INTRODUÇÃO
Exceção, segundo o dicionário, é desvio de uma regra ou de um padrão convencionalmente aceito; ação ou efeito de excetuar, de excluir; estado ou circunstância fora do comum.
Relativizar, do ponto de vista epistemológico, é inerente ao processo cognitivo, diante da incognoscibilidade do absoluto e da verdade, em razão de fatores aleatórios e/ou imprevisíveis. O relativismo é uma postura de interpretação da realidade que sugere que tudo deve ser encarado segundo a percepção de determinado fenômeno, condicionada à realidade do interlocutor, e não poderia, portanto, ser tomada como uma conclusão válida no plano geral, e sim apenas no plano particular.
Em filosofia e lógica, contingência é o modo de ser daquilo que não é necessário, nem impossível - mas que pode ser ou não, são sempre dependentes de circunstancias, das quais derivam a verdade do que se afirma.
Mas se adverte que, quando exceções, ou contingencias, passam a se tornar incompatíveis com as regras conhecidas, estas devem ser reformuladas ou abandonadas, sob pena de mudança de paradigma, pois é suficiente uma exceção suficientemente contundente para a mudança de identidade.
A análise do tema aponta para duas maneiras de compreender a Constituição. Diante das escolhas abertas ao intérprete, poder-se-á atender os fatos, ou manter a vigência e compromissos positivados pelo texto constitucional. O que se questiona é até que ponto a manutenção da estabilidade normativa deva ser sempre a solução adequada, como se o apriorismo representado pela manutenção hermética de normas, em detrimento da atualização dos fatos, desse ao problema ares de certeza identificados como solução adequada.
CLÁUSULAS PÉTREAS
Na constituição, dois são os principais lugares de consulta a respeito da estabilidade (ou da mudança): as cláusulas pétreas e as regras de estado de exceção.
Segundo a constituição, (art. 60, § 4º) não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. Direitos e garantias individuais estão enunciados ao longo do texto constitucional, em especial no artigo 5°.
O constitucionalismo possui a marca indelével que é a proteção dos direitos individuais contra a interferência do Estado. A gênese do constitucionalismo está atrelada ao ímpeto quanto a positivação dos direitos e garantias aptos a salvaguardar os indivíduos contra o arbítrio do Estado, com a consolidação e racionalização do poder político; a convergência de duas tradições que permite conceber à Constituição, simultaneamente, como um limite ou garantia, e como norma diretiva fundamental.
Conforme a concepção material de constituição, esta é o conjunto de normas que referem-se e determinam a organização do poder estatal; e compreende tanto a organização dos poderes estatais, à distribuição da competência, o exercício da autoridade, à forma de governo, até os direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais.
Direitos fundamentais são direitos positivados no texto constitucional, imanentes a condição de ser humano. Os direitos individuais, elencados no Capítulo I do artigo 5º, são também conhecidos como direitos de primeira geração e servem com mais ênfase ao Estado, que deve respeitar os direitos individuais, não invadindo a esfera privada do cidadão.
O termo cláusula pétrea traduz a vontade da Assembleia Constituinte de retirar do poder constituinte reformador – parlamentares que compõem as sucessivas legislaturas – a possibilidade de alterar determinado conteúdo da Constituição em razão de sua importância.
O poder constituído, também chamado de derivado, por se originar do Poder Constituinte originário, é subordinado, pois deve respeitar as normas expressas e implícitas da Constituição. A Constituição Federal de 1988 é classificada como rígida, somente alterável mediante processos, solenidades e exigências formais especiais, diferentes e mais difíceis que os de formação das leis ordinárias ou complementares.
A analiticidade constitucional confere ao Texto proteção sobre determinadas matérias, visando à estabilidade da ordem jurídica constitucional para bloquear a atuação do legislador infraconstitucional, por razões de descontentamento e insegurança do povo tanto em relação àqueles que têm a função de elaborar a lei quanto àqueles que têm por função aplicá-la. Pois esta é a lógica da legitimação da autoridade em sociedades democraticamente organizadas, com a prevalência da soberania política do cidadão em detrimento de forças políticas organizadas. Com isso, buscou o constituinte estabelecer limites constitucionais intransponíveis voltados à proteção de princípios e instituições básicas do Estado Democrático de Direito.
