AO 13 DE MAIO...

14/05/2020 às 18:42
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Peço ao leitor que voltemos ao dia 14 de maio de 1888, um dia depois da Lei Áurea: já não existiam mais escravos no país (não oficialmente) mas como estavam aqueles que até ontem eram escravizados?

Hoje, 14 de maio de 2020, me levanto e venho concluir essas reflexões iniciadas ontem, 13 de maio, quando “comemorou-se” a abolição formal da escravatura no Brasil, ocorrida em 13 de maio de 1888. Peço ao leitor que voltemos ao dia 14 de maio de 1888, um dia depois da Lei Áurea: já não existiam mais escravos no país (não oficialmente) mas como se levantaram aqueles que até ontem eram escravizados?

Diga-me a leitora, diga-me o leitor: o que fizeram os ex-escravizados com a liberdade no dia 14 de maio de 1888? E nos dias, anos, décadas que se seguiram. No século que se seguiu.

E então chegamos ao 14 de maio de 2020, quando vemos que os descendentes daqueles ex-escravizados continuam ocupando as posições mais vulneráveis na sociedade, ainda vivendo situações de exclusão cujas raízes estão lá, no regime escravocrata que vigorou no Brasil por mais de três seculos.

Neste ano de 2020, essa data tem uma especificidade a mais: a pandemia do coronavírus que mostra a persistência da desigualdade racial no Brasil ao evidenciar a maior letalidade entre os negros e nas áreas que lhes couberam a partir do dia 14 de maio de 1888: as periferias.

Então, temos algo a “comemorar” no dia 13 de maio de 2020? O Movimento Negro o toma como o Dia Nacional da Luta contra o Racismo (luta esta que é cotidiana). Essa data tem, sim, seu valor histórico e merece reflexão, sem esquecermos que representou uma vitória de grupos e movimentos abolicionistas da época, embora não tenha ‘resolvido’ questões fundamentais que tem consequências nefastas na atualidade.

A questão é o foco que usamos ao olhar para o 13 de maio de 1888 e para a abolição da escravatura, tendo em mente que não foi uma canetada (ou melhor, uma pena dourada) de uma princesa branca que ‘libertou’ os escravizados no Brasil. Não foi um belo gesto generoso, como alguns ainda contam, e também não aconteceu meramente por pressões econômicas da Inglaterra, como posto nos livros. É fato que a Inglaterra pressionou e foi importante nesse processo, queria abolir a escravidão não por humanidade e sim para expandir o mercado capitalista e consumidor.

Aqui nessa nossa breve reflexão, proponho-lhes três momentos: 1. antes de 13 de maio de 1888; 2. 13 de maio de 1888; 3. depois de 13 de maio de 1888. Vamos olhar para estes três tempos no sentido de desromantizar a abolição, desconstruir aquela imagem que ainda vem em mente da Princesa Isabel branca e solidária, contra tudo e contra todos, libertando os negros. Depois desses três tópicos, proponho que pensemos por que esse retrato da princesa branca ainda vem na mente de muita gente e por que temos de construir outro quadro, um que considere os seculos de exploração e violência vivenciada pelos negros e que lhes dê o devido protagonismo que tiveram, não apenas no processo abolicionista mas sobretudo na construção da nação brasileira.

Abdias do Nascimento, em discurso proferido no Senado Federal em 1997, definiu o 13 de maio como uma “mentira cívica” que é “parte central de uma estratégia mais ampla, elaborada com a finalidade de manter os negros no lugar que eles dizem ser o nosso”.

É importante apontar aqui em nossa introdução que foi somente 100 anos depois que algumas questões entraram na pauta. O debate sobre cotas, direitos, politicas e ações afirmativas, um cenário normativo mais justo só veio em 1988, com a promulgação da Constituição Federal. Cem anos depois da abolição do regime escravista, quando os ex-escravizados foram deixados ‘livres’ e a própria sorte. O que explica um pouco da desigualdade que vemos hoje.

Quase quatrocentos anos de trabalho escravo e esses trabalhadores foram deixados sem um pedaço de chão, de terra ou um teto. Não são mais escravos, mas também não são cidadãos. Deixados como homens e mulheres livres numa sociedade que seguiu os discriminando e negando-lhe direitos e oportunidades. Como sair da situação precária que viviam? Trabalhando? Em que mercado de trabalho, diga-me o leitor. Um mercado de trabalho que não lhes queria, que dava prioridade a “boa aparência” (são inúmeros os anúncios de empregos com essa condicionante) ou aos imigrantes, brancos europeus, incentivados a virem por suas nações e também por esta nação, construída pelo negros que, paradoxalmente, não tinham lugar nela.

Negros, também imigrantes, violentamente retirados da África. Não entraram por livre e espontânea vontade em navios, como fizeram outros imigrantes. E se estavam livres, sem mais correntes ou troncos, seguiam presos a estruturas sociais e politicas racistas.

