As Medidas de Isolamento Social e sua Legalidade

15/05/2020 às 16:22
Leia nesta página:

Trata-se de uma breve abordagem aos aspectos constitucionais e legais das medidas de isolamento social, pautada em uma interpretação considerada mais literal do texto constitucional, tratando sobre a flexibilização dos direitos fundamentais.

 

No presente momento, o país passa por uma crescente crise causada pelo coronavírus (o vírus covid-19), e com ele, o pânico social gerando muitas vezes decisões tecnicamente equivocadas por parte de prefeitos e governadores, sem o devido amparo legal, valendo-se da restrição do direito de ir e vir e do monitoramento telefônico como medidas de distanciamento social, bem como de penalizações referentes a tais medidas.

 

1 - Restrições ao direito de ir e vir

 

De início, insta consignar que o direito de ir e vir está capitulado no art. 5º, inciso XV, de nossa carta magna, tido como um direito fundamental ligado diretamente às idéias defendidas na Revolução Francesa. Este garante a todo cidadão brasileiro, o direito de andar nas vias públicas e frequentar espaços públicos de uso comum quando bem desejarem, sendo válido somente em tempos de paz, conforme o caput do artigo expõe. Entretanto, tal direito pode ser cerceado em tempos de guerra, estado de defesa e estado de sítio (art. 137 da CF), e a violação deste direito fundamental causa grave ofensa à dignidade do homem. Ademais, trata-se de cláusula pétrea de nossa CF, considerando-se este um direito inviolável, imutável, e insuperável, salvo quando das exceções já citadas.

Assim, é inegável o fato de que eventuais decretos municipais e/ou estaduais que visem cercear a liberdade de locomoção, fora dos limites que permitem tal excepcionalidade, são manifestamente inconstitucionais, bem como não possuem devido amparo legal, sendo também manifestamente ilegais.

Em muitos municípios, principalmente no litoral, chegou-se à medida extrema de proibição ao ingresso nas cidades, obstruindo-se rodovias e deixando somente moradores entrarem em seus municípios, todavia, muitas destas medidas já foram “derrubadas” após acionamento do judiciário, como por exemplo, nos autos nº 2054679-18.2020.8.26.0000 onde fora suspensa a liminar que dava suporte a tal proibição, referente aos municípios de Caraguatatuba, Ubatuba e Itanhaém.

Portanto chegamos ao ponto em que os chefes do poder executivo, agem de forma precipitada e equivocada, causando lesão à ordem pública, pois mesmo que reconhecida efetiva preocupação com o atual cenário, as medidas necessárias para o controle da pandemia devem ser pensadas em um todo coerente, coordenado e sistêmico, com o devido amparo legal.

Neste sentido, entende o E. Ministro Alexandre de Moraes: “Conforme proclamou o Superior Tribunal de Justiça, "a liberdade é indisponível no Estado de Direito Democrático;” não cabendo a nenhuma autoridade, inclusive do Executivo e Judiciário,"assenhorar-se das prerrogativas do Legislativo, criando novas formas inibidoras ao direito de ir e vir, sem a devida fundamentação e forma prescrita em lei". Além disso, o próprio texto constitucional, em hipótese excepcional, limita o direito de locomoção, ao prever no art. 139 a possibilidade de na vigência do estado de sítio decretado, ser fixada obrigação de as pessoas permanecerem em localidade determinada. (Alexandre de Moraes – Direito Constitucional – 13º edição – 2003, pág. 108).

 

1.1- Flexibilização dos direitos fundamentais

 

Apesar de tudo, paira sobre todos o entendimento de que vivemos uma situação excepcional, mesmo que não haja disposição constitucional expressa que trate desta. Assim, a possibilidade de mitigação e ponderação dos direitos fundamentais individuais em vista de assegurar os direitos coletivos, visando proteger a sociedade como um todo é uma realidade provável, mas que deve ser vista com cautela para que não abra precedentes indesejados para uma situação de normalidade e tampouco acabe por retroagir os direitos individuais assegurados com tanta veemência por nossa carta magna.

Há de se salientar que o STF se encontra ainda debatendo o tema, uma vez que apenas alguns ministros já se posicionaram, sendo num primeiro momento favoráveis à flexibilização dos direitos individuais em vista dos direitos coletivos, expondo que o direito de ir e vir siga recomendações técnicas exclusivas da saúde.

