Superação de conflitos: autotutela, autocomposição e heterocomposição

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O artigo trata da superação de conflitos pela autotutela, autocomposição e heterocomposição.

Este ensaio pretende apresentar, em linhas gerais, os meios tradicionais de superação de controvérsias no âmbito social. Serão assinalados os contornos conceituais e as particularidades da autotutela, da autocomposição e da heterocomposição, como meios usualmente empregados na resolução de conflitos sociais.

Introdução

O Direito, em sentido amplo, tem a precípua função de promover a superação dos conflitos sociais[1].

As controvérsias deflagradas por ocasião do convívio em sociedade podem ser dissipadas não só pelo exercício da jurisdição, mas, também, pela autotutela, pela autocomposição (direta ou assistida)[2] e pela heterocomposição (judicial e não judicial).[3]

Autotutela

No âmbito da autotutela o indivíduo soluciona o conflito mediante supressão da resistência à sua pretensão, sem contar com a colaboração de terceiros nem com a participação do Estado. Numa linguagem coloquial, a autotutela corresponde a “fazer justiças com as próprias mãos”.

Embora existam exceções, a autotutela é ordinariamente repudiada pelo nosso ordenamento jurídico.

Essa conclusão se extraí da leitura do artigo 345, do Código Penal, ao punir o exercício arbitrário das próprias razões: “ Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência. Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.”

A excepcional tolerância legislativa para a prática da autotutela se justifica pelo fato de que nem sempre o Estado pode estar presente para conceder imediata tutela jurídica aos indivíduos. Nesses casos, os próprios sujeitos exercem a tutela dos seus direitos sem o apoio do Estado.

Podem ser citados, como excepcionais exemplos de autotutela, a autorização para defesa da posse, prevista no artigo 502, do Código Civil, o direito de retenção, a legítima defesa, o estado de necessidade, o direito de greve, entre outros.

Autocomposição

Na autocomposição as próprias partes envolvidas no conflito superam a controvérsia sem a imposição da vontade de terceira pessoa.

No campo autocompositivo, o consenso pode ser alcançado diretamente pelas partes (autocomposição direta) ou com o apoio de terceiros (autocomposição assistida).

A autocomposição direta, sem o auxílio de terceiros, pode ocorrer pela desistência, pela renúncia, pela submissão ou pela transação. Nos casos da desistência e da renúncia, o conflito se encerra porque as partes renunciam ou desistem do direito objeto do conflito. Na submissão, de outro modo, o encerramento da controvérsia decorre do reconhecimento jurídico do pedido por uma das partes em favor da outra. Por fim, na transação as partes superam o conflito mediante mútuas concessões. 

A propósito, a transação, disciplinada nos artigos 840 e seguintes do Código Civil, não é propriamente um método de solução de conflito[4], como a mediação e a conciliação. A transação, de fato, é um negócio jurídico que pode ser realizado entre as partes, com ou sem a aplicação de métodos alternativos de solução de conflitos. No caso da autocomposição direta, por exemplo, o conflito poderá ser extinto pela transação sem que necessariamente tenha havido colaboração de terceiros facilitadores.

Já na autocomposição assistida, as partes contam com a colaboração de terceiro facilitador que, de maneira imparcial, irá contribuir para a dissipação do conflito. A autocomposição assistida pode ocorrer pelo emprego das técnicas de mediação e conciliação, seja no âmbito judicial ou não.

Em linhas gerais, as diferenças entre a mediação e a conciliação radicam-se em dois pontos:

i) enquanto o mediador promove o diálogo entre as partes e facilita a autocomposição, sem sugerir medidas para superação da controvérsia, o conciliador, além de promover o diálogo e facilitar o ajuste consensual das partes, também proporá soluções e sugerirá medidas para o fim da controvérsia;

ii) recomenda-se que a mediaçao seja utilizada, preferencialmente, para os casos nos quais já exista vínculo anterior com as partes; já a conciliação é deve ser utilizada, preferencialmente, nas hipóteses em que não haja vínculo prévio entre as partes.

Segundo o art. 165, §2º, do Código de Processo Civil, o conciliador atuará, preferencialmente, nos casos em que não houver vínculo anterior entre as partes e poderá sugerir soluções para o litígio, sendo vedada a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem.

O art. 165, §3º, do Código de Processo Civil, de outro lado, preconiza que o mediador atuará, preferencialmente, nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes para auxiliar os interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos.