No que diz com a concepção material de Constituição, podemos afirmar que as forças vivas da sociedade disputam o jogo democrático dentro de suas regras pré-fixadas e não com o intuito de substituir a Constituição por outra.
Estado Democrático de Direito é, assim, um Estado que visa à garantia do exercício de direitos individuais e sociais, e os poderes instituídos (Legislativo, Executivo e Judiciário) são organizados de forma a que um não avance sobre a função precípua do outro. O Estado de Direito, nos dias atuais, tem um significado de fundamental importância no desenvolvimento das sociedades, após um amplo processo de afirmação dos direitos humanos, sendo um dos fundamentos essenciais de organização das sociedades políticas do mundo moderno.
O estado democrático de direito tem seu fundamento na soberania popular representativa, participativa, pluralista e livre, dotado de supremacia constitucional que vincule todos os poderes e os atos dela provenientes. É também elemento do estado democrático a existência de um órgão guardião da Constituição e dos valores fundamentais da sociedade, segundo a garantia dos direitos humanos, com justiça social.
A supremacia da Constituição não é requisito formal de funcionamento sistémico, mas uma questão de substancia. Por outras palavras, a hierarquia que ostenta a Carta se deduz não de um esquema artificialmente sustentando numa norma superior como garantia de seu funcionamento, senão da realidade de que a Constituição reproduz um conjunto de escolhas valorativas e finalísticas, que a tornam marco de referência e obrigatória obediência para a validade dos atos normativos do sistema que a ela se sujeitam.
Além da concessão de direito individuais e do estabelecimento de mecanismos de garantia de sua proteção, a Constituição também organiza o estado e dita as regras de seu funcionamento, descrevendo a tipicidade de uma situação de normalidade constitucional, daí à Constituição se atribuírem ao menos duas finalidades distintas, uma pessoal subjetiva e outra estatal, ou objetivo; seu texto não só protege o indivíduo mas, igualmente, dirige o funcionamento do estado.
Os defensores das cláusulas pétreas veem nelas a verdadeira essência da Constituição, e dessa forma não podem ser extintas. São indisponíveis, não se podendo nem mesmo abdicar dessa proteção. As cláusulas pétreas são formulações jurídicas destinadas a evitar a destruição ou a radical alteração da ordem constitucional, são dispositivos que definem a substância constitucional, revestida de uma rigidez insuperável, o que traduz a pretensão criar um núcleo inatingível. Essas cláusulas pétreas protegem o núcleo da Constituição contra quaisquer movimentos surgidos em momentos de forte clamor popular, quando a razão cede espaço à emoção. O significado último das cláusulas pétreas está em prevenir um processo de erosão da Constituição, com a missão de inibir a mera tentativa de abolir seu projeto básico, e sua duração.
ESTADO DE EXCEÇÃO
Afirma a CF/88 que o estado de defesa poderá ser decretado pelo Presidente da República para preservar ou prontamente restabelecer, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza, em locais certos e determinados. E que o estado de sítio, de sua vez, é requerido ao Congresso Nacional nos casos de comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; nos casos de declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira (art. 136 e 137 da CF/88).
O estado demanda o fortalecimento dos poderes públicos na perseguição de uma direção social única. É correto, contudo, observar que coube a esse processo de fixação de uma ordem constitucional a necessidade de elaboração de mecanismos particulares que possam tolher qualquer intento turbatório, seja ele intrínseco ou extrínseco, à própria soberania nacional.
Na ocorrência de uma situação emergencial a por em risco a integridade do Estado, bem como a segurança e a ordem públicas, preveem-se atribuições a fim de equalizar a excepcionalidade surgida, tomando-se as medidas necessárias a fim de restaurar a ordem constitucional.
