lei no. 9.099/95 e dos Juizados Especiais Criminais, frustrando as expectativas de que tais crimes fossem considerados violação dos direitos humanos das mulheres. Outro ponto polêmico dizia respeito à criação de um juizado único e específico com competência cível e criminal, previsto pelo Consórcio de ONGs. Porém, o projeto do Executivo mantinha a apreciação desses casos em órgãos separados, inclusive, com previsão de criação de Varas especializadas cíveis e criminais.

Considerando a imbricação dessas duas áreas, cível e criminal, nas demandas de urgência trazidas pelas mulheres em situação de violência, como por exemplo proibição de contato e aproximação (medidas penais) e afastamento do lar e regulamentação de visitas (medidas cíveis), entre outras, a criação do Juizado Especial de Violência Doméstica contra a Mulher e a determinação da competência mista para agilizar a apreciação e decisão dessas demandas era imprescindível.

Diante disso, foram apresentados pareceres contrários à manutenção da Lei nº 9.099/95 aos delitos que configuram a violência doméstica e familiar contra a mulher, elaborados pelo Consórcio de ONGs, pela então Subprocuradora da República, Ela Wiecko, e a Articulação de Mulheres Brasileiras; além da solicitação de prorrogação do prazo para discussão com o movimento de mulheres. No entanto, não se logrou êxito nessas ações e o Projeto do Executivo foi encaminhado à Câmara dos Deputados mantendo em seu texto a competência da Lei dos Juizados Especiais Criminais.

O Projeto no Legislativo

Câmara dos Deputados recebeu o Projeto de Lei em 25 de novembro de 2004, data emblemática na questão da violência contra a mulher, pois a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou o dia 25 de novembro como "Dia Internacional da Não Violência contra a Mulher" e diversas atividades sobre o tema são realizadas mundo afora, a exemplo dos 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres.

O Projeto de Lei recebeu o nº 4.559/04 na Câmara dos Deputados. Foi distribuído para as Comissões de Seguridade Social e Família (Relatora: Deputada Jandira Feghali), Comissão de Finanças e Tributação (Relatora: Deputada Zulaiê Cobra) e Constituição, Justiça e de Cidadania (Relatora: Deputada Iriny Lopes). O projeto seguiu primeiro para a Comissão de Seguridade Social e Família, onde levou mais tempo para ser apreciado e votado, tendo em vista a opção dos integrantes da Comissão em ampliar o debate para a sociedade, mediante audiência pública nos estados.

Nessas audiências, que contaram com a parceria das Assembleias Legislativas e a presença constante dos movimentos de mulheres e feministas, a realidade da violência contra as mulheres e sua complexidade vieram à tona pelos estudos apresentados e depoimentos de mulheres que vivenciaram situações de violência.

Conta a Relatora da Comissão de Seguridade Social e Família que foram agregadas diversas contribuições da sociedade ao projeto original, gerando um substitutivo com diversas inovações, entre as quais:

  • afastamento definitivo da Lei no 9.099/95 desses casos;
  • criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal;
  • vedação da aplicação de penas de prestação pecuniária e cesta básica;
  • inclusão de dano moral e patrimonial no conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher;
  • reforço para as Delegacias de Atendimento à Mulher;
  • possibilidade de inclusão da vítima em programas assistenciais do governo, programas de proteção à vítima e testemunhas, acesso à transferência de local de trabalho (quando servidora pública), estabilidade de seis meses por motivo de afastamento do emprego e acesso a benefícios do desenvolvimento científico e tecnológico;
  • substituição do termo “medidas cautelares” por “medidas protetivas”;
  • obrigatoriedade de criação de centros de atendimento psicossocial e jurídico, casas de abrigo, delegacias especializadas, núcleos de defensoria pública, entre outros serviços de atendimento; comparecimento do acusado a programas de recuperação e reeducação (art. 152 da Lei de Execução Penal), entre outras.

Após passar pelas demais Comissões da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei foi encaminhado ao Senado Federal e ali passou a tramitar como PLC nº 37, de 2006. Distribuído à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania foi designada relatora a Senadora Lucia Vania.

A relatora instituiu um grupo de trabalho para analisar o projeto, mas, considerando que ele já contemplava a maioria das demandas da sociedade, a preocupação era que, no Senado Federal, tivesse uma tramitação rápida, sem mudança de mérito que exigisse o retorno à Câmara, conforme se observa do Relatório no. 638/2006, que diz:

“(...) as alterações propostas foram instruídas pelo cuidado permanente de manter intacto o mérito aprovado na Câmara dos Deputados e visam tão-somente proporcionar maior clareza, e consequente eficácia, para uma lei de grande relevância social”.

Moções, com milhares de assinaturas, foram encaminhadas e anexadas ao processo no Senado Federal e vigílias em prol da aprovação do projeto foram realizadas pelos movimentos de mulheres em diversos pontos do País, até final tramitação e encaminhamento à sanção. Após apreciação e votação das emendas de redação no Senado Federal, o projeto foi encaminhado à sanção, tornando-se a Lei nº 11.340, de 2006, denominada Lei Maria da Penha, em homenagem a Maria da Penha Fernandes que lutou, no âmbito da justiça nacional e internacional, de direitos humanos, para exigir que a violência cometida pelo seu ex-marido não ficasse na impunidade.

Pare e reflita sobre a afirmação do ex-Secretário Geral da ONU, Kofi Annam. Qual o impacto que você acha que causa a prática de violência contra as mulheres em nosso país?

“A violência contra as mulheres causa enorme sofrimento, deixa marcas nas famílias, afetando várias gerações, e empobrece as comunidades. Impede que as mulheres realizem as suas potencialidades, limita o crescimento econômico e compromete o desenvolvimento. No que se refere à violência contra as mulheres, não há sociedades civilizadas”.

Kofi Annan – ex-Secretário-Geral da ONU

 

Mudanças, Avanços e Desafios da Lei Maria da Penha

Para melhor compreensão dos avanços trazidos pela Lei Maria da Penha (LMP), precisamos entender quais foram as mudanças e rupturas com a antiga sistemática. Vamos iniciar refletindo sobre algumas mudanças e pontos importantes dessa Lei e, mais ao final, sobre alguns dos desafios que se apresentam na sua aplicação.

Ruptura com o modelo da Lei nº 9.099/95.

Se, antes da LMP, a maioria dos crimes cometidos em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher era reconhecida como crime de menor potencial ofensivo, contando com institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, como conciliação, transação penal e suspensão condicional do processo, a LMP inaugurou um novo paradigma de identificação do elevado potencial ofensivo desses tipos de ilícito, com medidas para sua prevenção, proteção e penalização.

Definição de violência doméstica e familiar contra a mulher baseada no gênero (art. 5º, caput).

A LMP, além de ter definido a mulher como sujeito de proteção no ambiente doméstico e familiar, assegura à mulher proteção contra outras formas de violência baseada no gênero. O termo gênero foi introduzido no universo acadêmico brasileiro, no final da década de 1990, tendo sido teorizado a partir de uma ideia sistemática de características psicológicas, físicas, discursivas e culturais que marcam diferenças entre homens e mulheres (Narvaz; Koller, 2007).

A sociedade coloca expectativas diferenciadas para homens e mulheres, de como devem agir, pensar, se comportar, parecer, sentir diante dos demais atores sociais, desde os primeiros dias de vida. Assim, o conceito de gênero demonstra que "ser homem" e "ser mulher" não são determinados biologicamente, mas são papéis sociais, construídos e reforçados ao longo da vida e que resultam em acessos diferentes a recursos financeiros, trabalho, espaços de poder. A violência (em suas diferentes dimensões) surge, nesse contexto, como uma manifestação das desigualdades entre homens e mulheres.

Os diferentes tipos de violência passaram a ser caracterizados pela LMP, o que significou o reconhecimento dos diferentes tipos de abusos sofridos pelas mulheres. Contudo, a LMP teve o cuidado de não pretender exaurir as hipóteses ou prever todas as situações possíveis, enumerando algumas situações recorrentes, apenas a título de exemplificação.

Antes da LMP, os crimes cometidos no âmbito doméstico e familiar contra as mulheres, se considerados de menor potencial ofensivo, eram processados e julgados nos Juizados Especiais Criminais. Se fossem crimes cuja pena máxima excedia 2 (dois) anos, eram julgados nas Varas Criminais comuns e os crimes dolosos contra a vida eram julgados pelo Tribunal do Júri.

Atualmente, pela LMP, devem ser criados Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher - JEVDF para processamento e julgamento, a partir da nova sistemática, de todos esses tipos de crime, com exceção dos crimes dolosos contra a vida (competência constitucional). Tais Juizados possuem competência mista ou híbrida, ou seja, podem julgar questões criminais, cíveis e de família, desde que estejam relacionadas com a situação de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Vale ressaltar que essa competência híbrida tem sido ignorada por quase todos os tribunais do país, de forma que os JEVDF têm funcionado como verdadeiras varas criminais sob o rito da LMP. Ressalte-se, entretanto, que os Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar – JEVDF, com a acumulação de competências, são essenciais na rede de proteção às mulheres em situação de violência.

Naqueles municípios em que não foram instalados esses Juizados, a LMP estabelece a competência das Varas Criminais, com competência cível e criminal, para esses delitos.

Atendimento multidisciplinar (art. 29 a 32).

Um dos grandes avanços da LMP foi contemplar a importância das equipes multidisciplinares nas intervenções judiciais e extrajudiciais envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher. Essas intervenções, realizadas pelas equipes multidisciplinares de acompanhamento psicossocial, jurídico e de saúde, têm função de subsidiar a atuação dos juízes, promotores de justiça, advogados e defensores públicos, muitas vezes problematizando as relações hierárquicas de gênero.

Acompanhamento da mulher em situação de violência por advogada/o (art. 27).

Com a LMP, tornou-se obrigatória a assistência jurídica à mulher em todas as fases processuais, o que busca garantir às mulheres maior informação acerca dos acontecimentos, o direito de se manifestar no processo e nas audiências com acompanhamento técnico, podendo fazer perguntas e recorrer das decisões. A ressalva diz respeito às medidas protetivas de urgência que dispensam essa assistência (art. 19 LMP).

A violência doméstica contra a mulher independe da orientação sexual (art. 5º parágrafo único).

Esse esclarecimento auxilia na compreensão de que não apenas nas relações interpessoais heterossexuais ocorre a violência, mas que a violência de gênero perpassa a pluralidade das relações familiares, incluindo as relações homoafetivas. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e o Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul já decidiram, inclusive, pela aplicação da LMP a mulheres transexuais que sofreram violência nas relações doméstico-familiares ou afetivas.

Abertura de inquérito policial composto por depoimentos da vítima, do agressor e de provas documentais e periciais (art. 12).

Antes da Lei Maria da Penha, os crimes submetidos à Lei 9.099/95, ao serem registrados na delegacia, eram submetidos a um modelo simplificado de inquérito, chamado Termo Circunstanciado – TC.

O TC costuma ser muito simples e é apenas uma notícia ao Judiciário daquele crime. Era muito comum ser arquivado nos Juizados Especiais Criminais em razão de desistência da ofendida.

