Soluções negociadas no âmbito penal

15/05/2020 às 12:00
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O objetivo do presente artigo é apresentar, ainda que em apertada análise, os diferentes instrumentos de negociação penal. O Acordo de não persecução penal, instituído pela Lei 13.964/2019, em correlação com os demais institutos negociais.

SOLUÇÕES NEGOCIADAS NO ÂMBITO PENAL

 

I . O Acordo de não persecução penal

 

As medidas para introduzir novas soluções negociadas no Código de Processo Penal  foram propostas ao Parlamento Brasileiro pelo então Ministro da Justiça, em fevereiro de 2019. O Projeto de Lei nº 882/2019 cunhado de “Pacote Anticrime”, prevendo  instrumentos  contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência à pessoa, após  aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo Presidente da República,  resultou na edição da  Lei  nº 13.964  de  24 de dezembro de 2019, cuja vigência teve início no dia  23 de janeiro de 2020.

Dentre as variadas alterações e inclusões projetadas na Lei 13.964 de 2019 encontra-se aquela que se refere ao Acordo de não persecução penal.

A então proposta em relação  ao presente instituto centrou-se na ideia de que o acordo “é uma tendência inevitável, além de  viabilizar o descongestionamento dos serviços judiciários, deixando ao Juízo tempo para decidir sobre as infrações  penais mais graves”. Na exposição de motivos o autor também destacou que :

“O antigo sistema da obrigatoriedade da ação penal não corresponde aos anseios de um país com mais de 200 milhões de habitantes e complexos casos criminais”.[1]

 

Assemelhado ao Plea bargainig estadunidense, o acordo de não persecução penal (APPN) pode ser entendido como  uma espécie de  “barganha penal” proposta pelo Ministério Público ao investigado. Para que aconteça a oferta Ministerial é necessário que o investigado tenha confessado formal e circunstancialmente a prática de crime  sem  violência ou grave ameaça e  cuja  pena mínima abstrata seja inferior a 4 (quatro) anos. 

Nos mesmos moldes previstos nas medidas despenalizadoras existentes no ordenamento jurídico vigente, a celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal  (ANPP) não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para  fins de registro e para impedir novo benefício, no período de  5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração.

O  investigado deverá se submeter às condições ajustadas no acordo de forma cumulativa e alternativamente: tais como:  I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas  (art. 46 CP) por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, IV - pagar prestação pecuniária ( art. 45 CP), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

Outra questão que deve ser avaliada para efeito de aplicação do acordo  está em relação à pena mínima.  Para a aferição da pena mínima cominada ao delito inferior a 4 anos,  serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.

Em que pese a criação desse importante instituto de barganha penal, acompanhando os modernos  sistemas internacionais de resolução  penal,  importa explicar  que o  então PL nº 882/2019, que fez gerar a Lei 13.964/2019 alterando dispositivos do CPP,  estabelecera como critério  para o acordo de não persecução (ANPP),  dentre outros requisitos, a exigência de a pena máxima em abstrato não ser  superior a quatro anos.

 

PL. 882/2019. Art.28-A-CPP. Não sendo o caso de arquivamento e tendo o investigado confessado circunstanciadamente a prática de infração penal, sem violência ou grave ameaça, e com pena máxima não superior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime...

 

Entretanto, após submissão ao legislativo,  o PL foi aprovado com alterações. E as alterações relacionadas ao texto legal centraram-se, substancialmente, na qualidade da pena.  É dizer: o patamar da  pena  máxima não superior a 4  (quatros anos)  exigido para o ANPP  - como previa o  PL - foi alterado  para estabelecer o critério da  pena  mínima  inferior a  4 (quatro anos)

 
LEI 13.964/2019.  “Art.28-A-CPP. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime...

 

E essa mudança  fez uma enorme diferença. A começar pelo fato de que a pena mínima para alcance do benefício abrange todos os crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral, por exemplo; desde o  tipo penal  grave contido no art. 312 do CP (Peculato), passando pela corrupção passiva, concussão  e até mesmo a infração de facilitação de contrabando e descaminho.[2] Aliás, também se incluem nesse rol, os delitos praticados por particular contra a administração: a corrupção ativa (art. 333 CP) com pena de 2 a 12 anos;  o tráfico de influência (art. 332 CP), com pena de 2 a 5 anos;  o próprio crime de contrabando (art. 334-A CP),  cuja conduta é  a de importar ou exportar mercadoria proibida,  com sanção prevista de 2 a 5 anos,  são abrangidos pelo benefício constante na nova lei. 