Se não podiam trabalhar, que estudassem então. Poderia dizer alguém. Mas como estudar naquela época se ainda hoje a sociedade contesta as cotas e inviabiliza o acesso a educação aos segmentos pretos e pardos. Pois é, séculos de escravidão, violência e exploração não acabam com uma ‘penada’ na lei áurea, nem com canetadas que promulgaram a constituição ‘cidadã’ cem anos depois. O cotidiano, os indicadores, as estatísticas mostram (pra quem quiser ver) que ações sistêmicas de exclusão racial seguem operando. A questão é querer ver.

 

1. ANTES DE 13 DE MAIO DE 1888

Em 07 de maio de 1888, o Congresso aprovou um projeto de lei que dizia: “Art.1°. É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Art.2°. Revogam-se as disposições em contrário”. Esse projeto de lei seguiu para sanção e, em 13 de maio, foi assinado pela Princesa Isabel: a Lei Áurea que aboliu a escravidão.

Mas há um antes a ser considerado. Libertar escravos não foi uma decisão generosa da princesa que, aproveitando a ausência de seu pai no trono, foi lá e vez. Os nobres parlamentares que encaminharam o projeto de lei também não são os protagonistas deste nobre ato.

A abolição da escravidão no Brasil é, em verdade, o resultado de lutas, de sangue negro derramado, de milhares de vidas negras ceifadas. O protagonismo desse processo é dos movimentos e grupos abolicionistas que, há anos, atuavam em diversas frentes: desde a facilitação de fugas à compra de cartas de alforria, passando pela panfletagem e pelas artes. Eram diversos setores sociais vinculados ao abolicionismo, nacional e internacionalmente, dentre os quais deve-se destacar as ações dos escravizados, que não estava esperando seus ‘senhores’ libertá-los, não estavam passivos, pacíficos e pacientes, como a história oficial nos induz a acreditar.

Não foi, portanto, a princesa Isabel. Foram Adelina, Maria Firmina dos Reis, André Rebouças, José do Patrocínio, Luís Gama, Galdino do Carmo e seus filhos, Zumbi dos Palmares e Dandara e outros tantos zumbis e dandaras, anônimos de grandes nomes do abolicionismo e da liberdade.


2. 13 DE MAIO DE 1888

Foram 10 linhas e dois artigos numa lei que findou quase quatro seculos de escravidão no Brasil. Já disse antes e torno a dizer, não olhemos para esse dia como o dia belo do ato generoso da princesa branca. O que essa data representa é a convergência de lutas e fatos, nos quais o protagonismo é dos negros e das negras, que certamente teriam abolido a escravidão por eles se a elite branca não o fizesse naquele momento. A lei áurea foi também uma estratégia de antecipação usada pelas elites, que lhes permitiu ‘oficializar’ a libertação dos escravos e, a partir dai, encenar seu pseudo protagonismo e manter o status quo, reproduzindo suas estruturas de dominação.

 

3. DEPOIS DE 13 DE MAIO DE 1888

Como ficou a população ex escravizada depois de abolida a escravidão? 14 de maio de 1888, para onde ir, onde viver, morar, trabalhar? O que fazer, agora livres? Pergunto ao leitor e à leitora, que tipo de liberdade era essa? Novamente citando o discurso de Abdias do Nascimento: “o negro agora era livre para escolher a ponte sob a qual preferia morrer”.

Não houvera nenhuma ação do estado para esse grupo agora livre numa sociedade que não deixou de ser racista. Houvera discussão por indenizações, sim, mas queriam os ‘proprietários’ dos ex-escravos, sentiam-se lesados em seus patrimônios. A população negra escravizada, lesada em suas vidas, por seus antepassados, por seus descendentes, não mereceu indenização. Foram, em verdade, colocados na mesma balança: senhores e escravos, o patrimonio do branco como que equivalente Às vidas dos negros e então avaliou-se que ninguém seria indenizado. Os ex proprietários de escravos sobreviveriam sem seus escravos, mas como (re)começariam os ex-escravizados?

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Com o que? Jogados no mundo ‘livre’, seguiram às periferias, às favelas, às margens da sociedade, sem medidas institucionais que pudesse proporcionar-lhes oportunidades, mas com as marcas da discriminação em suas peles.

No sistema normativo e jurídico, ações afirmativas e politicas públicas vieram com um século de atraso, em 1988, com a promulgação da Constituição. Quantas gerações daqueles ex escravizados viveram e morreram nestes cem anos? Embora tenhamos leis e ações, no plano material e pratico, ainda há muito a se fazer.