Com a LMP, independentemente do tipo de crime cometido ou contravenção penal, em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher, é feito o registro policial do episódio, tornando-se obrigatória a abertura do inquérito, a coleta de provas documentais, periciais, a realização do exame de corpo de delito (quando houver lesões na vítima), bem como a coleta de depoimento da ofendida, agressor e eventuais testemunhas. Esse inquérito, por ser mais completo, irá auxiliar o processo judicial, sobretudo, a sua instrução (produção e análise de provas).

Com a obrigatoriedade da instauração do inquérito, a atuação policial, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, se tornou mais relevante que antes. Além do inquérito, é dever da Polícia oferecer um atendimento humanizado à mulher em situação de violência, encaminhar para o IML, para a Casa-abrigo, Centro de Referência Especializado de Assistência Social-CREAS ou para um atendimento de saúde, registrar a ocorrência, oferecer a ela as possibilidades de medida protetiva, requerer ao Judiciário o deferimento de medidas protetivas e de prisão preventiva, efetuar as prisões em flagrante e oferecer subsídios ao Ministério Público, quando necessário. Ou seja, atuar como integrante de uma rede que busca o encaminhamento adequado do caso concreto de violência, e assim, contribuir para a redução dos riscos à segurança das mulheres em situação de violência e da impunidade desses casos.

Prisão em flagrante e preventiva (art. 20).

Ampliaram-se também as possibilidades de prisão em flagrante e preventiva, de maneira que o descumprimento de medida protetiva, por exemplo, já é suficiente para que o juiz decrete, por iniciativa própria, por requerimento do Ministério Público ou por representação da autoridade policial, a prisão cautelar do autor da violência.

Medidas protetivas de urgência (arts. 22 a 24).

As medidas protetivas de urgência - MPUs são consideradas medidas cautelares, diversas da prisão, voltadas à proteção da mulher em situação de violência. É um dos grandes avanços da LMP e visa garantir a integridade física e psicológica da mulher em situação de risco durante (e até mesmo antes) do processo. Algumas medidas comumente concedidas contra o ofensor são: proibição de contato com e aproximação da ofendida e de testemunhas, afastamento do lar e suspensão do porte de armas. As mulheres também podem ser submetidas a medidas protetivas, visando a assistência e proteção contra a violência, como encaminhamento à equipe multidisciplinar, inclusão no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal, acesso prioritário a remoção, quando servidora púbica, manutenção do vínculo trabalhista quando necessário o afastamento do local de trabalho. No entanto, para as ofendidas, não existe o caráter compulsório que existe para os ofensores. Estes, se não cumprirem as MPUs a eles impostas, estão sujeitos à prisão preventiva.

Possibilidade de condução do agressor a programas de reeducação e reestruturação (arts. 45 a art. 152 da Lei de Execucoes Penais).

Após a condenação do autor da violência, este poderá ser submetido a programas específicos para refletir e se reeducar sobre o tema, objetivando, com isso, diminuir a reincidência e as violências cometidas.

Retratação da representação em audiência (art. 16).

Essa inovação da LMP é uma das mais conhecidas e visa garantir maior segurança na continuidade dos atos processuais e na proteção das mulheres. Se, antes, sendo disponível a ação penal à vontade da ofendida, bastava ela se manifestar pela desistência do processo (retratação) para o seu arquivamento. É o popular “dar queixa” e “retirar a queixa”. Agora, somente poderá desistir do processo em audiência específica para esse fim (art. 16). Ressalte-se, entretanto, que se trata de direito subjetivo da mulher em situação de violência. Por isso, somente ela poderá requerer a audiência. Nem mesmo o/a juiz/a poderá marcar de ofício audiência para a manifestação da mulher em continuar o processo. Nessa audiência deverá ser avaliada a situação de risco que ela vive por magistrados/as e Ministério Público para acatamento ou não do pedido de arquivamento. É importante ressaltar que apenas alguns tipos de violência que dependem de representação possibilitam a aplicação do art. 16, a exemplo do crime de ameaça.

A lesão corporal leve é submetida à ação penal pública incondicionada.

Como a lei 9.099/95 foi completamente afastada dos casos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 41 da LMP), a previsão de que as lesões corporais leves dependeriam de representação das mulheres também foi afastada pela LMP, de forma que a regra penal foi reestabelecida, sendo, portanto,desnecessária a representação (a anuência) da mulher em situação de violência para o processamento e prosseguimento da ação penal.

Essa questão tornou-se uniformizada após a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 4424, que consolidou o entendimento que não se aplica a Lei nº 9.099/1995, dos Juizados Especiais, aos crimes da Lei Maria da Penha e que nos crimes de lesão corporal praticados contra a mulher no ambiente doméstico, mesmo de caráter leve, atua-se mediante ação penal pública incondicionada (sem necessidade de consentimento da ofendida). Tal mudança foi importante para garantir a integridade física e psicológica das mulheres, pois muitas ficavam à mercê dos ofensores, sob mais ameaças, caso não desistissem de dar prosseguimento ao processo.

Proibição de pagamento de cestas básicas, multas ou quaisquer outras penas pecuniárias, penas vazias em seu conteúdo, que leva a crer que a agressão foi barata (art. 17).

Sob a Lei nº 9.099/95, a violência contra as mulheres era tida como crime banal de menor importância. Comumente, os casos de violência levados aos Juizados Especiais Criminais resultavam em pagamento de cestas básicas, prestação de serviço comunitário ou outras formas alternativas que banalizavam o conflito e menosprezavam os reflexos na saúde mental e física das mulheres em situação de violência.

Assim, antes de se tornar propriamente uma ação penal, a notícia de violência doméstica e familiar contra a mulher demanda uma fase preliminar, que geralmente inicia na Polícia.

Após a fase preliminar, havendo elementos suficientes, o Ministério Público oferece denúncia, que poderá ser recebida ou não pelo/a magistrado/a. Se recebida, dá-se início à ação penal conforme o rito previsto no Código de Processo Penal Brasileiro. Alguns crimes, como injúria (Código Penal, Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou decoro) ou difamação (Código Penal, Art. 139 - difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação), dependem da iniciativa das/os defensoras/es da mulher em situação de violência para serem devidamente processados.

Importante notar que a mulher deve ser informada de todos os atos, e deverá estar sempre acompanhada de advogado/a, ressalvado o pedido de medidas protetivas de urgência que poderá ser feito a qualquer tempo sem a presença de advogada/o (art. 27 c/c 19).

Dentro das relações afetivas, conjugais e familiares, notam-se algumas dimensões que sustentam situações violentas:

  • Intensidade e ambiguidade afetiva;
  • Ciclo de violência com intensidades diversas;
  • Dificuldade de reflexão e de identificação da violência;
  • Dificuldade de rompimento do ciclo;
  • Silêncio e segredo;
  • Medo;
  • Adesão rígida a papéis de gênero;
  • Culpa/disciplina como elementos justificadores da violência;
  • Negação da experiência violenta;
  • Necessidade de preservação da família.

Muitos desses obstáculos e representações são projetados para dentro das instituições, incluindo as instituições policiais e judiciais, o que dificulta o enfrentamento eficaz dessa problemática.

Veja alguns desafios direcionados aos/às profissionais que atuam nessas situações:

  • Sensibilização e formação/capacitação de profissionais e estudantes (de Direito, Psicologia, Serviço Social) para as questões de gênero, bem como como para demandas específicas de violência doméstica e familiar contra a mulher;
  • Criação de serviços de atendimento especializados para acolhimento e respeito ao tempo e à demanda das pessoas atendidas;
  • Articulação entre os serviços para um atendimento integral e eficaz à mulher em situação de violência;
  • Respeito à diversidade;
  • Articulação entre conhecimento prático e teórico a respeito da violência de gênero;
  • Autocrítica acerca de posturas e linguagens sexistas, classistas, racistas e homofóbicas;
  • Esforço para romper com modelos, estereótipos e crenças patriarcais que legitimam a violência.

Nota-se, na prática, para além dos aspectos técnicos e dentro do cotidiano das pessoas envolvidas em situação de violência doméstica contra a mulher, uma dificuldade em rever as relações de gênero permeadas pelas hierarquias e assimetrias de poder, geralmente imbricadas nos papéis tradicionalmente impostos ao homem e à mulher.

Ao mesmo tempo, o sistema de justiça e outros serviços de atendimento às mulheres em situação de violência também são permeados por essas representações de gênero, ou seja, em bases muito semelhantes àquelas sobre as quais a violência interpessoal, familiar ou doméstica e nas relações afetivas presente ou passadas é construída. Ocorre, portanto, que o sistema reproduza violências e desigualdades.

A seguir vamos dialogar sobre os desafios e obstáculos no enfrentamento da violência contra as mulheres, conhecendo um pouco mais sobre os serviços de atendimento, a importância da articulação dos serviços em rede, além dos conceitos de ciclo da violência, rota crítica, mitos, entre outros.

 

A prevenção e a proteção social às mulheres em situação de violência

Vamos conhecer algumas das estratégias de prevenção e de proteção social das mulheres em situação de violência, que contribuíram para retirar esse fenômeno da invisibilidade, elevando-o à categoria de problema social grave, de responsabilidade de todos, sociedade e estado. No decorrer dos estudos, vamos observar que, mesmo antes da Lei Maria da Penha, já tinham sido adotadas diversas medidas para essa finalidade por organizações não governamentais, estados e municípios, dentre as quais destacamos a concepção da estruturação da rede de serviços de proteção e de assistência.

Lei Maria da Penha reforçou a importância do trabalho em rede, quando previu a articulação entre estado e sociedade civil, bem como a integração operacional entre o Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública com as áreas da segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho, habitação, dentre outras.

Curiosidade: Você sabia que 75% das mulheres que relatam viver em situação de violência sofrem agressões semanal ou diariamente? Em mais de 70% dos casos, a violência foi cometida por homens com quem as vítimas têm ou tiveram algum vínculo afetivo! (Dados fornecidos pela Central de Atendimento à Mulher – 180 em 2015)

A violência contra as mulheres começou a sair da invisibilidade e se tornar parte da agenda pública no país na década de 1980, conforme vimos anteriormente. Nessa ocasião, os movimentos de mulheres e feministas, que já vinham denunciando as mortes de mulheres pelos seus maridos/companheiros, sob o slogan “quem ama não mata”, colocaram em prática outras estratégias, a exemplo dos SOS Mulher e as delegacias da mulher.

Uma das primeiras estratégias de abordagem do problema foi a criação do SOS mulher, pelos movimentos de mulheres e feministas, na cidade de São Paulo, Campinas, Belo Horizonte, Recife e outras capitais do país, de caráter voluntário e solidário. Nesses locais eram ofertados acolhimento, orientação jurídica e psicológica às mulheres que chegavam em busca de apoio. A possibilidade de encontrar acolhida para seus problemas atraiu um contingente imenso de mulheres a esses espaços. Segundo Taube (2002, p. 178) o primeiro ano de funcionamento do SOS Mulher de Campinas foi surpreendente "mulheres chegavam pedindo socorro e, aflitas, tinham pressa em resolver problemas, às vezes antigos, crônicos".

A partir da constatação da magnitude do problema, crescia a noção de responsabilização do Estado em criar políticas públicas de prevenção e proteção das mulheres em situação de violência.