2 - Conflito de Competências

 

Já devidamente elucidada a questão referente ao direito de ir e vir em si, é necessário passar ao eventual conflito de competências ocorrido nas mesmas circunstâncias. É sabido que os municípios possuem legitimidade para legislar sobre assuntos de interesse local conforme artigo 30, inciso I da CF, entretanto é preciso sopesar tais competências, de forma que estas não sobreponham nenhuma matéria de competência privativa da união, portanto, liberdade dada aos municípios para legislar sobre assuntos de interesse local não pode justapor o art. 22 da CF. O que deve ser feito observando a pirâmide de Kelsen, ajustando devidamente a hierarquia entre as medidas municipais e estaduais e federais.

Os estados e municípios, por meio de decretos, vêm legislando em matérias de competência privativa da união, como Direito Penal e Processual Penal, impondo penalidades a quem descumprir as medidas de distanciamento social, ou seja, impondo sanções penais a quem descumpre ordem manifestamente ilegal, chegando a medidas extremas e desproporcionais como a prisão em flagrante do agente.

O artigo 22 de nossa carta magna é expresso em seus vinte e nove incisos apontando as matérias de competência privativa da união, definindo preceitos declaratórios e autorizativos da competência geral na legislação federal e demonstrando clara supremacia em relação aos demais entes federativos, sendo permitida a delegação de competência somente nos termos de seu parágrafo único, dando a entender ser vetado aos estados e municípios legislarem sobre tais matérias sem devida observação legal. Juntamente com tal fato, tem-se a ideia de possível desrespeito ao princípio da separação de poderes, tendo em vista que o executivo aparenta estar fazendo o papel de" legislar e executar "simultaneamente.

 

3 - Aspectos Criminais

 

Há clara desproporcionalidade na criminalização de quem descumpre as medidas de distanciamento social, tendo em vista que o polo ativo dos crimes contra a saúde pública é composto por pessoas infectadas com o dolo específico de praticar tais condutas, as quais propagam germes patogênicos e infringem determinação pública destinada a impedir a propagação do vírus (art. 268 do CP). Não sendo possível que o agente saudável o propague, principalmente em se tratando de vírus transmitido somente pelo contato humano, devem ser válidas tais medidas somente para aqueles que foram comprovadamente infectados.

Assim, pode-se entender pela ocorrência de crime impossível (art. 17 do CP), sob perspectiva de que há absoluta impropriedade do objeto, sendo impossível que pessoa saudável consume o delito, restando totalmente despido de força para produzir qualquer efeito ou resultado.

Há de se observar também que embora tal crime possua perigo abstrato (presumido), este se consuma tão somente após a conduta descrita no núcleo do tipo com dolo do agente, e em obediência ao princípio da lesividade, a situação de perigo de danos à saúde pública deve ser demonstrada no caso concreto, não se podendo presumi-la.

Pode-se citar também nesta linha, a atenção o princípio da ofensividade ao bem jurídico, conforme ensinamentos de Luiz Flávio Gomes: “Isso significa, claramente, que está vedada a possibilidade de o legislador configurar o delito como uma mera desobediência ou simples infração da norma (imperativa) ou mesmo como simples desvalor da ação (é o que se dá no perigo abstrato, por exemplo), sem considerar qualquer ofensa a um bem jurídico ou mesmo a um autêntico bem jurídico. É que o delito, em sua essência, não significa (desde a perspectiva do paradigma da ofensividade) tão-somente a realização da literalidade legal ou a simples contradição ‘formal’ (antinormatividade formal) com a norma (imperativa). O delito não se esgota na realização ‘literal’ da letra da lei nem tampouco na mera antinormatividade formal: delito é infração ao Direito, isto é, a violação da norma valorativa ou, simplesmente, a afetação do bem jurídico valorado positivamente e protegido pela norma de direito.” (Luiz Flávio Gomes - Princípio da Ofensividade no direito Penal – Série as Ciências Criminais no século XXI – Volume 6 – 2002, pág. 35).

 

3.1 – Efeitos e Riscos

 

Com exceção do crime de causar epidemia (art. 267 do CP, tendo em vista que epidemia e pandemia são coisas distintas), tratam-se de delitos de menor potencial ofensivo, os quais não gerarão efeitos suficientes para prevenção, não tem condão de manter efetivamente presos os agentes, e geram apenas custos para o estado, colocando nas costas do Judiciário, Ministério Público e Policia Civil a apuração de fatos que não possuem capacidade de melhorar a situação da sociedade, somente aumentando a carga destes entes.