Ora, se o interesse dos idealizadores do “pacote anticrime” foi o de estabelecer instrumentos  contra a corrupção e o crime organizado” parece que  essa ideia chegou mitigada com a edição da citada Lei  13.964.

Por outro lado, a lei vedou expressamente o ANPP nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor. Também não será aplicado se  for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais; ou  se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas. Registre-se  ainda que,  seguindo o modelos de outros sistemas despenalizadores, se o agente já foi beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo, o acordo também não será possível.

Em termos procedimentais, o ANPP será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor. Para  a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade.

Caso o magistrado entenda inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no ANPP, segundo a lei, os autos serão devolvidos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor. Uma vez homologado o acordo pelo juiz os autos seguirão para o  Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal.

 O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação. Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia. Desta decisão judicial de recusa à homologação, caberá recurso em sentido estrito. Se o agente cumprir  integralmente o ANPP,  o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.

Quanto a eventual descumprimento de quaisquer condições estipuladas no ANPP, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia. Observe-se que o descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo.  

Outros modelos serviram de inspiração para a criação do novo instituto jurídico, tanto no contexto do direito comparado, quanto no âmbito do  sistema penal brasileiro. É o que se expõe a seguir.

 

II.  O Modelo de “barganha penal” (plea bargaining e guilty plea )

Em termos comparativos, o modelo de acordos e mediações na justiça criminal estadunidense é uma boa fonte de reflexões. A razão primária para a prevalência da negociação entre as partes é a eficiência e o controle administrativo.  Muitos juízes e procuradores têm argumentado que um decréscimo substancial em acordos criaria um caos no sistema de justiça. Eles acreditam que a negociação é a sustentação essencial para a existência contínua de um sistema de justiça organizada. No modelo estadunidense, os mecanismos de solução de controvérsia do chamado sistema de “barganha penal” (plea bargaining e guilty plea) encontram adeptos e opositores.  (AGUIAR BRITTO, 2014)

Os defensores da negociação penal argumentam que o guilty plea (by pleading guilty the defendent):

1. assegura uma pronta e certa aplicação das medidas adequadas;

2. evita atraso na prestação jurisdicional e aumenta a probabilidade da pronta e certa aplicação de medidas corretivas aos acusados;

3. o acusado, reconhecendo a sua culpa, manifesta o desejo de aceitar a responsabilidade pela conduta;

4. evita ser submetido a um julgamento público, quando as consequências têm mais valor do que qualquer necessidade legítima para tal;

5. impede um excessivo dano ao defendente, a partir da forma convincente de condenação;

6. possibilita certas concessões quando o réu oferece cooperação na busca de outros elementos.

Por outro lado, os que se opõem à negociação pelo sistema guilty plea baseiam-se no fato de que existe um perigo real de pessoas inocentes serem condenadas. A crítica também se estende às diferenças de tratamento observadas nas sentenças (de negociação e julgamento). Tem sido alegado, por exemplo, que juízes induzem negociações impondo sentenças mais severas quando o réu escolhe o julgamento ao invés da negociação. (AGUIAR BRITTO, 2014)

Por outro lado, procuradores, ao barganhar, somente intencionam promover o andamento dos feitos e, por essa visão, barganhar é distribuir irregularmente e de forma desigual entre os envolvidos a habilidade para se conseguir, de forma leniente, um acordo. Assim, segundo H. Miller et al., barganhar remete a um mecanismo ineficiente e inútil, além do quê, aqueles que optam por um julgamento, isto é, que não aceitam submeter-se a acordos, acabam geralmente recebendo penas mais longas. (AGUIAR BRITTO, 2014)

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No caso de negociação por meio do plea bargaining, alguns compreendem que tal mecanismo é desastroso e deveria ser abolido porque, dentre outras coisas,  um  réu inocente a injusta e a inadmissível escolha de negociar sua condição jurídica para evitar um julgamento. Em linhas gerais, argumenta-se que a condenação, punição e litígio são produtos públicos com efeitos sociais poderosos, ao passo que os mecanismos em prol da negociação entre as partes (no estilo contratual) afastam a ingerência do Estado, ao mesmo tempo em que introduzem um aumento de custos às agências responsáveis pelos processos de negociação. (Idem) Para Schulhofer, o acordo não irá melhorar o bem-estar das partes afetadas numa negociação. O réu inocente, diante de uma pequena possibilidade de condenação, poderia se interessar em aceitar uma condenação com uma pequena pena. Porém, a escolha do réu pela negociação pode ser racional através de sua própria perspectiva, mas isso impõe custos à sociedade, minando a confiança pública porque, se por um lado as condenações criminais transmitem uma mensagem de que o acusado é culpado, por outro, mantém íntegra uma dúvida razoável quanto à sua verdadeira culpabilidade. (AGUIAR BRITTO, 2014)