Assim, por ocasião da redemocratização do país, os movimentos de mulheres e feministas levaram suas demandas aos governos estaduais, recém-eleitos em 1982, pelo voto direto. Entre essas, a criação dos conselhos dos direitos das mulheres e das delegacias especiais de atendimento às mulheres. A primeira, criada pelo governo de São Paulo em 1985, foi denominada Delegacia de Defesa da Mulher (DDM). As demais receberam o nome de Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM) tornando-se essa política pública uma das principais portas de entrada das mulheres para a rede de atendimento.

Entre 1985 e 1986, foram criadas 19 delegacias especiais de atendimento à mulher. Entre as décadas de 1990 e 2000, houve novo impulso para a criação de mais unidades nas capitais e cidades do interior do país, sendo que em 1993, foi detectada, pela Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Violência contra a Mulher da Câmara de Deputados, a existência de 125 Delegacias da Mulher.

A partir da criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres, em 2003, cresceram os números de DEAMs e de Núcleos ou Postos de Atendimento à Mulher nas delegacias comuns. Em 2011, eram 359 delegacias especiais e 111 postos de atendimento à mulher nas delegacias comuns (SPM, 2011). O IPEA (2015) registra o total de 506 unidades, entre delegacias (381) e núcleos ou postos de atendimento (125).

No entanto, a expansão das delegacias no território nacional se deu de forma desigual, sendo a maioria delas concentradas na região Sudeste, com 217 unidades. A Região Sul conta com 95 unidades, Nordeste (80), Centro-Oeste (67) e Norte (47). Os municípios que apresentaram os maiores números de DEAMs foram São Paulo (9), Rio de Janeiro (3) e Teresina (3). Embora haja progressivo aumento do número de delegacias especializadas, este tipo de serviço está presente em apenas 7,9% dos municípios brasileiros.

Embora as delegacias da mulher sejam mais importantes instrumentos de políticas públicas no enfrentamento da violência contra as mulheres, pouco depois de entrarem em funcionamento, revelaram-se insuficientes para atender as demandas das mulheres, frente à complexidade do problema.

De acordo com Télia Negrão (2004, p.228), verificou-se a existência dos seguintes problemas:

a) esbarrava em um poder judiciário conservador;

b) na falta de uma legislação específica para a violência de gênero;

c) falta de capacitação de pessoal para tratar do tema; e

d) na ausência de mecanismos para garantir a segurança e a vida das mulheres que apresentavam as queixas, pois após o registro das ocorrências tinham que retornar para suas casas portando intimações aos seus agressores.

Vimos que a Declaração de Viena (1993) e a Convenção de Belém do Pará (1994) reforçam a responsabilidade do Estado na prevenção e proteção das mulheres em situação de violência, pois tanto a ação quanto a omissão, passam a ser consideradas violação de direitos humanos das mulheres. Isso contribuiu para um incremento nas políticas públicas de prevenção na década de 1990, mediante a criação de outros serviços, além das delegacias e serviços de apoio feministas. Vamos conhecê-los?

Surgiram, então, os centros de referência para as mulheres, vinculados ao Ministério da Justiça, Casas-Abrigo, Defensorias Públicas especializadas, serviços universitários que incorporavam novas modalidades de acolhimento e escuta, bem como de atendimento psicológico, públicos e privados, serviços de acolhimento criados pelos conselhos de direitos, além das diversas modalidades de atendimento prestadas pela sociedade civil.

Interessante observar o avanço, mesmo que lento e gradativo, das políticas públicas voltadas à criação dos serviços de atendimento às mulheres em situação de violência, face à ausência de uma lei específica que garantisse a prevenção e proteção integral. Contudo, os atendimentos dos diversos serviços, com maior ênfase nas delegacias, eram realizados de forma isolada, fragmentada, o que não propiciava às mulheres uma assistência integral e em rede.

Foram identificados pontos críticos na rota percorrida pelas mulheres pelos diversos serviços para sair da situação de violência vivenciada, entre os quais, a falta de articulação entre os serviços, desconhecimento acerca da existência do ciclo de violência nas relações conjugais e a reprodução de estereótipos e mitos que alimentam a crença de que a violência contra a mulher deveria ser resolvida “em casa”, no espaço privado.

O atendimento fragmentado dos diversos serviços, o ciclo de violência e também os mitos acerca da violência influenciam a qualidade do atendimento e a rota crítica percorrida pelas mulheres.

A rota crítica diz respeito ao caminho percorrido pelas mulheres, a partir de um conjunto de decisões e ações para lidar com a situação de violência. Essa rota não é linear e vai se alterando em função das respostas recebidas das pessoas ou instituições (SCHRAIBER, 2005).

O que vem a ser o ciclo de violência?

A complexidade do fenômeno da violência contra as mulheres, especificamente a violência conjugal, é também explicada sob o enfoque da psicologia por Lenore Walker, autora estadunidense, em 1979. De acordo com Walker (1979), os episódios de violência são cíclicos e passam por três fases.

  1. A primeira é o período de tensão, no qual os conflitos se exacerbam e ofensas verbais são proferidas;
  2. A segunda fase corresponde àquela em que a tensão se torna aguda, chegando a agressões físicas, sexuais, abusos, acusações, etc;
  3. A terceira é a fase de lua de mel, do arrependimento e das promessas de mudanças e de não repetição das práticas violentas.

Contudo, é comum que, após um período de relativa tranquilidade, o ciclo venha a se repetir, podendo ser cada vez mais graves os episódios de violência, com durações variáveis de cada fase. As pessoas dentro do ciclo, têm imensa dificuldade em se desvencilhar sem um apoio externo.

Protocolo de Atención de la Violencia Sexual y Doméstica en el Departamento de Medicina Legal, editado pelo Ministério Público da Costa Rica, em seu anexo 4, detalha as atitudes de mulheres e homens, nas distintas fases do ciclo de violência doméstica.

Outro aspecto relevante diz respeito aos mitos sociais que permeiam o imaginário social e que são, muitas vezes, responsáveis por sustentar ideias equivocadas que legitimam ou que justificam a violência contra as mulheres. Conhecer esses mitos é importante para a sua desconstrução, pois limitam e perpetuam o ciclo de violência. Veja abaixo, alguns exemplos desses mitos:

1. A família é o local mais seguro que existe, o perigo está mesmo é nas ruas.

50,3% dos assassinatos das mulheres brasileiras são cometidos por um familiar direto da mulher (7 por dia), de acordo com o Mapa da Violência, 2015. Esse dado contraria a máxima da segurança doméstica. Violências contra as mulheres são cometidas por pessoas do círculo familiar, afetivo e dentro da própria casa.

2. Violência contra a mulher é reflexo da cultura da pobreza.

A violência doméstica e familiar perpassa todos os grupos sociais, independente de renda, cor, religião, orientação sexual e idade, pois é decorrente das desigualdades de gênero e não necessariamente de classe.

3. O álcool e as drogas são a maior causa da violência.

O álcool e as drogas são fatores de risco associados à violência, são desinibidores, agravantes para a situação, mas não configuram condições para o surgimento da violência. Pessoas que não bebem podem ser violentas e pessoas que bebem não necessariamente o são.

4. Mulher gosta de apanhar.

Trata-se de um mito de banalização da violência contra as mulheres, sobretudo quando a mulher permanece no relacionamento após um ou vários episódios de violência. Essa atitude se explica a partir da análise do contexto da violência e muitos fatores podem contribuir para que a mulher permaneça em um relacionamento abusivo, entre eles porque está inserida no ciclo de violência, com crenças anestésicas, sob ameaça e dentro de um contexto oscilante.

5. Mulher espancada é masoquista.

Culpar a mulher é uma estratégia banalizadora, fruto da estrutura machista e patriarcal. Ninguém gosta ou deseja sofrer/apanhar.

6. Dito popular: “Se você não sabe por que bateu na sua esposa, não se preocupe, ela sabe”.

A ideia de disciplina, de correção é muito utilizada para se justificar inadequadamente a violência, que nunca possui reais justificativas. Perpetua-se a crença de que, se a mulher fez algo errado, é merecedora do abuso.

7. Homem que bate em mulher é louco.

Já ficou demonstrado que há um pequeno percentual de agressores que apresentam verdadeiramente problemas mentais ou patologias psíquicas. Em verdade, a violência é caracterizada por um ato consciente, com a finalidade de obter controle e poder na relação.

8. Tapinha de amor não dói.

Violência dói e muito. Pesquisas mostram que mulheres em situação de violência passam grande parte do seu dia/convivência, negociando a não violência. O sistema de saúde suporta graves consequências da violência na vida, no corpo e na mente das mulheres.

9. Mulheres costumam mentir que foram estupradas.

Ao contrário do que afirma esse mito, mulheres não costumam mentir, tendem a ocultar por vergonha, medo, impunidade do agressor. Essa crença fortalece também a tendência em se culpar e responsabilizar as mulheres pelo abuso sofrido.

10. Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher.

Apesar de aparentemente ultrapassado, esse mito ainda é muito frequente. Vizinhos/as, familiares, amigos/as e o Estado se omitem frente a situações de violência conjugal. Ainda falta a internalização social da ideia de que todos/as, inclusive e principalmente o Estado, são responsáveis pela prevenção e erradicação da violência contra as mulheres.

11. Violência contra a mulher é fenômeno raro.

Mais uma tentativa de minimizar a prioridade em medidas de controle, prevenção e combate à violência contra a mulher. Contrariamente a esse mito, a Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180, registrou, de janeiro a outubro de 2015, 31.432 relatos de violência física (49,82%), 19.182 relatos de violência psicológica (30,40%), 4.627 relatos de violência moral, entre outras.

A Rede de Apoio e a superação da rota crítica

A rota crítica pode ser compreendida pelas dificuldades e obstáculos enfrentados pelas mulheres em situação de violência que desenha uma trajetória de idas e vindas, círculos, que fazem com que o mesmo caminho seja repetido sem resultar em soluções e, sobretudo, apontam investimento de energias e repetições que levam a desgaste emocional e revitimização (CAMARGO;AQUINO, 2003, p)

Como estratégia de superação das dificuldades enfrentadas pelas mulheres em situação de violência, foi proposta pelo movimento de mulheres, nos anos 1990, a Rede de Apoio. Setores da Saúde, Educação e outros já utilizavam esse sistema. No âmbito da violência contra a mulher, teria a delegacia como porta de entrada para a denúncia, e serviços vinculados a assistência social, saúde, trabalho, renda, justiça e outras (NEGRÃO, 2004).38).

Segundo o Guia Vem pra Roda! Vem pra Rede!, das autoras Denise Carreira e Valéria Pandjiarjian (2003, p.), duas redes são importantes em se tratando de violência de gênero:

1) a rede primária - Ela pode ser formada por aqueles (as) parentes, amigos (as), conhecidos (as) e vizinhos (as) que fazem a diferença na vida de cada um (a).

Quanto mais isoladas (os) estiverem as mulheres e os homens que vivenciam situações de violência ou o ciclo da violência doméstica, mais vulneráveis as vítimas estarão e maiores as dificuldades para que a violência acabe.

