A Revisão contratual em tempos de Pandemia sob o aspecto do consumidor

19/05/2020 às 02:33
Leia nesta página:

O presente texto busca debater, sob uma perspectiva do consumidor, de que forma a Pandemia de Coronavírus pode ser usada como justificativa para uma possível revisão contratual, especialmente em relação às multas rescisórias.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que a doença causada pelo novo Coronavírus – COVID 19 – constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional chegando, dessa forma, ao mais alto nível de alerta da OMS de acordo com o Regulamento Sanitário Internacional. Essa declaração ocorreu no dia 30 de janeiro de 2020. Cerca de quarenta dias depois, a Organização classificou essa doença como uma pandemia. Em questão de meses, essa doença resultou em centenas de milhares de mortes pelo mundo e ainda não se sabe quantas vidas levará a mais. O fato é que o mundo parou diante da Pandemia; milhões perderam os seus empregos, rendas, empresas. As maiores economias mundiais despencaram e continuam a ter os seus mercados financeiros afetados (OPAS, 2020).

Relações contratuais estão sendo prejudicadas; muitos fornecedores não estão conseguindo honrar a entrega de produtos e serviços ou estão impedidos de fazê-lo; pessoas que perderam a sua renda não estão conseguindo mais pagar suas dívidas ou mensalidades. Simplesmente, o caos financeiro e social espreita as relações humanas no presente momento ao passo que já nos encontramos dentro de um cenário caótico de contaminações e mortes.

Diante disso, muitos doutrinadores jurídicos já se posicionaram sobre alguns pontos do Direito frente à Pandemia que assola a comunidade mundial. Talvez o ponto mais discutido no âmbito do Direito Civil seja a possibilidade ou não de revisões ou resoluções contratuais cuja fundamentação seja baseada na crise causada pela Pandemia de Coronavírus.

A nossa proposta será abortar o presente tema sob um aspecto voltado para o consumidor, ou seja, considerando uma parte da relação contratual hipossuficiente. O consumidor geralmente é o mais afetado quando se trata de casos imprevistos que venha a causar o término de um contrato. A perda de um familiar provedor do sustento familiar, a perda de um emprego, o surgimento de um gasto emergencial ou qualquer fato que cause distúrbio financeiro ao consumidor gera a necessidade do mesmo em finalizar algumas relações contratuais a fim de cortar gastos.

No entanto, tais desistências contratuais geram reflexos: pagamento de multas rescisórias, obrigações de fazer, perda de valores já investidos, dentre outras possibilidades que oneram, quase sempre, o consumidor. Necessário informar que a totalidade dos contratos referentes a relações de consumo são contratos de adesão que preveem de forma genérica as causas de resoluções contratuais por eventos tomados por imprevisibilidade ou caso fortuito.

O grande jurista Flávio Tartuce (2020), em um artigo relacionado ao tema, elenca alguns dos instrumentos existentes no Direito para a revisão ou resolução contratual, sendo os mais importantes para a construção da nossa tese a “alegação de caso fortuito - evento totalmente imprevisível - ou força maior - evento previsível, mas inevitável -, nos termos do art. 393 do Código Civil, para justificar o inadimplemento”. Sendo essa hipótese na qual o devedor não responde pelos prejuízos causados por esses eventos se não for ele o responsável por tais danos. E a “Resolução ou revisão do contrato com base na teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva, o que tem fundamento, nas relações civis, nos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil”, onde é exigido que o fato superveniente seja imprevisível além de possuir onerosidade excessiva.

Ocorre que, conforme a Lei 8.078/90 que institui o Código de Defesa do Consumidor (CDC), a revisão contratual não carece de provar a imprevisibilidade, quando o distúrbio cause a quebra da base objetiva da relação contratual ou afete a proporcionalidade das prestações nas relações consumeristas (TARTUCE, 2020).

Assim, tem-se o seguinte enunciado do CDC:

“Art. 6º são direitos básicos do consumidor: [...] V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”.