Frequentemente a expressão ADR - Alternative Dispute Resolution, ou Resolução Alternativa de Disputas - RAD, é utilizada para se referir ao emprego de variadas técnicas de superação consensual de controvérsias fora do âmbito judicial. No entanto, atualmente é adequado também empregar a referida expressão para designar atividades autocompositivas exercidas no âmbito judicial. Isso porque o Poder Judiciário tem promovido larga aplicação desses métodos, sobretudo nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos (Cejusc’s)

O estímulo às práticas autocompositivas está em diversas normas do ordenamento jurídico, como por exemplo, no campo do processo do trabalho, dos Juizados Especiais e do processo civil.

Heterocomposição

Na heterocomposição, como a própria expressão sugere, a resolução do conflito é realizada por um terceiro, imparcial, não relacionado ao conflito. Diferentemente do que se passa na autocomposição assistida, em que um terceiro facilitador colabora com composição consensual, sem impor sua opinião, na heterocomposição uma terceira pessoa substituirá a vontade das partes para decidir sobre o fim do conflito.

Exemplo clássico de heterocomposição judicial é a resolução do conflito que decorre da prolação de uma decisão proferida por juiz de direito.

A arbitragem também é uma forma de hetecomposição, um procedimento utilizado para que terceira pessoa decida sobre o fim do conflito.

Esse método alternativo de solução de controvérsia só pode ser utilizado por pessoas capazes, para superar conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis. A Administração Pública, direta e indireta, também poderá utilizar a arbitragem[5] para resolver disputas relacionados a direitos patrimoniais disponíveis.              

Não há consenso doutrinário sobre a natureza jurisdicional da arbitragem.

Os que reconhecem a natureza jurisdicional alegam que na arbitragem existe processo, definitividade e executoriedade da sentença, assim como ocorre com na jurisdição convencional.

De outo passo, os quer rejeitam a natureza jurisdicional[6] da arbitragem se apoiam nas seguintes premissas: i) a arbitragem decorre da manifestação da autonomia da vontade das partes que, ao optarem por ela, renunciam à jurisdição; ii) a atividade jurisdicional só poderia ser exercida por magistrado regularmente investido no cargo; iii) embora a sentença arbitral seja título executivo, o árbitro não tem poder para executar suas decisões; iv) o art. 3º, §1º, do Código de Processo Civil, ao tratar da inafastabilidade da jurisdição, faz ressalva à arbitragem; v) no mesmo sentido, o art. 42, do Código de Processo Civil, prevê que as causas cíveis serão processadas e decididas pelo juiz nos limites de sua competência, ressalvado às partes o direito de instituir juízo arbitral.

Sem embargo dessas colocações, o certo é que a arbitragem não veda o acesso ao Poder Judiciário e não representa ofensa ao princípio da inafastabilidade. Em primeiro lugar, porque as partes têm plena liberdade para escolher a arbitragem. Em segundo lugar, porque a arbitragem sofre controle do Poder Judiciário.

Além da atividade jurisdicional tradicional e da arbitragem, o ordenamento jurídico brasileiro admite outras modalidades de heterocomposição.

Entre outras, se destacam os julgamentos proferidos por tribunais e conselhos administrativos, como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, os Conselhos de Contribuintes, os Tribunais de Contas etc. Nestes casos há resolução de conflitos pela imposição da vontade de terceira pessoa, de maneira semelhante à atividade jurisdicional. Entretanto, as decisões proferidas por esses tribunais e conselhos, além de não gozarem de definitividade, podem sofrer controle posterior do Poder Judiciário.

Conclusão

Vimos que a superação dos conflitos pode ocorrer dentro de três cenários: i) autotutela; ii) autocomposição (direta ou assistida); iii) heterocomposição (judicial e não judicial).

Pela autotutela a parte soluciona o conflito sem contar com a colaboração de terceiros nem com a participação do Estado.

Já na autocomposição as próprias partes envolvidas no conflito superam a controvérsia sem a imposição da vontade de  terceira pessoa. O consenso pode ser alcançado diretamente pelas partes (autocomposição direta) ou com o apoio de terceiros (autocomposição assistida).

Por fim, na heterocomposição a resolução do conflito é realizada pela imposição da vontade de uma terceira pessoa.

Bibliografia

ASSIS, Araken de. Cumprimento da sentença. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Processo Civil. Cassio Scarpinella Bueno, Olavo de Oliveira Neto (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017.