As redes primárias têm importante papel na prevenção e na denúncia de situações de violência de gênero, além de propiciar o necessário apoio emocional, material e social para o rompimento do ciclo da violência, que muitas vezes se mantém por anos quando não há atendimento e apoio adequados. Fortalecer os vínculos das redes primárias deve se constituir em objetivo para os projetos, os programas e as políticas que visam ao enfrentamento da problemática, como também para todos (as) aqueles (as) responsáveis por criar condições de proteção e desenvolvimento de qualquer população, comunidade ou grupo socialmente vulnerável, como crianças e adolescentes, idosos, mulheres chefes de família de comunidade de baixa renda, portadores de necessidades especiais, entre outros.

2) a rede secundária - acontecem entre indivíduos e instituições governamentais e não governamentais, grupos e associações comunitárias, organizações de mulheres, entre outros, que atuam em um determinado local, município ou estado. As redes secundárias são constituídas por organizações que prestam atendimento especializado, fornecendo informações e orientações a uma determinada população.

A noção de rede foi institucionalizada pela Secretaria de Políticas para as Mulheres que passou a coordenar as ações de enfrentamento da violência contra as mulheres, a partir de sua criação em 2003. De acordo com a Secretaria, a Rede de Enfrentamento da Violência contra à Mulher significa (SPM, 2011):

Atuação articulada entre as instituições/serviços governamentais, não-governamentais e a comunidade, visando ao desenvolvimento de estratégias efetivas de prevenção e de políticas que garantam o empoderamento e construção da autonomia das mulheres, os seus direitos humanos, a responsabilização dos agressores e a assistência qualificada às mulheres em situação de violência.

A Rede de Enfrentamento da violência é ampla e tem por objetivo dar conta do fenômeno da violência que atinge as mulheres, atuando em quatro eixos do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência contra as Mulheres: o combate, prevenção, assistência e garantia de direitos. Integram a Rede de Enfrentamento:

  • Agentes governamentais e não-governamentais formuladores, fiscalizadores e executores de políticas voltadas para as mulheres (organismos de políticas para as mulheres,
  • ONGs feministas,
  • Movimento de mulheres,
  • Conselhos dos direitos das mulheres,
  • Outros conselhos de controle social;
  • Núcleos de enfrentamento ao tráfico de mulheres;
  • Serviços/programas voltados para a responsabilização dos agressores;
  • Universidades;
  • Órgãos federais, estaduais e municipais responsáveis pela garantia de direitos (habitação, educação, trabalho, seguridade social, cultura); e
  • Serviços especializados e não-especializados de atendimento às mulheres em situação de violência (que compõem a rede de atendimento).

A Rede de Enfrentamento da Violência inclui também a rede de atendimento, conforme consta do último item acima. Essa rede é formada pelos diversos serviços que atuam diretamente nos casos de violência contra a mulher, a exemplo de:

  • Centros de Referência de Atendimento à Mulher;
  • Núcleos de Atendimento à Mulher;
  • Casas-Abrigo;
  • Casas de Acolhimento Provisório;
  • Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs);
  • Núcleos ou Postos de Atendimento à Mulher nas Delegacias Comuns;
  • Polícia Civil e Militar;
  • Instituto Médico Legal;
  • Defensorias da Mulher;
  • Juizados de Violência Doméstica e Familiar;
  • Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180;
  • Ouvidorias;
  • Ouvidoria da Mulher da Secretaria de Políticas para as Mulheres;
  • Serviços de Saúde voltados para o atendimento dos casos de violência sexual e doméstica;
  • Posto de Atendimento Humanizado nos Aeroportos;
  • Núcleo da Mulher da Casa do Migrante;
  • Casa da Mulher Brasileira.

Conforme vimos, a Lei Maria da Penha imprimiu um novo paradigma de atenção às mulheres em situação de violência, criando procedimentos específicos para a atuação dos diversos serviços de atendimento, entre os quais, as delegacias (comuns ou especializadas). A Lei previu a criação dos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFM) e Equipe Multidisciplinar, no âmbito do Poder Judiciário.

O sistema de proteção da Lei da Maria da Penha abrange diversas ações, entre as quais: (a) articulação operacional entre os diversos serviços de atendimento às mulheres no âmbito da justiça, da assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação; (b) promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações; (c) elaboração de campanhas educativas de prevenção e de conscientização; (d) capacitação permanente dos profissionais que atuam nos órgãos de segurança pública (Polícias Civil e Militar, Guarda Municipal, Corpo de Bombeiros), bem como no sistema de justiça quanto às questões de gênero, raça e etnia; (d) inclusão da temática nas diretrizes curriculares nacionais, que devem abordar, de forma transversal e interdisciplinar, os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero, raça e etnia e à violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras.

A capacitação permanente dos profissionais que atuam nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher é defendida pelos movimentos de mulheres e feministas desde a criação das delegacias especiais, com vistas ao atendimento humanizado e qualificado às mulheres em situação de violência. Algumas formações foram realizadas no início, mas revelou-se um processo descontinuado. A capacitação dos agentes faz parte de um dos eixos da prevenção e assistência previsto na Política Nacional de Enfrentamento da Violência contra a Mulher, cuja execução está vinculada às parcerias com estados e municípios.

Nesse sentido, diversas normas de padronização de rotinas foram criadas, no âmbito dos serviços de atendimento, a exemplo da Norma Técnica de Padronização das Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres; Norma Técnica de Atenção Humanizada às Pessoas em Situação de Violência Sexual; Diretrizes Nacionais para o Abrigamento de Mulheres em Situação de Risco e de Violência; Tráfico de Mulheres- Política Nacional de Enfrentamento; Diretrizes Nacionais Feminicídio.

Com o objetivo de fortalecer a rede de enfrentamento da violência contra a mulher, foi publicado, em 2016, o Protocolo Regional para a investigação com perspectiva de gênero dos crimes de violência contra as mulheres cometidos no âmbito intrafamiliar, adaptado à realidade brasileira, a partir de texto-base desenvolvido no âmbito dos países Ibero-americanos. Esse protocolo é direcionado aos agentes do sistema de justiça e de segurança pública, incluindo, portanto, as delegacias comuns, sempre que os fatos criminosos envolverem uma situação de violência doméstica e familiar contra a mulher. As orientações destinam-se aos/as servidores/as e membros/as do Ministério Público e aos/às profissionais e instituições do sistema de segurança pública, compreendido aqui pela Polícia Civil, Polícia Militar e Científica.

O Protocolo é minucioso nas orientações aos agentes que trabalham na persecução criminal dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Aqui, destacamos alguns trechos do Protocolo que esclarecem o que significa investigar os crimes de violência contra as mulheres, com perspectiva de gênero:

  • Colocar as mulheres, em situação de violência doméstica e familiar –, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade ou religião – no centro da investigação, adotando todos os cuidados necessários para assegurar seu acompanhamento e proteção, bem como de seus familiares, ao longo da investigação e o adequado andamento dos procedimentos de inquérito policial e processamento judicial.
  • Adquirir capacidades e ferramentas necessárias para eliminar preconceitos e estereótipos na análise, tratamento e investigação dos crimes, particularmente na atenção dada à mulher em situação de VDF ou aos/à seus/suas familiares, erradicando qualquer comportamento discriminatório ou barreiras de acesso à justiça, bem como evitando qualquer comentário ou atitude culpabilizadora.
  • Atuar de forma a impedir qualquer possibilidade de as mulheres atendidas sofrerem violência institucional em quaisquer órgãos e/ou unidades que procurarem, de modo que não sejam submetidas ao retardo do atendimento, à falta de interesse das equipes e/ou agentes em escutá-las e orientá-las adequadamente ou mesmo na discriminação explícita com palavras e atitudes condenatórias ou preconceituosas.

 

Para finalizar

Até aqui, focamos nossa atenção na origem e aspectos inovadores da Lei Maria da Penha, inclusive no reforço que essa Lei imprime à proteção integral às mulheres em situação de violência. A seguir, abordaremos as especificidades da Lei, conceitos, formas de violência e medidas protetivas, concluindo com um estudo de caso para reflexão do conteúdo do curso.

Para refletir: a proteção contra a violência que atinge mulheres e meninas integra as leis orçamentárias de seu Município? Conta com algum serviço de atendimento? Quais?

 

Lei Maria da Penha na prática

Vamos dialogar um pouco mais sobre a especificidade da Lei Maria da Penha às mulheres, os conceitos, formas de violência e sobre o sistema de proteção às mulheres, em relação às medidas protetivas. Dessa forma, convido você a imergir na problemática apresentada no “estudo de caso” e refletir sobre as questões propostas, a partir do conteúdo apresentado ao longo do curso.

Ao você será capaz de:

  • Conhecer as diferentes formas de violência doméstica e familiar contra a mulher;
  • Listar algumas condutas que caracterizem violência física, psicológica, sexual, patrimonial;
  • Identificar a interseccionalidade entre a violência contra a mulher e outros marcadores de desigualdade;
  • Reconhecer a importância de uma lei específica para as mulheres em situação de violência;
  • Listar as medidas protetivas de urgência às mulheres em situação de violência;
  • Listar as medidas protetivas de urgência que obrigam ao autor da violência;
  • Identificar, a partir de um caso fictício, as formas de violência contra as mulheres;
  • Refletir sobre as práticas de atendimento às mulheres em situação de violência;
  • Listar algumas dificuldades enfrentadas pelas mulheres para a denúncia da violência nas relações domésticas e familiares.

Conhecendo a Lei Maria da Penha: destinatárias, conceitos, formas de violência

Vamos concentrar nossa atenção no texto da Lei Maria da Penha, em relação a sua especificidade para os casos de violência contra a mulher nas relações domésticas, familiares e afetivas, conceitos, formas e condutas exemplificativas da violência. Para iniciar nossa conversa, perguntamos: Por que uma lei específica para a mulher em situação de violência? Chamando a atenção para os aspectos socioculturais e jurídicos que justificam uma lei específica para as mulheres em situação de violência, Streck (2011, p. 99-100) pontua:

“A Lei Maria da Penha, por ser uma lei específica, fere a igualdade entre homens e mulheres?

(...) A Lei Maria da Penha, votada democraticamente pelo Parlamento brasileiro, discutida no âmbito da esfera pública, não sofre de vício de inconstitucionalidade. E isso por várias razões. Trata-se de uma Lei que preenche um gap histórico, representado por legislações anteriores que discriminavam as mulheres e, se não as discriminavam explicitamente, colocavam o gênero feminino em um segundo plano. Isso pode ser visto no velho Código Penal de 1940, em que, até há pouco tempo, o estupro era considerado “crime contra os costumes”. Somente nos últimos anos passou-se denominá-lo “crime contra a dignidade sexual” (pode ser também “crime contra a liberdade sexual”).

Destaque-se, neste mesmo sentido, que o imaginário dos juristas continua a sustentar legislação de cunho discriminatório, eis que parte da doutrina penal ainda considera que o “marido tem o direito de obrigar a mulher a praticar, em ele, o ato sexual”. Claro que isso pode se dever ao fato de que alguns penalistas – cujos Manuais ainda tratam desse modo a matéria – não corrigiram sua doutrina após o advento da Constituição de 1988. Mas, de todo modo, sempre resta uma questão: o fato, inconteste, de que em algum momento, os Tribunais brasileiros sufragaram a tese da violência institucionalizada no sexo de um casal (não cito os autores e nem os acórdãos para poupar seus protagonistas de constrangimento).