Note-se que aqui não menciona resolução contratual, mas tão somente a revisão ou modificação de cláusulas diante de fatos excessivamente onerosos. No entanto, já é o necessário para salvaguardar o consumidor das famosas multas de rescisão contratuais que, diante de contratos entre consumidores e prestadores de serviço, estabelecem ônus à parte que solicitar o fim da relação contratual, aplicando-lhe uma multa proporcional ao tempo restante em que o contrato deveria gerar seus efeitos.

Não se busca, por aqui, defender a tese de que é possível rescindir um contrato usando como justificativa o caos provocado pelo coronavírus uma vez que toda relação contratual constitui-se de obrigações das mais variadas formas. O proposto no texto é defender a possibilidade da revisão de cláusulas que venham onerar excessivamente o consumidor quando este busca a rescisão de um contrato perante o prestador de serviços. A multa nesses casos não visa evitar o prejuízo de uma parte em relação ao término do contrato, mas tão somente, a desmotivar rescisões ou cancelamentos sem fundamentações. Às vezes, trata-se até mesmo de um artifício usado pelas empresas para "prender" o consumidor ao contrato, impelindo-o de não cancelar os serviços prestados.

Relevante dizer que a multa cobrada pelo prestador de serviço encontra respaldo na legislação brasileira, possuindo um limite de até 10% do valor restante do contrato. Porém, diante da Pandemia do Coronavírus, ocorre que se torna algo muito oneroso pagar uma multa por conta de uma rescisão cujo motivo seja justamente a incapacidade de pagamento das mensalidades ou prestações por perda de renda. Isso, além do prejuízo já recebido pelo fato da necessidade de ter o serviço paralisado como, por exemplo, o sonho de cursar uma faculdade.

Um bom exemplo é o que ocorre em cursos de idiomas que possuem cláusulas desse tipo induzindo o aluno a permanecer matriculado ou pagar determinada quantia caso faça a rescisão contratual antes da renovação periódica de sua matrícula. Observe, por hipótese, que no curso da Pandemia tal curso seja impedido de dar aulas ao consumidor ou que tenha reduzido sua prestação de serviços razoavelmente. Imagine que o consumidor, aluno do curso, venha a perder sua renda frente à crise econômica causada pela COVID-19 e que mal consiga pagar a mensalidade do corrente mês à escola. Seria razoável que a Escola de Idiomas viesse a onerar, com uma multa, o consumidor? Seria justo que, em meio a um caos econômico e social, o prestador de serviços venha a cobrar um valor exorbitante para pôr fim ao contrato em detrimento de um indivíduo que não tem recursos mínimos?

De fato, isso fere a boa fé contratual, um dos princípios basilares do Direito Civil. Também fere claramente o princípio da função social do contrato que busca a conservação do contrato, assegurando troca justas e úteis para as partes.

Nos dizeres de Eduardo Nunes e Rodrigo da Guia Silva (2020), tem-se a pertinente observação:

 

“Por certo, as circunstâncias do novo coronavírus não podem ser interpretadas como evidência, ipso facto, da impossibilidade superveniente de concretização de todo e qualquer programa contratual. A análise, como sempre (e, particularmente, quanto mais demarcada for a relevância de um olhar funcional sobre o contrato), dependerá das peculiaridades de cada caso concreto.”

 

Tartuce (2020) argumenta que:

 

“[..] todos os contratos merecem uma análise pontual, dentro do esperado bom senso, como consequência imediata do princípio da boa-fé objetiva. As partes devem, assim, procurar soluções intermediárias e razoáveis, movidas pela equidade e pela boa razão. Os contratos relacionais ou cativos de longa duração, concretizados no tempo e com grande possibilidade de continuarem a se perpetuar no futuro, merecem prioridade de cumprimento, além daqueles negócios que envolvem conteúdo existencial, além do patrimônio, caso dos contratos de plano de saúde.”

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Aqui não se busca o término do contrato em si ou se a Pandemia de Coronavírus seja ou não fator decisivo e justificante para uma resolução contratual entre partes igualmente colocadas em uma relação jurídica, como é o caso de contratos entre empresas ou particulares. O que se busca é de que forma o Direito pode vir a proteger o consumidor de cláusulas que venha a onerá-lo gravemente diante de situações como essas.