HART, Herbert. O conceito de direito. Tradução A. Ribeiro Mentes 5ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007

PEREIRA, Cesar Guimarães. Arbitragem e Administração. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017.

 


[1] De acordo com Hart: “Poderíamos fazer regras cuja aplicação a casos concretos nunca implicasse outra escolha. Tudo poderia ser conhecido e, uma vez que poderia ser conhecido, poder-se-ia, relativamente a tudo, fazer algo e especificá-lo antecipadamente através de má regra. Isto seria um mundo adequado a uma jurisprudência ‘mecânica’. Simplesmente este mundo não é o nosso mundo; os legisladores humanos não podem ter tal conhecimento de todas as possíveis combinações de circunstâncias que o futuro pode trazer. Esta incapacidade de antecipar acarreta consigo uma relativa indeterminação de finalidade. Quando nos atrevemos suficientemente a cunhar certa regra geral de conduta, a linguagem usada neste contexto estabelece as condições necessárias que qualquer coisa deve satisfazer para se achar dentro do seu âmbito de aplicação, e certamente podem apresentar-se ao nosso espírito exemplos claros do que cai certamente dentro do seu âmbito.” HART, Herbert. O conceito de direito. Tradução A. Ribeiro Mentes 5ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 141.

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[2]I) Autocomposição direta: a) Desistência; b) renúncia; c) submissão; e d) transação; II) Autocomposição Assistida (judicial ou não judicial): a) conciliação; b) mediação.

[3] Heterocomposição judicial (sentença de juiz togado) e Heterocomposição não judicial (arbitragem)

[4] “O conteúdo substancial da autocomposição é o negócio jurídico dispositivo das partes, importando, conforme o caso, transação, renúncia ou remissão parcial realizadas, no processo, com auxílio de mediador ou não, mas sob a presidência do órgão judiciário. Esse traço – a participação do órgão judicial – diferencia a autocomposição judicial da autocomposição extrajudicial (art. 515, III).”

ASSIS, Araken de. Cumprimento da sentença. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Processo Civil. Cassio Scarpinella Bueno, Olavo de Oliveira Neto (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/196/edicao-1/cumprimento-da-sentenca

 

[5] “A Administração, para a realização do interesse público, pratica atos, da mais variada ordem, dispondo de determinados direitos patrimoniais, ainda que não possa fazê-lo em relação a outros deles. Por exemplo, não pode dispor dos direitos patrimoniais que detém sobre os bens públicos de uso comum. [...] o primeiro limite afirmativo do cabimento da arbitragem envolvendo entes estatais (da Administração direta ou indireta) deriva de que há direitos patrimoniais cuja disponibilidade é instrumental para as atividades da Administração. Se lhe é dado contratar ou transigir tendo tais direitos por objeto, não há qualquer fundamento para que esses direitos sejam tidos por indisponíveis, nos termos do art. 1º da Lei 9.307/1996.  [...]. A disposição de direitos patrimoniais da Administração (p. ex., pagamento em favor do particular contratado) é um instrumento para a realização dos direitos fundamentais envolvidos e do interesse coletivo (“interesse público”) que cabe à Administração proteger.” PEREIRA, Cesar Guimarães. Arbitragem e Administração. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/155/edicao-1/arbitragem-e-administracao

[6]  Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Amorim Assumpção Neves etc.

Sobre os autores
Antonio Evangelista de Souza Netto

Juiz de Direito de Entrância Final do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Pós-doutor em Direito pela Universidade de Salamanca - Espanha. Pós-doutor em Direito pela Universitá degli Studi di Messina - Itália. Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2014). Mestre em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2008). Coordenador do Núcleo de EAD da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - EMAP. Professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM. Professor da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo - EMES. Professor da Escola da Magistratura do TJ/PR - EMAP.

Samantha Mendes Longo

Coautora: Samantha Mendes Longo. Sócia do Wald, Antunes, Vita, Longo e Blattner Advogados. Negotiation and Leadership Program at Harvard University. LLM. em Direito Empresarial pelo IBMEC/RJ. Membro do Grupo de Trabalho de recuperação judicial criado pelo Conselho Nacional de Justiça. Membro do Comitê Gestor de Conciliação do Conselho Nacional de Justiça. Secretária das Comissões de Recuperação Judicial e de Mediação do Conselho Federal da OAB. Diretora do IBAJUD. Professora da EMERJ, da ESAJ e da FGV (convidada).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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