Por outro lado, não é necessário falar, aqui, da legítima defesa da honra, tese que, até há pouco tempo, vicejava no Tribunal do Júri. Desnecessário, também, lembrar que a mulher era dispensada do serviço do Júri, em face dos afazeres domésticos. Tampouco, precisamos repisar julgamentos recentes acerca da violência contra a mulher (e contra crianças) e o modo como o gênero feminino é tratado...!

E o que dizer dos meios de comunicação, que historicamente incentivam esse tratamento infamante à mulher? Quem não lembra da personagem vivida pela atriz Cristiane Torloni, que na novela Mulheres Apaixonadas, dizia, em um dos primeiros capítulos, que sua vida estava um tédio, que queria mesmo “é sair”, “levar uns tapas”... tudo em rede nacional, com audiência de mais 70% dos aparelhos ligados. Outra novela – e é importante citar o exemplo desses tipos de folhetim pela sua penetração/incorporação pelo imaginário social – que tratou da temática de modo similar foi A Próxima Vítima. No folhetim, o personagem vivido por José Wilker, Marcelo, em face do adultério de Isabela (vivida pela atriz Cláudia Ohana), corta-lhe o rosto, produzindo uma profunda cicatriz, o que fazia com que a personagem, no restante da novela, andasse com o rosto coberto pelos longos cabelos. Pois bem. Procurado pela polícia, Marcelo reúne-se com suas três filhas e lhes relata o acontecido. Ao que uma de suas filhas diz: não se preocupe, papai – “ela mereceu”. È necessário dizer algo mais para fundamentar a necessidade de leis específicas para desigualar a desigualdade?

A violência contra as mulheres tem sido tema de reflexão em diversos países do mundo, inclusive no Brasil, com ampla produção teórica e empírica, e também pelos organismos internacionais de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização dos Estados Americanos (OEA), conforme vimos alhures. No entanto, a Lei Maria da Penha, logo que foi publicada, em 2006, causou estranheza no mundo jurídico, em especial aos aplicadores da lei (juízes, promotorias, delegacias, servidores (as) da justiça que lidavam com essas questões) que resistiam à adoção de um novo paradigma aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, conferindo especificidade à proteção das mulheres e afastando definitivamente a Lei no. 9.099/95 desses casos.

Essa discussão chegou ao Supremo Tribunal Federal que, mediante decisão na Ação Direta de Constitucionalidade nº 19/2012, entendeu que:

O art. 1º. da Lei no. 11.340/06 surge, sob o ângulo do tratamento diferenciado entre os gêneros – mulher e homem -, harmônica com a Constituição Federal, no que necessária a proteção ante as peculiaridades física e moral da mulher e a cultura brasileira (...).

Infere-se da decisão do Supremo Tribunal Federal que o tratamento diferenciado conferido pela Lei Maria da Penha às mulheres em situação de violência está de acordo com a Constituição Federal de 1988 e os documentos internacionais de direitos humanos, pois, regra geral, as leis não podem discriminar (tratar diferentemente as pessoas) a não ser que as leis, contendo tratamento diferenciado, tenham por objeto criar mecanismos para alcançar a efetiva igualdade.

Esse é o caso da Lei Maria da Penha, considerando que a violência nas relações doméstico-familiares e afetivas atinge, majoritariamente, as mulheres. De acordo com Schraiber et al (2005, p. 31), as relações interpessoais são permeadas por relações desiguais de poder e a violência é expressão máxima dessa desigualdade; nas palavras das autoras, a violência representa “a radicalização da desigualdade entre homens e mulheres”.

Pelos dados da Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180, política pública criada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, do governo federal, para auxiliar e orientar as mulheres em situação de violência por meio do número de utilidade pública 180, a violência doméstica e familiar contra as mulheres ainda constitui um grande desafio à sociedade e estado, mesmo após anos de vigência da Lei Maria da Penha. Para se ter uma ideia, no Balanço de 10 anos do Ligue 180 (2005 a 2015), esse serviço acumula quase 5 milhões de atendimentos, sendo 552.748 relatos de violência contra as mulheres, os quais, na maioria dos casos, referem-se à violência física e psicológica.

Em 2015, de janeiro a outubro, foram realizados 634.862 atendimentos, sendo 63.090 relatos de violência. Desse total, 85,85% correspondiam à violência doméstica e familiar contra as mulheres e 58,55% foram cometidos contra mulheres negras. O serviço atendeu ligações provenientes dos 27 estados da federação, sendo que o Distrito Federal, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro despontam em número de relatos de violência. Apenas 9% eram relatos provenientes da zona rural.

Em relação ao conteúdo dos relatos, podemos citar:

  • 31.432 relatos de violência física (49,82%);
  • 19.182 relatos de violência psicológica (30,40%);
  • 4.627 relatos de violência moral (7,33%);
  • 1.382 relatos de violência patrimonial (2,19%);
  • 3.064 relatos de violência sexual (4,86%);
  • 3.071 relatos de cárcere privado (4,87%); e
  • 332 relatos de tráfico de pessoas (0,53%).

Foram observadas as seguintes variações nos registros:

  • Aumento de 136,6% no número de violências sexuais (estupro, assédio, exploração sexual), computando a média de dez registros por dia;
  • Aumento de 165,27% no número de estupros registrados, computando a média de oito casos por dia, um a cada três horas;
  • Aumento de 300,39% de relatos de cárcere privado, computando a média de dez registros por dia.

A maioria dos relatos se refere a violência nas relações heterossexuais, cometidas por homens com quem as vítimas têm ou tiveram algum vínculo afetivo: companheiros, cônjuges, namorados ou amantes, ex-companheiros, ex-cônjuges, ex-namorados ou ex-amantes das vítimas. A frequência das agressões foi considerada alta, a maioria dos casos ocorrendo diária ou semanalmente, com alto risco de feminicídio (morte) ou espancamento ou outro dano físico; a maioria das mulheres declarou ter filhos, e entre essas, a maioria declarou que os (as) filhos (as) presenciaram ou sofreram a violência. A análise do perfil das mulheres em situação de violência revela que elas se autodeclararam pardas, brancas, pretas, amarela e indígenas. (SPM, 2015, p. 12).

Quem são as mulheres destinatárias da Lei Maria da Penha?

A pluralidade de mulheres pode se valer da Lei Maria da Penha, em caso de violência nas relações doméstico-familiares e afetivas. Observe o comando do art. 2º da Lei, que estabelece:

Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Nota-se que as destinatárias da Lei não são consideradas um grupo homogêneo, mas sim mulheres singulares, em suas especificidades identitárias. Assim, mulheres negras, indígenas, brancas, de qualquer outra cor e etnia, heterossexual, lésbica, bissexual, transexual, pobre, rica, com deficiência, assalariada, pensionista, desempregada, ciganas, ribeirinhas, camponesas, lavradoras, costureiras, quebradeiras de coco, do lar, gerentes, executivas, professoras, servidoras públicas, prostitutas, quilombola, da área rural ou urbana, de qualquer outra região do País; estudante, analfabeta, nível fundamental, médio, superior, pós-graduada; criança, adulta, jovem ou idosa; evangélica ou de religião de matriz africana, católica, entre outras, têm direito a viver sem violência.

De acordo com o Dossiê da Violência contra as Mulheres, a violência impacta diferentemente as mulheres:

“Nesse contexto, a situação se agrava para as mulheres negras também ao buscar pelo apoio do Estado para enfrentar a violência vivida. Elas são, no geral, revitimizadas – por exemplo, quando profissionais de saúde tendem a tratar suas queixas como menores por considerá-las “mais fortes”. Muitas vezes quem atende essas mulheres sequer tem conhecimento técnico para identificar lesões como hematomas na pele negra”.

Conforme já mencionamos em nosso diálogo, a violência de gênero intersecciona com outros marcadores de desigualdade, a exemplo da questão racial, classe social, geracional, entre outros. Quanto à questão geracional, é importante considerar que a maior incidência da violência recai sobre as jovens, principalmente em idade reprodutiva, mas a violência alcança as mulheres em todas as faixas de idade e, portanto, também as mulheres idosas. Nessa fase da vida, as mulheres estão mais suscetíveis à violência de filhos, filhas e netos. É de observar que na idade infantil a relação entre autor da violência e vítima se inverte, ocorrendo de as mães e avós, pais e avôs serem os autores de violência.

Retomando o nosso diálogo, destacamos, de início, dois aspectos importantes da Lei Maria da Penha: a) a violência doméstica e familiar contra a mulher como uma forma de violação dos direitos humanos das mulheres; e b) os fins sociais a que se destina e as peculiaridades das mulheres em situação de violência devem nortear a interpretação dessa Lei. Tivemos oportunidade de dialogar sobre o item a, ou seja, a violência contra as mulheres como forma de violação de direitos humanos e um pouco sobre as peculiaridades desse tipo de violência que não se confunde com outros crimes. Assim, seguimos na definição da Lei quanto às ações ou omissões que configuram a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Segundo a Lei Maria da Penhaconfigura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

Lei Maria da Penha, portanto, delimita o seu âmbito de abrangência à unidade doméstica, às relações familiares ou afetivas entre o autor da violência e a ofendida. Sendo assim, a violência pode ocorrer fora do ambiente doméstico, no espaço público do trabalho, do lazer, nas ruas, etc. A título de exemplo, imagine uma situação em que o ex-companheiro vai até o local de local de trabalho da ex-companheira e a agride com ofensas, empurrões e ameaças. A violência doméstica e familiar contra a mulher está configurada, embora tenha ocorrido no local de trabalho da ex-companheira.

Da mesma forma será considerada violência doméstica e familiar contra a mulher a agressão física ou psicológica, ou quaisquer outras formas, do irmão contra a irmã (família); genro e sogra (família, por afinidade); a violência entre irmãs, filhas (os) contra a mãe (família), etc. Logo após a publicação da Lei Maria da Penha houve resistências, no âmbito das práticas judiciárias, quanto ao real alcance da Lei às relações íntimas de afeto, chegando-se a negar aplicação da LMP a casos de violência nas relações entre namorados, companheiros ou nas relações casuais. Após intenso embate jurisprudencial, foi pacificado o entendimento de que a LMP se estende para essas relações afetivas, independentemente do tempo de duração e se são atuais ou passadas.

A interpretação de que a violência de gênero é apenas violência conjugal, onde as relações desiguais de poder são mais evidentes, também contribuiu para afastar a aplicação da Lei Maria da Penha a alguns casos. Da mesma forma, causava estranheza aos aplicadores da Lei quando os fatos narrados mostravam que as mulheres participavam das cenas conflituosas que precediam a violência.

Conforme vimos anteriormente, embora o conceito de violência de gênero seja mais amplo e contemple a violência nas relações sociais entre homens e homens, mulheres e mulheres, predomina a violência de gênero do homem contra a mulher. Segundo Saffioti (1999, p.83) remanesce na sociedade o poder dos homens, na função patriarcal, “tolerado” pela sociedade para “punir o que se lhes apresenta como desvio”. Significa dizer que, não obstante a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações estabelecida pela Constituição de 1988, remanescem as hierarquias, em especial na família, o poder de correção e disciplina dos homens sobre as mulheres.