O estado de exceção, de sua vez, identifica um período de anormalidade constitucional que se pretende regrar, limitar e nomear, com objetivos de normalização, em termos constitucionais, com balizas legais e regulamentares, no caso de não resultarem exitosas os meios prévios a disposição do estado para a solução de crises institucionais. Adota-se com o estado de defesa uma legalidade especial para a questão, consistindo o estado de exceção na instauração de uma legalidade extraordinária, em locais restritos e determinados, ou em todo o território nacional.
Pode-se afirmar a necessidade, a transitoriedade, a juridicidade e a subsidiariedade como os princípios disciplinadores do tema, de modo que em momento algum se trate de um regime especial que confira poderes imprevistos, ou que, pela especialidade, permitisse-se afirmar se pudesse desviar do padrão constitucional positivado para a solução das crises de anormalidade institucional, pois destinados à estabilização constitucional e a assegurar força na solução de crises, na defesa da constituição, do Estado e das instituições democráticas.
De um modo mais instrumental, o estado de exceção é a suspensão do direito existente, no interesse de uma ação eficaz de restauração da legalidade, em que cabe ao Estado, sob a representação de uma cúpula diretiva, a resolução da celeuma criada, competindo-lhe dirimir a turbulência causada à ordem legal vigente, impedindo, assim, a fragilização do Estado Democrático de Direito.
O Estado de defesa é uma situação de emergência na qual o Presidente da República conta com poderes especiais para suspender algumas garantias individuais asseguradas pela Constituição cuja suspensão se justifica para restabelecer a ordem em situações de crise institucional e nas guerras. No Estado de Sítio, que não pode exceder, a trinta dias, nem prorrogada de cada vez, as garantias constitucionais ficarão suspensas, desde que autorizadas na forma do artigo 139 da Constituição Federal; devem ser editadas normas para reger à sua execução. O estado de defesa consiste em uma forma mais branda de estado de sítio, porque alcança local restrito e determinado, ao passo que o segundo tem maior abrangência, pois aplica-se a todo o território nacional.
Cabe destacar que, nos períodos de exceção, não se gozará de total liberdade para tomar qualquer medida contra os cidadãos de seu país. Assim, apenas algumas ações poderão ser tomadas sobre os direitos individuais, previamente regulamentadas pela própria Constituição, sendo essa a principal forma de fazer com que o estado solva suas crises, via de regra, sem acarretar qualquer anomia, ou o surgimento de uma nova ordem, dada a destacada interseção entre os planos jurídico e político em derredor do tema, ou seja, é a própria constitucionalização das crises institucionais a forma de garantia da estabilidade estatal.
Importante lembrar, porém, a excepcionalidade de todas as medidas aqui apontadas. Sim, pois todas – em maior ou menor grau – implicam restrições de direitos, garantias e liberdades individuais e, portanto, devem ser tratadas com muita cautela, pois configurará puro golpe de estado, a atuação de exceção sem que haja a necessidade para a sua configuração.
Desta forma, os artes. 136 e 137 da CF/88 representam o esforço empreendido a fim de se solidificar os preceitos de estado democrático de direito, dos quais decorreram o desenvolvimento de soluções pragmáticas de situações excepcionais, previamente identificadas, a fim de que a soberania estatal não viesse a ser posta em risco diante de agentes desagregadores da ordem constitucional, e do relativismo que enseja a inversão da ordem e a predominância da linguagem político-ditatorial sobre os fundamentos do Estado.
CONCLUSÕES
O presente estudo depende da admissão das características do sistema jurídico, se fechado ou aberto.
Se o sistema é fechado, é comprometido com a estabilidade, a eficácia social e a linguagem jurídica, perfazendo um mecanismo de auto conservação diante dos fenômenos ocorridos fora do sistema, e cuja organização vai obedecer aos processos das suas próprias convenções, não se admitindo com isto algo que o transcende, senão pela admissão do próprio sistema e mediante as regras postas por ele mesmo.
Se o sistema textual é aberto, é sensível aos fenômenos fora dele, numa relação que seja possível intercambiar com as inovações acontecidas na exterioridade e inclusive com outros sistemas.