 

III. A Composição dos danos civis e a Transação Penal

A primária solução negociada no contexto penal no Brasil remonta 1995, instituída pela Lei 9.099.  A forma alternativa é iniciada pela via procedimental, isto é, uma fase pré-processual de natureza conciliadora, na qual procura-se um acordo (composição dos danos civis). Primeiro, entre o suposto autor do fato e a vítima (dependendo da qualificação jurídica). Numa segunda via, por meio da transação penal, estimula-se a negociação entre o MP e o suspeito da prática delitiva, a fim de evitar o processo criminal. Supostos agentes praticantes de infrações menos graves podem receber uma medida despenalizadora proposta pelo MP,  homologada pelo juiz, que, depois de cumprida pelo suspeito, extingue a sua punibilidade. Quando aceita pelo autor do fato, a transação implica a submissão a uma das penas alternativas previstas no art. 43 e seguintes do Código Penal.

Em termos procedimentais, após autuação do termo circunstanciado e demais documentos no JECRIM, segue-se à audiência preliminar, momento em que será  esclarecido ao autor do fato sobre a possibilidade da composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade. Nesta audiência preliminar, prevê a lei que  o representante do Ministério Público,  a vítima e, se possível, o responsável civil, acompanhados por seus advogados devem estar presentes.   A conciliação poderá ser conduzida pelo Juiz ou por conciliador.[3]  Segundo o que disciplina a lei, a composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo Juiz mediante sentença irrecorrível e terá eficácia de título a ser executado no juízo civil competente. Tratando-se de demanda penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação. Não obtida a composição dos danos civis, será dada imediatamente ao ofendido a oportunidade de exercer o direito de representação verbal, que será reduzida a termo.  Dispõe ainda a lei que o não oferecimento da representação na audiência preliminar não implica decadência do direito, que poderá ser exercido no prazo previsto em lei.  Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.

 

IV. A Mediação

No que concerne à mediação, desde 1984 ela é empregada na França e se desenvolve atualmente em larga escala. A palavra mediação remonta há séculos, algo em torno de 5.000 anos, e significava, inicialmente, segundo Morineau (2007, pp. 165-174, tradução livre), a ideia de se perpetuar o liame entre a divindade e os seres mortais, a conexão entre Deus e os homens (le lien à rétablir entre Dieu et les hommes). A história de toda a civilização é resultado da procura constante de se construir os fundamentos de um equilíbrio que dependa do próprio homem (Idem, p. 166). Por esse raciocínio, a mediação significa, portanto, o espaço oferecido para se estabelecer uma conexão entre aquele que clama por auxílio e o auxílio para aquele que precisa de proteção (Idem, p. 168).  Para Morineau (Idem, p. 169), o espírito da mediação e a mediação, elas mesmas, poderão promover um desenvolvimento educativo com o fim de ajudar o exercício da realidade e a obtenção de consciência e de suas responsabilidades. (AGUIAR BRITTO) [4]

No Brasil, a Lei nº 13.140 de 2015 dispondo sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública, estabelece,  em seu art. 3º, que  os conflitos que versem sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação podem  ser objeto de mediação. O consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis, mas transigíveis, será  homologado em juízo, e exigida a oitiva do Ministério Público. A lei considera  como mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia.

Reflexionando no  âmbito penal,  Prado (2002, p. 89) lembra  que  a mediação comporta a intervenção de um mediador – um árbitro – absolutamente desinteressado do resultado material do acerto entre as partes, mediador que se dispõe a intervir unicamente para tentar fazer com que as partes resolvam de forma consensual o dilema que as contrapõe.

O Protagonismo  da vítima e o tratamento dos danos por ela sofrido fazem da mediação um meio negocial importante na resolução conflitiva. O mecanismo da conciliação, projetado pela Lei 9.099/95  e desenhada para que ocorra  na audiência preliminar, é um exemplo de que a mediação penal ainda pode ser alcançada em sua inteireza.

Projetos como  os iniciados nos  Juizados da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, os quais são realizados dois modelos  de mediação: um fundamentalmente  penal, que cuida sobre penas e formas de cumprimento, e outra, de cunho civil, mas  no âmbito do  Juizado Criminal, são exemplos de que as soluções negociadas podem perpassar as exigências estatais.  