Aos negacionistas do racismo no Brasil, vejam números. Números de negros no ensino superior, na medicina, na magistratura, na politica, nos cargos de autoridade. Compare indicadores salariais, de acesso à escolaridade, veja índices de vulnerabilidade social. Ou vá direto nos dados sobre população carcerária, mortos pela polícia, analfabetos, desempregados.

E me responda, por favor, se a maior parte da população brasileira, segundo o IBGE, é preta ou parda, por que a maior parte dos cargos com melhores salários são ocupados por brancos? Se mais da metade da população é preta ou parda, por que mais da metade dos médicos também não é?

 

AO 13 DE MAIO...

A desigualdade racial no Brasil é um fato e se explica pelo regime escravocrata e pelo pós abolição. Pelo 13 de maio e pela interpretação ‘conveniente’ que lhe foi dado pela elite e que ainda segue nos livros, nos discursos, na ideologia racista e opressora. É preciso romper esse imaginário cruel.

A abolição da escravatura no Brasil não foi obra da generosidade de uma princesa branca, nem do império, nem da elite, nem dos ‘senhores de escravos’. Ela aconteceu em decorrência de lutas e levantes de abolicionistas, escravizados e não escravizados, negros que tiveram participação fundamental nesse processo.

Mas a ideia ‘romântica’ em torno do 13 de maio não foi produzida a toa, ela é reveladora do racismo e da retorica construída pela elite para forjar uma historia onde essa elite escravocrata e branca se redime e liberta ‘seus’ negros. Um mito. Mito da redenção dos escravistas e da benevolência da sociedade branca, numa narrativa que é mais uma das violências dessa nossa democracia racial.

Florestan Fernandes, sociólogo e professor da USP, foi um dos primeiros a estudar e confirmar as relações entre negros e situações de miséria. Desvelou o racismo sistêmico, a segregação dos negros na economia e na sociedade, fruto da escravidão e persistente após a abolição. Racismo estrutural, que hoje vemos naqueles números e indicadores que já mencionei, revelando ainda a sociedade que determina lugares a partir da cor da pele.

13 de maio de 1888, a abolição formal da escravatura, apenas. Esse processo ainda hoje é parcial e limitado. Também por isso, não deixemos de pautar essa data, questionando a narrativa majoritária da historiografia, sem louvor à princesa branca, sem comemorações. Mas sem deixar de dizer que a abolição da escravidão não foi acompanhada de condições para exercício da cidadania aos que dela foram libertos. É preciso ainda constar nos livros e ensinar as crianças que a Lei Aurea é resultado da luta de milhares de negras e de negros, silenciados até hoje pelo racismo da historia que se diz oficial. Que destaquemos o protagonismo da população negra na luta pela liberdade e que essa luta ainda hoje, 132 anos depois, é travada no combate ao preconceito do dia a dia, ao racismo institucional (do estado, das leis, das instituições), ao racismo estrutural (na sociedade, menos visível, mas não menos violento). 132 anos depois ainda é feita a luta pela liberdade e por condições dignas de vida pelos descendentes daqueles escravizados, ainda combatendo num sistema racialmente excludente que segue os marginalizando, reproduzindo violências das senzalas de outrora.

É isso que eu pretendia trazer de forma mais breve. Não pude ser tão concisa diante desse longo processo violento de segregação racial, institucionalizado, legitimado, naturalizado, que faz vitimas pretas diariamente numa cadeia de exclusão social que é histórica e, ao mesmo tempo, contemporânea.


 

Ao 13 de maio, aos que lutaram e lutam contra o racismo.

 

São Roque/SP, 14 de maio de 2020

Rebeca Campos Ferreira

Doutoranda em Antropologia Social, USP.

Pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito, NADIR/USP.

Professora da UNEAFRO/Brasil, Núcleo Luiza Mahin.

[email protected]


 

Referências:

Discurso de Abdias do Nascimento no Senado Federal em 1997, disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto/202173

Florestan Fernandes. Por Francisco Porfirio, no Brasil Escola. Disponível em https://brasilescola.uol.com.br/biografia/florestan-fernandes.htm

Florestan Fernandes, politico e sociólogo brasileiro. Por Dilva Frazão. Disponível em https://www.ebiografia.com/florestan_fernandes/

Muito além da princesa Isabel, 6 brasileiros que lutaram pelo fim da escravidão. Por Amanda Rossi e Camilla Costa, na BBC. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44091469

Sobre o autor
Rebeca Campos Ferreira

Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), Bacharel em Ciências Sociais (USP), Graduanda em Direito (ULBRA), Pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito (USP) e Perita em Antropologia do Ministério Público Federal (MPF). Paulistana, Sagitariana, de Iansã e Nossa Senhora do Carmo. Gosta de café, ver o céu, a lua, o por do sol, dos ipês amarelos e de vermelho. Acredita nas causas quilombola, indígena e feminista e luta por elas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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