Nesse sentido, importante relembrar que a Convenção de Belém do Pará reafirma a violência contra a mulher como ofensa à dignidade humana e manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens.

Lei Maria da Penha não criou crimes novos, mas definiu as formas de violência doméstica e familiar no art. 7º, reconhecendo que outras podem ocorrer e ser objeto de proteção da Lei. Relacionamos abaixo as cinco modalidades de violência, exemplificando algumas condutas que, geralmente, são praticadas.

Física - entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal.

Por meio de socos, facadas, empurrões, beliscões, tapas, murros, surras, queimaduras, asfixia, ou outras agressões. Podem ser tipificadas como lesão corporal, tortura ou feminicídio.

Psicológica - entendida como qualquer conduta que lhe cause danos emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões.

Mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.

Sexual - entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada.

Mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.

Nessa modalidade se encontram as diversas formas de estupro nas relações domésticas e familiares, entre as quais o estupro de vulnerável, menor de 14 anos, e estupro nas relações conjugais.

Nem sempre as mulheres reconhecem como violência a relação sexual não desejada nas relações afetivas. Segundo Fernandes (2015, p. 99) “a sexualidade é para o homem a principal manifestação do poder masculino. A noção de que a mulher lhe pertence e deve servi-lo faz com que o estupro dentro do casamento ou da união estável seja considerado ato normal entre os parceiros. Nem mesmo a vítima, muitas vezes, tem a noção de que pode se recusar à prática sexual”.

Patrimonial - entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.

Moral - entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

Por meio de conduta que ofenda a dignidade ou o decoro (injúria), consistente na imputação falsa de fato criminoso (calúnia) ou divulgação de fatos que ofendam a reputação (difamação).

A seguir, vamos conhecer uma das mais importantes inovações da Lei Maria da Penha, as medidas protetivas que visam resguardar a integridade física e psicológica as mulheres em situação de violência e o papel das delegacias, Ministério Público e dos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar na tarefa de coibir e prevenir a violência contra as mulheres.

 

As Medidas Protetivas e as práticas do sistema de justiça

Respondendo à magnitude da violência contra as mulheres que atinge uma em cada cinco brasileiras, a Lei Maria da Penha deu destaque à rede de enfrentamento, mais ampla, à violência contra as mulheres e à rede de atendimento direto às mulheres. Ressaltamos, entretanto, que a existência dos diversos serviços de atendimento, mesmo sendo um passo importante, não é garantia de existência da rede, que pressupõe o atendimento qualificado de cada um dos serviços e a articulação e diálogo entre eles, com a finalidade de evitar a rota crítica das mulheres que buscam uma solução para a situação de violência vivenciada.

Iniciamos lembrando que a atuação articulada entre os serviços diretamente vinculados ao atendimento das mulheres é a base do sistema protetivo no qual estão inseridas as Medidas Protetivas de Urgência.

Mas o que são as Medidas Protetivas?

As medidas protetivas, conforme a Lei Maria da Penha, são medidas cautelares de caráter satisfativo, tendo por objetivo a proteção das mulheres em situação de violência, enquanto perdurar a situação de risco.

Em linguagem simples, o caráter “satisfativo” significa que as medidas protetivas não se vinculam ao inquérito ou processo penal; elas podem ser requeridas, de imediato, visando a segurança da mulher em situação de violência, a de seus familiares e testemunhas ou a preservação de seus bens patrimoniais. O pedido das medidas protetivas pode ser feito pela própria mulher em situação de violência na delegacia quando registrar o Boletim de Ocorrência (B.O) e, nesse caso, é a própria delegacia que encaminha o pedido para a decisão do juiz/juíza o pedido de medidas também pode ser feito por advogado/a (por opção da mulher), ministério público ou ser determinada pelo próprio juiz/a.

A respeito das medidas protetivas de urgência, destacamos:

  • Tem por objetivo cessar a violência em curso ou iminente risco à mulher, em pessoa da família (quando as ameaças se estendem para a mãe, pai, filhos (as), irmãos, etc) e patrimonial (risco de dano aos bens pessoais, instrumentos de trabalho ou aos bens comuns do casal);
  • Podem ser requeridas pela mulher em situação de violência, delegacias, Ministério Público ou determinadas pelo Juiz/a, de ofício;
  • As mulheres, nesse contexto, devem ser informadas sobre as medidas previstas na LMP e a possibilidade de que outras podem ser requeridas, se mais adequadas ao caso;
  • Pelo caráter de urgência, a LMP dispensa a presença de advogada/o para o requerimento de medidas protetivas; no entanto, nos demais atos processuais, a mulher em situação de violência deverá estar acompanhada de advogado/a;
  • O risco à integridade física e psicológica da mulher, que pode variar de caso a caso, orienta a duração da medida;
  • Pode ser requerida a qualquer tempo, antes, durante ou após o processo;
  • Podem ser substituídas por outras que se mostrem mais adequadas, diferentes das previstas na LMP, ou por outras mais gravosas, em caso de descumprimento de medida protetiva;
  • Devem ser encaminhadas, de imediato, para o poder judiciário (Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar ou Vara Criminal), devendo, também, ser decididas, de imediato, no prazo máximo de 48h, após recebimento;
  • A decisão do juiz/a independe de audiência das partes (a mulher em situação de violência e o autor da violência) e de manifestação do Ministério Público;
  • As medidas podem ser cumuladas, ou seja, mais de uma pode ser deferida, caso necessário à preservação da integridade física e psicológica da mulher;
  • A avaliação do risco, na delegacia, ministério público ou juízo, poderá indicar medidas protetivas adicionais, novas ou em substituição;
  • O descumprimento de medida protetiva pode resultar em decretação de prisão preventiva.

Quais são os tipos de Medidas Protetivas de urgência definidos pela Lei Maria da Penha?

Em geral, as medidas mais requeridas e deferidas têm sido aquelas de caráter criminal que restringem a liberdade do autor da violência, no entanto, a competência cível e criminal é mais uma importante inovação da Lei Maria da Penha, para a resolução rápida das diversas questões inseridas no contexto da violência. A título de exemplo, imagine uma situação na qual o foco da discussão que gerou a violência contra a mulher esteja relacionado às visitas aos filhos; a medida urgente de modificação da forma das visitas, nesse caso, poderá ser tão ou mais relevante quanto uma medida de natureza criminal, de afastamento do autor da violência ou, dependendo da situação, as duas medidas, cível e criminal, sejam necessárias.

Dois tipos de Medidas Protetivas de urgência foram previstos pela Lei Maria da Penha: As medidas protetivas à ofendida (mulher em situação de violência) e as medidas que obrigam ao agressor (autor da violência).

As medidas protetivas de urgência às mulheres em situação de violência (artigos 23 e 24 da LMP) não são compulsórias, diferentemente daquelas que obrigam o autor da violência. São medidas de natureza cível, que buscam oferecer um atendimento integral e qualificado às mulheres, a partir do contexto da violência. São elas:

a) Encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;

Embora a violência doméstica e familiar contra as mulheres esteja presente em todas as classes sociais, tem sido apontado pelas pesquisas que a dependência econômica e a falta de recursos materiais constituem fatores que impedem a saída do ciclo de violência. Assim, a articulação com a rede de serviços existente no Município contribui para a efetividade da proteção, na área de assistência social.

b) Determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;

c) Determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;

d) Determinar a separação de corpos.

A especificação de algumas medidas na LMP, conforme já mencionamos, não excluem outras, o contexto da violência permite evidenciar as mais adequadas. A Lei, portanto, tomou por base a experiência dos atendimentos das mulheres que revelavam situações em que as mulheres permaneciam em suas casas, sob risco de novas agressões, por medo de perder seus direitos. As medidas acima visam resguardar esses direitos, mas para a integral proteção podem ser necessárias outras medidas, cumuladas com aquelas.

O pedido de separação de corpos, embora previsto no Código Civil, pode ser requerido pela mulher na delegacia, mas, considerando que não se confunde com o afastamento do cônjuge, pode ser necessária a cumulação de medidas para a segurança da mulher em situação de violência.

a) Restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;

b) Proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;

c) Suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;

d) Prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.

As medidas acima têm por objeto a proteção do patrimônio comum ou particular da mulher em situação de violência; importante observar que para resguardar a integridade física e psicológica das mulheres, pode ser também necessária a cumulação de medidas. No caso das medidas previstas nos incisos b e c, o juiz/a oficiará ao cartório competente para as providências.

A integração dessas medidas, de naturezas diversas, em um mesmo procedimento judicial, com vistas à proteção da mulher, foi um dos maiores avanços da Lei Maria da Penha. Caso contrário teria que buscar nas Varas de Família, Cíveis e Criminais, as diversas demandas, comprometendo a urgência que o contexto de violência requer. No entanto, o desafio “é a sensibilização dos operadores do Direito para o tema da violência doméstica e familiar e, principalmente, a formação e o aperfeiçoamento especializado daqueles que receberão e atenderão as vítimas dessa violência complexa, silenciosa, que irradia seus efeitos por tempo indeterminado (...)” (HEERDT, 2011, p. 324).

E quanto às medidas que obrigam o autor da violência?

Lei Maria da Penha prevê, em seu art. 22, as seguintes:

I - Suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003;

Essa medida visa resguardar a segurança da mulher que sofreu violência do marido, companheiro ou namorado ou de outra pessoa que possua porte de armas, em razão da profissão, por exemplo.

II - Afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

A medida de afastamento do lar já era aplicada no âmbito do Direito de Família e Estatuto da Criança e Adolescente, em caso de maus-tratos, opressão ou abuso sexual. No contexto da violência contra as mulheres, tem por finalidade a proteção da saúde física e psicológica da mulher, evitar a reincidência da violência, a tensão psicológica de viver sob o mesmo teto que o autor da violência e a destruição dos bens pessoais da mulher.

III - Proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) Aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) Contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

c) Frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

IV - Restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V - Prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

No caso da medida prevista no item a, o afastamento é, em geral, fixado em metros, assim a mulher que sofreu a violência preserva os espaços cotidianos de convivência. Em relação a medida relativa às visitas dos filhos, por ser mais drástica, uma vez que atinge também os direitos dos filhos à convivência familiar, foi prevista a manifestação da equipe de atendimento multidisciplinar. A medida constante do inciso V é importante para impor limites ao poder econômico do autor da violência na família; pode ocorrer de a mulher, preocupada com o sustento dos filhos e as ameaças de abandono material (relativas ao sustento do lar), persista na situação de violência e não denuncie a agressão; assim a medida visa resguardar essas e outras situações assemelhadas. A medida de proibição de contato é uma das mais comuns e pode ser requerida em conjunto com a de proibição de afastamento. Diz respeito a qualquer forma de comunicação inclusive pelas redes de relacionamento.

As medidas de proteção às mulheres não se esgotam nas imediatas e urgentes. A Lei Maria da Penha prevê providências relativas ao acesso a serviços de contracepção de emergência, profilaxia de Doenças Sexualmente Transmissivas (DST) e AIDS, inclusão da vítima em programa assistencial, remoção da servidora pública, manutenção do vínculo trabalhista por até seis meses.