V. A Suspensão condicional do processo

Outro mecanismo com vistas a afastar o processo criminal surgiu através da suspensão condicional  do processo também denominado sursis processual (cujos moldes foram abarcados, em boa medida, a partir do modelo do sursis penal, constante no art. 77  do Código Penal). Ou seja: é possível a concessão do sursis processual se o condenado não seja reincidente em crime doloso e  a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias autorizem a concessão do benefício

Como prevê o art. 89 da Lei 9.099/95, nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não pela citada lei o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime. Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, dentro das condições previstas na legislação.    I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo;     II - proibição de frequentar determinados lugares;     III - proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz;     IV - comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades[5].

Ao instituir os juizados especiais a referida Lei 9.099 de 1995 ofereceu, sobretudo para a justiça penal, importantes mecanismos dissuasórios de resolução da controvérsia. Tais como: a composição de danos civis, a transação penal e a suspensão condicional do processo. Como se sabe, questões de política criminal norteiam o cenário das medidas despenalizadoras.

Nos primeiros Enunciados divulgados nos fóruns (FONAJE)  e mesas de processo penal a discussão caminhava na direção de se reconhecer que as causas especiais de aumento da pena para efeito de aplicação da Lei n. 9.099/95, não deviam ser levadas em consideração.  Isso porque, o legislador não foi específico o suficiente para definir a as variantes das penas em abstrato nem as circunstâncias que giram em torno dos tipos penais.  De acordo com  Grinover, apesar de tamanha importância do instituto do sursis processual, dada sua capacidade de desburocratização, despenalização, celeridade na resposta estatal e satisfação da vítima pela reparação dos danos causados pelo acusado, o legislador ‘pecou’ por ter sido muito lacônico ao disciplinar o sursis processual em apenas um artigo inserido nas disposições finais da Lei do Juizado Especial Criminal.[6]

Não há dúvida quanto a ratio do legislador ao limitar o benefício da suspensão processual nos casos de crimes cuja pena mínima abstratamente cominada não ultrapassar um ano. Mas não tão indene de questionamento ou reflexão quando a pena mínima do tipo penal sofrer acréscimo decorrente da circunstância de causa especial de aumento de pena. E os Tribunais superiores também ainda não desafiaram a questão.

No caso de concurso de crimes a situação pareceu amenizada por entendimento cristalizado nas Súmulas 723/STF e 243/STJ[7], em que pese laboriosa doutrina divergente.  Mas e quanto ao crime único?  Isto é: quando a imputação versar tão somente em relação à suposta prática de um único tipo penal, cuja potencialidade lesiva é absolutamente diminuta e diversa em relação ao concurso de crimes, por exemplo? Quando, neste sentido, incidir apenas uma circunstância de causa especial de aumento de pena? No nosso modo de ver,  as aludidas Súmulas foram editadas  para atender  situação bem específica que estão ligadas às circunstância de causa de aumento de pena, aos casos de concurso de crimes  em razão do número de infrações.   A Lei 9.099/95 não vedou expressamente a concessão do sursis processual quando eventualmente repercutir a citada majorante em  crime único em relação à pena mínima do tipo penal.  Ora, se a lei não vedou, não cabe ao intérprete criar situação a ponto de impedir a aplicação de uma norma de conteúdo penal. Casos como os previstos, por exemplo,  nos artigos: 155 § 1º;  168 § 1º;  171 § 3º;   337-B § único, todos do CP, dentre outros,  devem ser passíveis de propostas de sursis processual, preenchidos, certamente,  os demais requisitos do art. 89.

 

VI. O Sursis processual e o  Acordo de não persecução penal

 

Entendemos que, com a instituição do novo modelo de negociação penal na legislação brasileira, o sursis processual sofreu certo “esvaziamento”.  Embora aplicados em momentos distintos, e a despeito de o art. 28 -A  do CP prever,  para o realização do  acordo, que o investigado confesse formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça;  no caso do sursis processual, há um maior rigor na sua aplicação, pois  exige-se  que a  pena mínima abstrata do tipo penal, supostamente praticada pelo réu,  não ultrapasse  1 (um) ano. Em contrapartida, para o ANPP, exige-se que o crime possua uma pena mínima inferior a 4  (quatro) anos.

Por outro lado,  há de se perguntar: com a entrada em vigor da Lei 13.964 em janeiro de 2020,  é possível o ANPP ao acusado com denúncia oferecida e recebida pelo juiz ? É possível ANPP com  processo em andamento? A resposta há de ser positiva. Isso porque, a matéria em comento é norma processual, mas com reflexo na lei penal. Diante das chamadas normas hibridas ou mistas,  se houver lei nova  mais favorável ao agente (novatio legis in mellius), esta deve ser aplicada. Neste caso, em que pese o disposto no art. 2º do Código de Processo Penal[8] impõe-se a observância ao art. 2º  parágrafo único do Código Penal[9] em consonância com o art. 5º da CRFB/88.[10].