Ponto um pouco diferente é o que defende a advogada Priscilla Chater (2020):

 

“Valer-se de regras comuns, de entendimentos aplicados em situações ordinárias, de cláusulas rígidas e de legislações hiper protecionistas não parece ser o melhor caminho, afinal o Direito é evolutivo e, diante da criticidade do momento, é prudente que, além da revisão das obrigações pactuadas, busquem meios alternativos de solucionar os seus conflitos.”

 

Não entendemos que regras que visem a proteção de certas partes dentro de uma relação contratual venha a ser um mal caminho. Diante de uma análise onde, nos contratos, a maioria das relações apresentam uma verticalização do poder é dever do Estado promover a igualdade material de modo que os mais fragilizados por essas relações sejam, de certa forma, respaldados com normas capazes de deixa-los em situação de igualdade frente ao direito civil.

A titulo de exemplo, pode se imaginar a importância do CDC nesse momento de Pandemia de Coronavírus diante dos abusos das empresas em aumentar agressivamente os preços de produtos de higiene pessoal. Indagamos além: o que seria dos brasileiros se caso a Consolidação das Leis Trabalhistas não protegessem o trabalhador com altivez, diante dessa crise financeira? Não obstante, relata-se o direito internacional na luta contra a pirataria comercial buscando a proteção dos países menos favorecidos.

Logo se vê que é sim necessária uma proteção vigilante em casos em que há discrepância de poder nas relações contratuais. Principalmente na relação entre empresa e indivíduo. Contudo, todo contrato opera sobre princípios da boa fé, da função social e do equilíbrio contratual.

Nessas situações, o que se deve prevalecer é o bom senso em detrimento de contratos de adesão, através de acordos firmados entre o prestador de serviços e o consumidor levando em conta a autocomposição ou negociação entre as partes a fim de um meio termo.  Porém, caso a negociação extrajudicial não seja satisfatória, a maneira mais adequada é a conciliação judiciária. Na conciliação dentro dos fóruns, procedimento necessário e anterior a qualquer ajuizamento de ação judicial cível, as partes se equiparam em nível de poder e muitas vezes um acordo favorável a ambos é realizado conforme o caso em específico.

Por certo, assim como não é razoável suscitar a Pandemia de Coronavírus como justificativa para aqueles contratos firmados após a ciência de seus estragos, também não é lícito que a cobrança de multas rescisórias seja imposta como condição para a resolução de relações entre consumidores que perderam sua renda com grandes empresas prestadoras de serviços, as quais também não andam prestando seus serviços com normalidade.

De todo modo, a saída para tal ponto é a adoção entre consumidores e prestadores de serviços de uma relação solidária e de parceria. Usando da boa fé, o melhor caminho é buscar acordos fora dos tribunais levando em conta a ausência de culpa das partes diante de um inimigo maior para ambos os lados.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm>. Acesso em maio de 2020.

CHATER; Priscilla. Coronavírus e força maior: o que diz o seu contrato?. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-mar-19/priscilla-chater-coronavirus-forca-maior-contrato>. Acesso em maio de 2020.

ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE. Folha informativa – COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). Disponível em < https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875>.  Acesso em maio de 2020.

SOUZA; Eduardo Nunes de; SILVA; Rodrigo da Guia; Resolução contratual nos tempos do novo Coronavírus. Disponível em < https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322574/resolucao-contratual-nos-tempos-do-novo-coronavirus>  Acesso em maio de 2020.

TARTUCE; Flávio. O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade. Disponível em < https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322919/o-coronavirus-e-os-contratos-extincao-revisao-e-conservacao-boa-fe-bom-senso-e-solidariedade> Acesso em maio de 2020.

 

 

 

 

Sobre o autor
Leandro Ferreira da Mata

Cientista Jurídico; bacharel em Direito pelo Centro Universitário Estácio Brasília; Especialista em Direito da Criança, Juventude e dos Idosos e em Segurança Pública e Organismo Policial.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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