O Adiamento do ENEM em Razão do Princípio da Isonomia

Leia nesta página:

O acesso à educação é garantido pela Constituição Federal, contudo diante da pandemia do Covid-19 essa acessibilidade foi prejudicada, colocando o adiamento do ENEM como uma questão imperiosa para a concretização dos direitos sociais.

INTRODUÇÃO

Em razão das restrições impostas para preservar a saúde da população em razão do coronavírus, dúvidas cercam o âmbito político para a aplicação ou não do Exame Nacional do Ensino Médio. O pleito para o adiamento do ENEM é justificado pelo não acesso à educação por parte de muitos estudantes que não tem acesso a internet e de modo consequente, não conseguem se preparar para o exame. O Ministro da Educação se manifestou de forma contrária a mudança ou cancelamento da prova, tratando com extrema normalidade as desigualdades sociais vivenciadas no Brasil.

A Constituição da República Federativa do Brasil trata sobre o Direito à educação como direito social, dessa forma, a educação se torna um direito fundamental para o desenvolvimento da sociedade, estando assim conectado com o princípio da dignidade da pessoa humana, que trata das condições mínimas para uma vida digna. Dessa maneira, o momento atravessado nos dias de hoje nos leva a reflexão sobre o conflito das falas proferidas pelo Ministro da Saúde com o referido princípio constitucional. 

 

II – Princípios constitucionais para o acesso à educação 

A CRFB/88 em seu artigo 6° versa a educação como um direito social, dessa maneira, o Estado deve garantir a todos o acesso à educação. Porém, entre os artigos 205 e 214, a Constituição trata de maneira específica a educação, tratando de um direito de todos e dever do Estado e da família. Os princípios constitucionais que regem o direito à educação, estão dispostos no artigo 206 [1]:

“Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

  I -  igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

 II -  liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; 

 III -  pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; 

  IV -  gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

-  valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas;

 VI -  gestão democrática do ensino público, na forma da lei;

 VII -  garantia de padrão de qualidade;

VIII -  piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal. ”

Assim, logo em seu inciso primeiro, o artigo 206 trata sobre a igualdade nas condições de acesso à escola, que agem de acordo com o princípio da isonomia, previsto no artigo 5° caput. Entretanto, apesar do artigo que versa sobre a igualdade muitas vezes ser interpretado de forma errada e utilizado para justificar que o Estado deve tratar todos da mesma maneira, a isonomia na verdade aborda sobre o tratamento igual para os iguais e o desigual para os desiguais, nas medidas das suas desigualdades. Em relação a isso, Aristóteles trata sobre a maneira diferente de tratar os desiguais:

Ora, igualdade implica pelo menos duas coisas. O justo, por conseguinte, deve ser ao mesmo tempo intermediário, igual e relativo (isto é, para certas pessoas). E, como intermediário, deve encontrar-se entre certas coisas (as quais são, respectivamente, maiores e menores); como igual, envolve duas coisas; e, como justo, o é para certas pessoas. O justo, pois, envolve pelo menos quatro termos, porquanto duas são as pessoas para quem ele é de faro justo, e duas são as coisas em que se manifesta — os objetos distribuídos. 

E a mesma igualdade se observará entre as pessoas e entre as coisas envolvidas; pois a mesma relação que existe entre as segundas (as coisas envolvidas) também existe entre as primeiras. Se não são iguais, não receberão coisas iguais; mas isso é origem de disputas e queixas: ou quando iguais tem e recebem partes desiguais, ou quando desiguais recebem partes iguais. Isso, aliás, é evidente pelo fato de que as distribuições devem ser feitas "de acordo com o mérito"; pois todos admitem que a distribuição justa deve recordar com o mérito num sentido qualquer, se bem que nem todos especifiquem a mesma espécie de mérito, mas os democratas o identificam com a condição de homem livre, os partidários da oligarquia com a riqueza (ou com a nobreza de nascimento), e os partidários da aristocracia com a excelência. ” [2]

Assim, sendo observado o princípio da isonomia como norteador do tratamento que deve ser dado a diferentes pessoas, com diferenças sociais e patrimoniais, inclusive no acesso à educação, conforme é destacado no artigo 206 da Constituição Federal, a igualdade é fundamental para o desenvolvimento social, conforme artigo 6° CF. Desse modo, todos os princípios se correlacionam com o da dignidade da pessoa humana, que trata sobre o mínimo que o ser humano necessita para viver em sociedade e é definido pelo doutrinador como:

“A dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões, muito embora – importa repisar – nem todos os direitos fundamentais (pelo menos não no que diz com os direitos expressamente positivados na Constituição Federal de 1988) tenham um fundamento direto na dignidade da pessoa humana. Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á negando-lhe a própria dignidade, o que nos remete à controvérsia em torno da afirmação de que ter dignidade equivale apenas a ter direitos (e/ou ser sujeito de direitos), pois mesmo em se admitindo que onde houver direitos, pelo menos de acordo com o que sustenta parte da doutrina, consiste no fato de que as pessoas são titulares de direitos humanos em função de sua inerente dignidade”[3]

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É visível que a educação e a sua acessibilidade são direitos essenciais para a formação da personalidade do ser humano, conforme trata a Constituição Federal e conforme preceitua Aristóteles e Sarlet. Por ser um direito social e ser fundamental para a vida humana, se torna um direito inerente e imperioso, assim, a educação faz parte do conjunto essencial de necessidades de todo o ser humano e se de alguma forma for negado, violará normas e princípios estabelecidos pela Constituição da República Federativa do Brasil.