Conforme Valéria Fernandes (2015), a reeducação do agressor também constitui importante medida, pois, estudos têm mostrado que, em geral, os autores da violência contra as mulheres são primários, de bons antecedentes, com emprego e residência fixa, o que possibilita a reeducação. Para a autora, valores culturais patriarcais se encontram subjacentes à conduta violenta como o sentimento de posse e superioridade, a crença no direito de exigir obediência e impor correção ás mulheres, entre outras. Os estudos de gênero mostram que esses comportamentos não são imutáveis e decorrem de aprendizados que variam nas diferentes culturas e contextos históricos; assim podem ser revistos em bases mais igualitárias.

Já falamos sobre os mitos que permeiam o imaginário social e a importância da desconstrução dessas ideias equivocadas que buscam justificar a violência contra as mulheres. Valéria Fernandes (2015, p. 171-172), entende que os conceitos errôneos incorporados pelos aplicadores do Direito a respeito da violência contra as mulheres podem influir no processo criminal e protetivo às mulheres em situação de violência. Abaixo, alguns conceitos citados pela autora, a partir de pesquisa realizada na área de Psicologia, por Francisco Javier Lavrador et al (2011):

1) conceito errôneo: a violência doméstica é um evento isolado. Na verdade, a cada três mulheres do mundo uma sofreu violência;

2) conceito errôneo: os homens são tão maltratados quanto as mulheres. Pesquisas indicam que 95% das vítimas de violência são mulheres;

3) conceito errôneo: a violência atinge classes sociais mais baixas. É apenas mais visível nas classes inferiores, que não usam serviços particulares;

4) conceito errôneo: os indivíduos com cultura e estudo não praticam violência. É a formação familiar e social que gera padrão violento e não a cultura;

5) conceito errôneo: os agressores sofrem de doença mental. Estudos indicam que menos de 10% dos agressores têm algum tipo de transtorno;

6) conceito errôneo: a violência é causada pelo uso de álcool ou drogas. Não são essas substâncias que causam a violência, tanto que muitos atos são praticados por pessoas sóbrias;

7) conceito errôneo: as vítimas provocam o ato violento. Mesmo que a conduta da vítima contrarie o agente, a violência é sua responsabilidade;

8) conceito errôneo: as mulheres não abandonam os parceiros porque gostam da situação. Na verdade, não rompem a relação em razão de sentimento de impotência, fraqueza e medo;

9) conceito errôneo: se a mulher abandona o parceiro, não sofre mais perigo. Essa é a situação mais grave e 98% dos homicídios de mulheres na Espanha entre 1997 e 2000 ocorreram depois que elas denunciaram o agente ou pediram separação;

10) conceito errôneo: em regra, a violência doméstica produz lesões de menor gravidade, pois as mulheres sofrem mais sequelas em razão da violência do que em razão de acidentes de trânsito, assaltos ou outros crimes;

11) conceito errôneo: a violência psicológica é menos grave do que a física. Essa violência afeta a saúde mental das mulheres e muitas têm estresse pós-traumático;

12) conceito errôneo: a violência é inata ao homem. A violência é apreendida como uma forma de solução de problemas.

O Conselho Nacional de Justiça (2013) computou nos seis primeiros anos da Lei Maria da Penha 280.062 procedimentos relativos a medidas protetivas, destacando-se o Rio de Janeiro com o maior número, seguido pelo Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Entre 2006 e 2010 foram deferidas 96.098 medidas protetivas contra 11.659 prisões deferidas. Dados de março de 2010 a março de 2011 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro mostram o volume de expedientes relativos a medidas protetivas entre deferidas 14.638 e indeferidas 12.697). Segundo, o Conselho Nacional de Justiça (2013, p. 25), as mulheres reagem à violência procurando as redes de atendimento, incluindo o Poder Judiciário, "que tem o dever legal de garantir a prestação jurisdicional rápida e eficaz, a fim de reparar e evitar a ocorrência de danos e sofrimentos ainda mais graves dos que os anteriormente relatados”.

 

Estudo de caso

Vamos refletir sobre o estudo de caso,"O Combate à violência contra a mulher: a luta entre antigos valores e novos padrões de políticas públicas", elaborado por Sônia Naves David Amorim, em parceria com as Secretarias de Políticas para as Mulheres (SPM/PR), e de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir/PR), a Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no âmbito do Programa Interagencial de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia, implementado no Brasil pela Organização das Nações Unidas (ONU).

O objetivo é colocar o nosso Diálogo em ação, levando você a refletir e aplicar os conhecimentos adquiridos aqui para a resolução de eventuais demandas que possam vir a ocorrer.

Na sua opinião, qual das alternativas abaixo seria a melhor solução para o caso? Outra alternativa seria mais adequada?

Convido você a ler o texto, com atenção, rememorando os nossos estudos e observando as seguintes dimensões:

a) público x privado (a visibilidade da violência como fenômeno social complexo e de responsabilidade do Estado e sociedade);

b) Direitos Humanos (a violência contra as mulheres como violação de direitos humanos das mulheres);

c) Interseccionalidade (a sobreposição de outras formas de violência sobre as mulheres que buscam apoio nos serviços de atendimento, pela questão racial ou étnica, orientação sexual, idade, classe social, entre outros);

d) cultural (o embate entre valores tradicionais nas práticas do sistema de justiça e o novo paradigma da Lei Maria da Penha), entre outros.

O caso

O caso relata uma situação de violência doméstica vivenciada por uma mulher negra e os obstáculos por ela enfrentados para denunciar o agressor e fazer valer seus direitos. O fato relatado ocorre em 2011 após terem sido sancionadas a Lei Maria da Penha e o Estatuto da Igualdade Racial, leis pelas quais se procura combater a violência doméstica e familiar contra a mulher e as desigualdades raciais, fatores que produzem exclusão e vulnerabilidade, afetando particularmente alguns segmentos da população, como as mulheres negras. O caso mostra a contradição entre normas e sua efetiva aplicação, quando o comportamento de agentes públicos ainda conserva padrões e valores de um Estado autoritário, patriarcal e escravocrata. O caso é fictício, mas espelha situações reais coletadas em documentos e relatórios da Ouvidoria da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM).

Avanços e desafios das políticas de combate à violência contra a mulher e de combate à desigualdade racial no Brasil

Durante séculos a agressão às mulheres, principalmente por parte de maridos ou companheiros, foi tratada no Brasil como questão de âmbito familiar, conforme o dito popular: “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Essa percepção só começou a ser modificada na segunda metade dos anos 70 quando, sob o impulso do processo de democratização do país e de acordos internacionais, os movimentos sociais de mulheres empenharam-se em denunciar a situação de violência, levantando o manto de silêncio que assegurava invisibilidade ao problema. Esses movimentos passaram a pressionar o poder público a promover ações de proteção à mulher vítima de violência. Assim, foram criadas as primeiras delegacias especializadas no atendimento à mulher entre 1985 e 1986, em São Paulo e na Bahia, seguidas por outros estados.

No entanto, as Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres (DEAMs) não se expandiram devidamente e, em 2011, eram cerca de 450 no país, número insuficiente para atender às necessidades da população feminina brasileira. A grande parte das mulheres vítimas de violências é atendida em delegacias comuns, sem preparo adequado. Apesar de sua importância e pioneirismo, a criação das DEAMs na década de 1980 constituiu uma ação isolada, desenvolvida com o apoio do Ministério da Justiça no âmbito das secretarias de Segurança Pública dos estados. Outros esforços foram feitos na segunda metade dos anos 1990, mas com ações ainda fragmentadas.

O combate às desigualdades raciais tem uma trajetória ainda mais tortuosa. Um dos grandes obstáculos tem sido a tradicional crença de que no Brasil não existiriam barreiras raciais. A partir da democratização, os movimentos negros têm denunciado a falsidade do mito da democracia racial brasileira que presume a igualdade de oportunidades entre brancos e negros. Ressaltam que, ao abolir a escravidão, o Estado não reparou os graves danos causados aos negros, não lhes oferecendo oportunidades de acesso à educação, saúde e emprego, fato gerador do agravamento das desigualdades raciais ao longo dos anos. Assim, estudos utilizando dados oficiais comprovam a persistência de grandes diferenças entre brancos e negros refletidas nos indicadores socioeconômicos que apontam o desfavorecimento da população negra em itens como taxas de desemprego e níveis de renda, dentre outros.

Foi a partir de 2003 que as ações de combate à violência contra a mulher e de promoção da igualdade racial ganharam amplitude e efetividade, articulando, por meio de políticas e programas, vários órgãos do governo federal com órgãos dos demais poderes e dos governos estaduais e municipais. Foram criadas, na Presidência da República, a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir).

No âmbito do enfrentamento à violência contra a mulher, foi instalada em 2005 uma central telefônica – o “Ligue 180” – destinada a orientar mulheres sobre seus direitos em casos de agressão, os procedimentos a adotar e o registro de reclamações sobre o atendimento prestado pela rede de serviços públicos. Entretanto, o marco que consolida essas mudanças foi a criação em 2006 da Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, lei específica para o combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Amparada no artigo 226 da Constituição Federal que, no parágrafo 8º atribui ao Estado “a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência, no âmbito de suas relações”, assim como em acordos internacionais já firmados pelo Brasil, a Lei Maria da Penha não apenas garantiu a punição com maior rigor dos agressores, como criou mecanismos para prevenir a violência e proteger a mulher agredida. A Lei foi reconhecida pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem) como uma das três leis mais avançadas do mundo em comparação com a legislação sobre o tema de 90 países, e teve profundos impactos na política de combate à violência contra a mulher, ampliando programas e serviços de atendimento.

A ela seguiu-se em 2007 o Pacto Nacional de Enfrentamento da Violência contra a Mulher como parte da agenda social do governo federal. A SPM fortaleceu-se. A Central de Atendimento à Mulher, em 2009/2010, foi reestruturada e boletins bimestrais elaborados pela Ouvidoria da Secretaria permitiram levantar informações sobre a violência e monitorar o desempenho da rede pública de atendimento à mulher vítima de violência. Há cerca de um ano a SPM assinou protocolo de cooperação técnica com o Ministério Público Federal e Ministérios Públicos Estaduais, o que possibilita que as denúncias sobre a rede de serviços sejam cobradas dos órgãos responsáveis e que providências sejam tomadas.

Nos seus quase seis anos de vigência, a Lei enfrentou, entretanto, muitas dificuldades para sua efetiva aplicação, inclusive por parte de juízes que questionavam sua constitucionalidade, com o argumento de que feria o artigo  da Constituição Federal, que afirma a igualdade de todos perante a lei, pretendendo, com isso, julgar as ações de violência doméstica e familiar contra a mulher pela antiga Lei nº 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), que trata esses casos como delitos leves, merecedores de menor rigor. Somente o julgamento em 9 de fevereiro de 2012 pelo Supremo Tribunal Federal de duas ações relacionadas à Lei Maria da Penha encerrou definitivamente tais questionamentos.