REFERÊNCIAS 

 Britto, Cláudia Aguiar. Processo Penal Comunicativo. Comunicação processual à luz da  filosofia de Jürgen Habermas.  Juruá. 2014.

______________. Os juizados criminais e a filosofia comunicativa. Uma abordagem crítica.  Revista Âmbito Jurídico.
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-153/os-juizados-criminais-e-a-filosofia-comunicativa-uma-abordagem-critica/
Grinover, Ada Pelegrini  et al., Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 13 – n. 42-43, p. 31-70 – jan./dez. 2014 2002, p. 24
Morineau , Jacqueline. Des origines de la médiation humaniste. Sociologia del diritto,  n. 03, 2007 (apud. AGUIAR BRITTO, 2014.  tradução livre)
PRADO, Geraldo. Juizados especiais criminais: comentários e anotações.3ª. ed. Lumen juris. 2003.
SHULHOFER. 101, Yale, L.J 1979 (1992). Op cit. Guilty pleas and  bargaing. American  criminal procedure. ( apud, Britto, 2014) .
PL. nº 882/2019.
LEI 13.964/2019. 

[1] MORO, Sérgio. PL.nº 882/2019

[2] Peculato culposo;     Peculato mediante erro de outrem;  Inserção de dados falsos em sistema de informações; Modificação ou alteração não autorizada de sistema de informação;   Extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento   Emprego irregular de verbas ou rendas públicas;   Concussão; Excesso de exação; Corrupção passiva;   Facilitação de contrabando ou descaminho;  Prevaricação, prevaricação de diretor penitenciário e/ou agente público;  Condescendência criminosa; advocacia administrativa;  Abandono de função;    Violação de sigilo funcional;        Violação do sigilo de proposta de concorrência.

[3] Os conciliadores são auxiliares da Justiça, recrutados, na forma da lei local, preferentemente entre bacharéis em Direito, excluídos os que exerçam funções na administração da Justiça Criminal.

[4] Morineau (2007, , tradução livre) no contexto da mediação: Esse espaço da palavra e do diálogo a todo momento  moralizador ou através do julgamento pessoal os coloca diante deles mesmos. Diante de uma sociedade doente composta por indivíduos enfermos de sua incompletude, oscilante entre a sua psique, a justiça tem proposto espaço de mediação para ajuda seu desenvolvimento como guardião de valores criados na nossa civilização. MORINEAU, Jacqueline. Des origines de la médiation “humaniste”. In: Sociologia del diritto n. 3, v.  2007. In:  AGUIAR BRITTO, Processo Penal Comunicativo. Juruá, 2014. 

[5] A suspensão será revogada se, no curso do prazo, o beneficiário vier a ser processado por outro crime ou não efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano.    § 4º A suspensão poderá ser revogada se o acusado vier a ser processado, no curso do prazo, por contravenção, ou descumprir qualquer outra condição imposta.   § 5º Expirado o prazo sem revogação, o Juiz declarará extinta a punibilidade.

[6] Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 13 – n. 42-43, p. 31-70 – jan./dez. 2014 Cuidou de um dos mais revolucionários institutos no mundo atual em apenas um artigo (art. 89).” (Grinover et al., 2002, p. 241

[7] Súmula  nº 723 Não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de um sexto for superior a um ano.

Súmula nº. 243 O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano.

[8] Art. 2º   do  CP. - A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.

[9] Art. 2º Parágrafo único do CP - A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.

[10] Art.  5º  XL  da CRFB/1988 -  A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

ANPP - Acordo de não persecução penal.

Cláudia Aguiar Britto. Pós-doutora em Democracia e Direitos Humanos (Universidade de Coimbra), Doutora em Direito Público/Processo penal (UNESA). Mestre em Ciências Penais. Especialista em Direito Penal Militar. Diretora de ensino e pesquisa do Instituto Brasileiro de direito Militar e Humanitário (IBDMH). Professora titular de Processo Penal IBMEC,  Professora  adjunta Direito Penal. UNIFESO.

Sobre a autora
Claudia Aguiar Britto

Pós-Doutora em Democracia e Direitos Humanos. Universidade de Coimbra. IGC. Mestre em Ciências Penas. Doutora Direito Público (Processo Penal). Especialista em Direito Penal Militar. Advogada Criminalista. Professora Universitária.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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