 

II – Adiamento do ENEM

Nos dias atuais, o mundo atravessa uma pandemia em razão do novo coronavírus. Dessa forma, estabelecimentos tiveram de ser fechados, incluindo escolas e universidades. Assim, instituições de ensino tiveram que se adaptar ao momento atual, criando aulas virtuais para não paralisar suas atividades e também não prejudicar o acesso à educação de seus estudantes. Porém, apesar de em alguns casos os estudantes conseguiram permanecer estudando, em outros a realidade é diferente.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostram que até o ano de 2018, 46 milhões de brasileiros não tinham acesso à internet [4], o que responde a 25,3 % da população. Foi destacado pelo IBGE a desigualdade de renda como principal motivo para o não acesso, sendo que há uma enorme desigualdade entre as regiões do Brasil, sendo o nordeste a região com menos acesso, com 17,65% e a região centro-oeste com o maior número de pessoas com essa acessibilidade, apenas 2,58% não tem acesso à internet.

Apesar de todas as circunstâncias apontarem para uma desigualdade e inacessibilidade da internet por parte de muitas famílias, o Ministro da Educação Abraham Weintraub afirmou que o Exame Nacional do Ensino Médio irá ocorrer [5]. Além da afirmação que ocorrerá a prova, o Ministro sugeriu o retorno das aulas a Governadores, dizendo que era necessário correr atrás do prejuízo após realizarem uma quarentena generalizada e precipitada. 

A grande polêmica em relação ao adiamento do ENEM ficou maior após o Ministro afirmar em uma entrevista na CNN que o Enem “não é feito para atender injustiças sociais e, sim, para selecionar os melhores candidatos” [6]. Weintraub ainda fez uma brincadeira e disse “Se a pessoa não tem internet nenhuma em casa, ela não consegue se inscrever no Enem”, de acordo com o Ministro a anulação do ENEM é uma ideia da oposição e ainda disse que o cancelamento tem viés político e econômico. Diversos países cancelaram ou adiaram os seus vestibulares, como França, Estados Unidos e China [7], entendendo que o momento vivenciado pela pandemia não é adequado para a realização dos exames.

 

III – Conclusão

A Constituição Federal resta clara em relação ao princípio da isonomia, que não deve ser interpretado de maneira errônea, como ocorre quando é justificado para o tratamento igual para todos. Conforme o grande filósofo Aristóteles já dizia em suas obras, o tratamento deve ser igual para os iguais e desigual para os desiguais, devida as condições sociais que cada indivíduo se encontra. Dessa maneira, o princípio da igualdade é encontrado também no campo educacional, onde existe a necessidade de fornecer acessibilidade à educação de maneira igual para todos, pois a educação é de fato um direito fundamental para a formação do indivíduo.

Porém, apesar da Constituição tratar de maneira clara sobre a igualdade no acesso à educação, o Ministro Weintraub, de maneira prepotente, fala sobre a não possibilidade do cancelamento do ENEM. Portanto, resta claro que diante da situação atual, onde o mundo atravessa uma pandemia e o número de mortos no Brasil aumenta cada vez mais, a realização do Exame Nacional do Ensino Médio violará a Constituição Federal, diante da não possibilidade do acesso à educação de boa parte dos estudantes de baixa renda.

A realização do exame beneficiará estudantes de classes sociais altas, que tem a possibilidade de acessar a internet e muitas das vezes estudam em escolas particulares, que fornecem total acesso e preparação para o vestibular.Assim, para preservar o princípio da isonomia, é necessário o cancelamento ou adiamento do ENEM, pois em caso contrário, o Governo estaria negando o princípio da isonomia e concedendo mais benefícios aos iguais.

 

REFERÊNCIAS

[1]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[2] (Aristóteles, ÉTICA A NICÔMACO, Volume II, Nova Cultural, Pág 102).

[3] (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 2 eds. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. 392 p.)

[4]https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2020/04/29/em-2018-quase-46-milhoes-de-brasileiros-ainda-nao-tinham-acesso-a-internet-aponta-ibge.ghtml

[5]https://educacao.uol.com.br/noticias/2020/04/19/weintraub-volta-a-ignorar-decisao-judicial-e-reitera-que-vai-ter-enem.htm

[6]https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/05/15/interna_politica,1147798/weintraub-sobre-enem-nao-e-feito-para-atender-injusticas-sociais.shtml

[7]https://super.abril.com.br/sociedade/pelo-mundo-paises-estao-cancelando-ou-adiando-seus-enems/

Sobre os autores
Pedro Vitor Serodio de Abreu

LL.M. em Direito Econômico Europeu, Comércio Exterior e Investimento pela Universität des Saarlandes. Legal Assistant na MarketVector Indexes.

Matheus Rodrigues dos Santos

Advogado, graduado em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA), pós-graduando em Direito Civil Constitucional (UERJ). contato:[email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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