Outra dificuldade alegada pelos órgãos públicos para implementar com efetividade a política tem sido a falta de recursos para a implantação da rede de atendimentos: DEAMs, casas-abrigo, núcleos de defensoria pública, dentre outros. Para contornar a questão, foi aprovada emenda à Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2012, incluindo o Programa de Combate à Violência Doméstica contra a Mulher no rol de ações não contingenciáveis.

No que se refere ao combate à discriminação racial, apesar de vigorar há mais de 20 anos, a Lei nº 7.716/1989, conhecida como Lei Caó, que classifica o racismo como crime inafiançável, punível com prisão de até cinco anos e multa, é pouco aplicada. Muitos analistas e ativistas avaliam que a maior parte dos casos de discriminação racial é tipificada pelo artigo 140 do Código Penal, como injúria, que prevê punição mais branda, já que algumas autoridades policiais, membros do Ministério Público e da magistratura consideram a pena para crime de racismo muito alta em relação ao tipo de delito.

O Brasil tem, desde os anos 1960, ratificado vários documentos internacionais contra a discriminação racial. Entretanto, a aplicação dos princípios de promoção de igualdade racial só veio a ser consagrada com a sanção do Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010). O Estatuto orientou o investimento de longo prazo na mudança dos referenciais da ação pública, incluindo a capacitação dos gestores, de modo a alterar padrões culturais arraigados e provocar a superação de práticas desumanas, naturalizadas e internalizadas ao longo da nossa história. Além disso, organismos de combate à discriminação têm sido criados nos níveis estadual e municipal, sinalizando capilaridade de práticas administrativas orientadas para a promoção da igualdade racial.

O cenário acima é complexo e envolve avanços e recuos. As dificuldades relativas à implementação da política de garantia dos direitos da mulher e de combate à desigualdade racial apontadas pelos órgãos públicos destacam muitas questões administrativas, financeiras, políticas e jurídicas. Existe algo mais?

As situações concretas de atendimento público à mulher vítima de violência e à mulher negra fornecem indícios de outros fatores, de diferente natureza. Veja a situação a seguir e tire suas próprias conclusões.

Ana Carolina, vítima de violência doméstica, busca atendimento em uma Delegacia

Ana Carolina, 32 anos, mulher negra que perdeu a conta das vezes em que foi agredida por seu companheiro com quem vivia há oito anos e pai de seus dois filhos. No início eram agressões verbais seguidas de tapas, por qualquer descuido ou por ciúme. Com o tempo as agressões foram ficando mais pesadas, sem razão clara, e ocorriam na frente dos filhos. Diversas vezes pensou em largá-lo, carregando os filhos, mas temia perder a casa, construída durante anos e para a qual contribuíra com seu salário de professora de escola pública. Preocupava-se também com o sustento dos filhos. Sabia que tinha direitos, mas como garanti-los, se quando falou em deixá-lo, há mais de três anos, ele a ameaçara de morte? Permanecia assim sem ação, esperando que ele um dia voltasse a ser o homem fascinante que a conquistara.

Um dia, após ter sido novamente agredida, uma colega aconselhou-a a procurar a delegacia mais próxima, dizendo que agora havia uma lei que defendia as mulheres agredidas - a Lei Maria da Penha - e que poderia registrar uma queixa contra seu agressor que a polícia a protegeria. A amiga dissera que em algumas cidades havia uma delegacia só para atender as mulheres, o que era bem melhor, mas que na cidade delas não existia isso. Logo teria que procurar a delegacia comum.

Foi então que, após uma nova agressão, decidiu mudar de vez o rumo de sua vida. Tomou coragem, maquiou-se bem para disfarçar os ferimentos, e dirigiu-se para a delegacia. Estranhou a quantidade de pessoas no lugar e passou quase uma hora para ser atendida por um dos agentes policiais que estavam no balcão. Do seu lugar ele chamou-a e foi logo perguntando em voz alta: “Qual é o problema? Diga logo, pois estamos com muito trabalho”. Sua coragem desapareceu. Como explicar em poucas palavras, a serem ouvidas por todos, tantos anos de agressão? Mesmo assim, titubeante, relatou a situação de violência em que vivia, como isto assustava seus filhos e afirmou que queria dar queixa do seu companheiro. O agente retrucou: “Não estou vendo nenhum ferimento grave. Você trouxe testemunha? Como isto aconteceu? Você deu algum motivo? ”.

Passou em seguida a fazer perguntas sobre seu companheiro, se já havia sido preso, se trabalhava, se contribuía para a manutenção da família. Ao verificar que o mesmo não tinha antecedentes criminais e que mantinha a casa, foi logo dizendo: “Estou vendo que seu marido é um trabalhador. Não acho que seja o caso de fazer um Boletim de Ocorrência e autuá-lo. Temos muito bandido solto por aí com o que nos preocupar, para ir atrás de trabalhador. Tenha mais paciência, que as coisas melhoram”.

Ficou aturdida e sem ação. Tentou insistir, mas o agente já chamava outra pessoa. Ao virar-se, antes de sair, ainda ouviu-o dizer para o colega: “Veja com o que temos que lidar: uma negrinha histérica por receber tabefes, quem sabe por qual motivo, e ainda metida a importante por ser professora...”.

Passados dois meses, após outra agressão, ela ameaçou deixá-lo definitivamente. A reação foi ainda pior, seguida de ameaças de morte. Sentindo-se em perigo, decidiu voltar à delegacia. Sua amiga não lhe dissera que a Lei Maria da Penha garantia proteção às mulheres ameaçadas? Dessa vez foi atendida por outro agente, mas a resposta não foi muito diferente. Sem prestar muita atenção na sua história e na sua insistência em um Boletim de Ocorrência, o agente cortou com impaciência suas palavras e afirmou que só um Boletim de Ocorrência não era suficiente. Era um processo longo. Tinha que preencher outros papéis para que a ação chegasse à Justiça. Seu companheiro seria procurado para depor e poderia ficar revoltado contra ela. Eles não estariam por perto para defendê-la. E finalizou, olhando-a longamente: “Melhor tentar entender o motivo de suas brigas e buscar mudar seu modo de agir”.

Saiu arrasada, sem saída e revoltada com os policiais que a atenderam. Foi quando sua amiga lhe disse que havia um telefone de atendimento à mulher, o 180, onde podia reclamar do mau atendimento pela polícia e ainda receber orientações sobre o que fazer. Quem sabe a situação poderia mudar?

Naquele mesmo dia ligou e explicou o descaso com que seu problema foi tratado, acrescentando que tinha sentido haver discriminação por ela ser uma mulher negra. A atendente ouviu-a com atenção, fez algumas perguntas e explicou que este não era o primeiro caso de mau atendimento a mulheres naquela delegacia. Tudo estava sendo registrado e seria encaminhado para as autoridades.

A Delegacia sob investigação

O delegado titular da 6ª DP, Paulo Roberto, levou um susto. Havia sido convocado pelo diretor geral da Polícia Civil do Estado para explicar-se sobre reclamações de mau atendimento a mulheres vítimas de violência doméstica e discriminação racial por parte de agentes de sua Delegacia. Essas reclamações haviam sido colhidas pela Secretaria de Políticas para as Mulheres e encaminhadas ao Ministério Público para investigação. As acusações envolviam descaso no tratamento do problema, sinais de racismo e falta de providências para situações de agressão doméstica. Paulo Roberto pertencia há cinco anos à carreira e havia participado, na universidade, de movimentos de defesa dos direitos humanos. Há pouco tempo ocupava o cargo de delegado-chefe e, apesar da escassez dos recursos, de espaço e de pessoal, achava que cumpria adequadamente sua missão. Sua delegacia tinha bons investigadores e havia desbaratado várias quadrilhas que atuavam em bairros das imediações. Decidiu, antes da audiência com o diretor geral, reunir-se com sua equipe e fazer sua própria investigação. Não teria havido um engano, uma falsa interpretação dos fatos?

Defrontados com as denúncias feitas, os agentes indignaram-se. Argumentaram que eram poucos e que, pelos salários pagos, já trabalhavam e enfrentavam riscos demais ao investigar e prender bandidos. Um agente exaltado afirmou: “Não temos espaço adequado para atender pessoas, especialmente as mulatinhas do bairro aqui perto, que esgotaram a paciência de seus companheiros, levaram uns tapas e depois vieram correndo, pedir ajuda à polícia”. Outro agente acrescentou que “a denúncia de racismo é ainda mais absurda porque no Brasil não há esse problema e nem nenhuma lei sobre isso”.

O delegado argumentou que a proteção à integridade física era um direito humano e que a Lei Maria da Penha prescrevia uma atuação firme do Estado frente à violência doméstica, punindo com rigor o acusado e protegendo a mulher. Quanto à legislação que pune a discriminação, observou que primeiro há a Constituição, que afirma em seu Art. 5.º, inciso XLII: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão”. Além disso, há a Lei nº 7.437/ 1989 que define e pune os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor, e o Estatuto da Igualdade Racial, que busca assegurar às pessoas negras o pleno acesso aos seus direitos. Sentiu–se falando no vazio. A maior parte dos agentes aparentava desinteresse, como se ele estivesse fazendo um discurso teórico, distante das ações práticas do dia a dia. Alguns alegaram não conhecer as leis e questionaram a legitimidade do Estado imiscuir-se em tais questões. Um deles chegou a argumentar que há muitas dúvidas sobre a Lei Maria da Penha e que muitos juízes se recusam a aplicá-la.

Terminada a reunião, Paulo Roberto sentiu-se sozinho com seus princípios. Mais do que isso, sentiu a necessidade de definir uma estratégia para mudar a situação.

O que fazer? Trocar a equipe? Punir os infratores? Melhorar as condições de trabalho? Isso seria suficiente? No fundo ele sabia que o que prevalecia eram os velhos valores sexistas e racistas que as novas políticas queriam extirpar, mas que permaneciam latentes. Isso seria possível? Como? Que estratégias seriam mais efetivas?

Se coloque no lugar do Delegado Paulo Roberto e, com base em todo o conteúdo estudado, responda as questões apontadas acima.

 


 

Para concluir:

Aos Moços

Eu sou aquela mulher

a quem o tempo

muito ensinou.

Ensinou a amar a vida.

Não desistir da luta.

Recomeçar na derrota.

Renunciar a palavras e pensamentos negativos.

Acreditar nos valores humanos.

Ser otimista.

Creio numa força imanente

que vai ligando a família humana

numa corrente luminosa

da fraternidade universal.

Creio na solidariedade humana.

Creio na superação dos erros

e angústias do presente.

Acredito nos moços.

Exalto sua confiança,

generosidade e idealismo.

Creio nos milagres da ciência

e na descoberta de uma profilaxia

futura dos erros e violências do presente.

Aprendi que mais vale lutar

do que recolher dinheiro fácil.

Antes acreditar do que duvidar.

Cora Coralina

_________________________________________

 

Para refletir: seão necessárias mais leis para a defesa da mulher, ou, na verdade, o sistema de punição é falho, é fraco? Qual sua opinião?


 

P


 

P

Sobre o autor
Felipe Alén Cavalcante

Ex-Advogado. Concursado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Pós-graduado em Direito Público. Pós-graduado em Direito Empresarial. Pós-graduando em Direito Material e Processual Civil.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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