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É possível ainda remeter-se de forma rasa e cuidadosa ao conceito de risco permitido, tendo em vista que qualquer contato social, em situação de normalidade já implica em um risco, inclusive quando os intervenientes atuam de boa-fé, entretanto, tal fato não torna viável a conclusão de que tais contatos devem ser evitados, uma vez que evitando o contato social, não se obtém balanço positivo para a vida em sociedade, e, em via da regra, não há alternativa absoluta a esses contatos, portanto o risco permitido deve ser devidamente sopesado, uma vez que trata de situações inerentes à normalidade. Para sua apuração, há necessidade de razoável cálculo de custos e benefícios, considerando-se como custo a perda daqueles bens jurídicos cuja destruição conduz o risco, e os benefícios seriam tidos como a liberdade de comportamento com a permissão de riscos.

Ocorre que não há fórmula para determinar tal cálculo por meio da proporcionalidade entre custo e benefício, pois não existem critérios suficientes para tal valoração, por exemplo, não há como valorar a vida humana em razão da economia e tampouco determinar valor de um risco à saúde em comparação às condições de produção rentáveis.

4 – Monitoramento Telefônico

 

Temos ainda que observar possível monitoramento telefônico exercido fora dos parâmetros legais. Tal monitoramento é claramente uma interceptação e violação telefônica, devendo ser vetada diante de sua ilegalidade que mais uma vez fere preceitos constitucionais exarados em nossa carta magna, presentes nos incisos X e XII do artigo 5º desta.

É de amplo conhecimento que os aparelhos telefônicos possuem diversas informações de caráter privado e intimidade de seus possuidores, não podendo estas serem violadas em hipótese nenhuma, e tal violação pode incorrer em direito à indenização por danos morais ou materiais. Suplementando tal proteção, há ainda determinação constitucional categórica tornando inviolável o sigilo de dados e comunicações telefônicas, salvo por expressa ordem judicial nas hipóteses e forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual.

Mesmo que eventual monitoramento utilize unicamente a localização do aparelho telefônico, ainda estaria sendo violada a liberdade da população.

5 - Conclusão

 

Por fim, a conclusão alcançada é de que a pandemia de COVID-19 causou tamanho pânico e caos social que fez até mesmo pessoas qualificadas, técnicas, chefes do executivo e membros do judiciário agirem de forma precipitada e desordenada, sem sopesar as possíveis consequências de tais ações, uma vez que a pandemia vai além do âmbito da saúde, afetando largamente os setores econômicos e sociais da nação o que fora largamente aproveitado com má fé por muitos membros do executivo para exercerem politicagem e agirem em prol de ideologias partidárias cada vez mais aumentando o pânico social e justapondo interesses partidários, ideológicos e privados em vista do bem estar e dos direitos da população.

Referências Bibliográficas:

FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira - Curso de Direito Constitucional - 37ª edição - Saraiva – 2011.

JAKOBS, Gunther – Tradução de André Luis Callegari – A Imputação Objetiva no Direito Penal – 2º edição – 2007.

GOMES, Luiz Flávio - Princípio da Ofensividade no direito Penal – Série as Ciências Criminais no século XXI – Volume 6 – 2002.

MORAES, Alexandre de– Direito Constitucional – 13º edição – 2003.

TAVARES, André Ramos – Curso de Direito Constitucional – 10º edição – 2011.

MENDES, Gilmar Ferreira - Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais.

GRECO, Rogério – Código Penal Comentado - 11º Edição – 2017.

Código Penal – disponível em www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm

Constituição Federal, Disponível em www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/ConstituicaoCompilado.htm

 

 

Sobre o autor
Bruno Henrique Mantovani

Estudante de Direito da UNIP São José do Rio Pardo – 9º semestre. Bolsista 100 % pelo ProUni pela nota do ENEM. Estagiei por 11 meses no cartório da 1º vara criminal de minha cidade, saí para estagiar no Cartório de Registro de Imóveis, onde fiquei por apenas 02 meses, e retornei ao fórum pela oportunidade de estagiar no gabinete do juiz da 1º vara de minha cidade, onde estou a quase 02 anos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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