A constitucionalização simbólica da Constituição surge em face da hipertrofia da função simbólica em detrimento da função instrumental da norma jurídica constitucional, da discrepância entre uma e outra dimensão, decorrente do isolamento da prática jurisprudencial, e a sua função de revelar o conteúdo da constituição, e o sistema ambiental da sociedade, em razão da preservação de uma funcionalidade e linguagem absolutamente apartada das demandas dos jurisdicionados.
Isso, porém, enseja riscos de alopoiese e fragmentação da unidade jurídica do sistema, ameaçada por outras formas de linguagem, especialmente a hipertrofia dos relativismos conjunturais ditados por outros campos de produção normativa, especialmente a política, por exemplo.
Busca-se conceber o ordenamento jurídico como um sistema fechado de regras, neste sentido, o qual possibilita o controle e eficácia do ordenamento de maneira apriorística, ou seja, analítica – o que seria prejudicado caso o relativismo alopoiético excepcional fosse adotado como paradigma, e se passasse a interpretar mais com olhos ao exterior normativo, desviando-se do compromisso de efetividade jurídica em prol do atendimento de circunstâncias excepcionais.
As cláusulas pétreas e as crises constitucionais são ambos institutos de proteção da função constitucional de positivar garantias individuais e assegurar a operacionalidade do estado. Em ambos os casos, a Constituição prevê meios de fundamentar a ordem jurídica e racionalizar a atuação dos poderes, sendo um conjunto de normas que disciplinam a criação do Estado, da sua estrutura básica, das atribuições de seus órgãos, dos limites de poder, dos direitos dos indivíduos, dos grupos e da sociedade como um todo.
O estado de exceção, de sua vez, identifica um período de anormalidade constitucional que se pretende recorrentemente regrar, limitar e nomear, com objetivos de normalização, sendo a solução das crises estatais igualmente prevista na constituição, como forma de conter o uso ilimitado do poder, com a institucionalização dos institutos de emergência cada vez mais pormenorizadamente, e com maiores previsões de controle das ações dos agentes políticos executores das medidas coercitivas adotadas em época de crise.
Em ambos os institutos, verifica-se que o risco de predominância da linguagem político-ditatorial sobre os fundamentos do estado democrático de direito, o que deve ser objeto de avaliação, pois as características da contingencia poderão ser mais ou menos tendentes a pretensões oportunistas de dissolução da unidade normativa constitucional, em prol de um dinamismo ilegítimo de aparência lícita em razão dos atores que a protagonizam, os titulares dos poderes do estado.
A medida de abertura dos direitos fundamentais, a extensão da fundamentalidade dos direitos, ou da proporcionalidade (intensidade) das medidas destinadas a solver crises excepcionais, portanto, são ditadas pelo nível de manutenção dos compromissos constitucionais, seja para com as garantias individuais seja para com o funcionamento normal do estado, pessoal e objetivo, isto é, tanto tutelando a pessoa humana como a harmônica relação entre os poderes, controlando-se a erupção de contingências, e sua relevância, que aparentem demandar a perturbação da harmonia dos poderes.
Conclui-se, por isso, que, toda vez que a o teor material do estado democrático de direito, como acima descrito, for infringido, haverá estado de crise constitucional a ser solucionado com alguma das medidas proporcionalmente prevista pelo próprio texto, sendo as cláusulas pétreas e as normas relativas as crises de exceção o locus constitucional qualificado de onde se extrai o paradigma para a constatação de eventuais crises, bem como os instrumentos destinados a solucioná-las.
A consideração dos valores democráticos é, com efeito, o critério de apreciação de toda e qualquer intervenção política que assemelhe mudança ou ruptura da ordem. Como o Direito existe para regular comportamentos baseado em valores e esses valores estão em um contínuo de mudança, é lógico e natural que as regras devam mudar para adequar-se aos novos tempos e as novas realidades do grupo social.
Fora disso, não representa alteração constitucional relevante a mudança de opinião ou atitude diante da aplicação da Constituição, por meio da aplicação das normas ao caso concreto; no processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos ao texto através da interpretação, sob pena de os compromissos constitucionais se desfazerem numa crise de efetividade que não pactua com os destinatários da Constituição, e com a própria soberania popular.
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