Questões condominiais e o poder decisório do síndico em face dos efeitos da Covid-19

19/05/2020 às 17:55
Leia nesta página:

Trata-se de artigo com análise de questões condominiais e o papel do síndico para a resolução desses, bem como o poder decisório deste, usando como exemplo a fim de ilustrar a situação, a live produzida pelo DJ Alok em seu apartamento.

INTRODUÇÃO

Com as medidas de isolamento social sugeridas pelas autoridades de saúde e parcialmente seguidas pela população, surgiram diversas questões jurídicas outrora não vislumbradas nas relações sociais e, algumas delas, até mesmo sem previsão legal expressa. Dentre as novas questões trazidas, se encontram as decorrentes entre condôminos e condomínio, bem como a atuação do síndico e suas limitações.

Dentro deste escopo, destacou-se na última semana a transmissão ao vivo de uma produção musical realizada pelo DJ Alok em sua cobertura, em um condomínio de luxo na cidade de São Paulo, com som alto, show de luzes e pirotecnia no alto do prédio. Em vídeo publicado no dia 03 de maio de 2020, cuja transcrição se encontra no site GazetaWeb[1], o administrador do condomínio informou que, aparentemente, teria agido em discordância com regimento interno e Código Civil para a realização da superprodução.

Conforme relata, houve grande apoio por parte dos moradores, havendo apenas um ou outro que demonstraram discordância. Contudo, a falha ocorrida se deu pela informalidade da consulta realizada, pois o evento foi deliberado por meio da comunicação pelo aplicativo de mensagens whatsapp, quando claramente a questão deveria ter sido deliberada por intermédio de assembleia, ainda que virtual. Ademais, não detia autonomia para permitir a produção, uma vez que violaria o artigo 1.336, inciso IV do Código Civil de 2002. Senão, vejamos:

Art. 1.336. São deveres do condômino:

[...]

IV - dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes.

Diante da previsão acima, e considerando que o show transmitido pudesse ocasionar perturbação ao sossego dos demais condôminos e, ainda, pela grande probabilidade de que a produção causasse violação direta à dispositivo de regimento interno do condomínio no que diz respeito à produção de barulho em horário inapropriado, torna-se evidente a conduta equívoca adotada pelo síndico.

  1. DO CONDOMÍNIO

Juridicamente, entende-se por condomínio a comunhão entre direitos e deveres de um grupo de pessoas, com interesse sobre um determinado bem em comum, dando origem ao que poderíamos classificar de copropriedade, havendo diversos titulares de direitos sobre determinado bem. Nos últimos anos, com o crescimento vertiginoso da população e com a limitação do espaço físico das cidades, tem-se popularizado a construção de edifícios que privilegiam os apartamentos privativos do proprietário adquirente e das áreas de lazer, geralmente designadas como áreas em comum, caracterizando-se dessa forma, o condomínio edilício.

 Assim, conforme conceitua Maria Helena Diniz, é uma combinação de propriedade individual e copropriedade de áreas em comum, caracterizando-se pela justaposição de propriedades distintas e exclusivas ao lado das áreas forçosamente em comum. Nesse sentido, as partes em comum devem ser utilizadas em harmonia por todos os condôminos, respeitando-se a sua destinação, conquanto que a propriedade particular possa ser utilizada em conformidade com o que melhor convier a cada proprietário, respeitados os direitos e deveres de vizinhança.

Com efeito, sob essa genuína “nova sociedade”, havendo suas próprias regras de direito privado a serem seguidas, além das já existentes e impostas pelo Poder Público, se faz necessária a instituição de regramento próprio a fim de regular as relações entre condôminos, para que estes possam conviver em harmonia e respeitar a destinação sob a qual foi constituída. O instrumento desse regramento própria é a chamada convenção, a qual deve se pautar pelo Código Civil de 2002 e pela Lei dos Condomínios.

  1. DO SÍNDICO

Embora não seja dotada de mesma natureza jurídica de outras entidades, vez que não exploram atividade econômica, como as empresas em geral, o condomínio tem der ser constituído, nos termos da lei, a partir de sua inscrição no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica do Ministério da Fazenda, tendo em vista as obrigações necessárias que há de cumprir.

Diante disso, e para poder conjugar o acordo de vontades, com o intuito de atender a demanda de todos os condôminos, se impõe a eleição da pessoa do síndico. Embora seja figura representativa e dotada de certa autoridade, o síndico não deve agir conforme o seu entendimento, mas sim consoante o que dispõe o artigo 1.348 do Código Civil:

Art. 1.348. Compete ao síndico:

I - convocar a assembleia dos condôminos;

II - representar, ativa e passivamente, o condomínio, praticando, em juízo ou fora dele, os atos necessários à defesa dos interesses comuns;

III - dar imediato conhecimento à assembleia da existência de procedimento judicial ou administrativo, de interesse do condomínio;

IV - cumprir e fazer cumprir a convenção, o regimento interno e as determinações da assembleia;

V - diligenciar a conservação e a guarda das partes comuns e zelar pela prestação dos serviços que interessem aos possuidores;

VI - elaborar o orçamento da receita e da despesa relativa a cada ano;

VII - cobrar dos condôminos as suas contribuições, bem como impor e cobrar as multas devidas;

VIII - prestar contas à assembleia, anualmente e quando exigidas;

IX - realizar o seguro da edificação.

Assim, em conformidade com a norma acima, o síndico, regularmente eleito para representar os interesses de todos os condôminos, tem de cumprir o que determinar o regimento interno, bem como fazer cumprir (enforcement) o que for decidido em assembleia condominial. Não por acaso, agindo em conduta diversa da acima descrita, o síndico pode ser responsabilizado em caso de descumprimento das determinações legais.

  1. DO CASO DJ ALOK

No sábado, dia 02 de maio de 2020, foi a vez do internacionalmente conhecido DJ Alok promover show musical dentro de sua residência, com transmissão ao vivo pelos canais de Televisão, fazendo uso de música alta, show de luzes e pirotecnia, características bastante comuns aos shows do gênero musical eletrônico. Como dito acima, a realização do evento se deu na cobertura do artista em um condomínio de luxo na cidade de São Paulo.

A questão que merece destaque e um olhar sob o prisma da legislação vigente no Brasil, cinge-se sobre a realização sem a anuência dos demais condôminos, consoante o que determina o Código Civil. Em depoimento à imprensa, o síndico Márcio Raschkovsky [2]disse que houve ameaça por parte de moradores que não concordaram com a realização da live, com promessas de ações judiciais ou até mesmo de uso de força policial. Na mesma entrevista disse, ainda, que houve consulta prévia ao grupo do aplicativo de mensagens dos condôminos, havendo um ou dois moradores que demonstraram insatisfação por não ter havido assembleia para tratar especificamente deste tema.

Portanto, a questão que se levanta é: poderia o síndico ter atuado da forma como agiu? Poderia autorizar evento de condômino que prejudicasse o sossego dos demais moradores sem consulta formal em assembleia? Parece-nos bastante claro que a conduta adotada pelo síndico, ainda que sob a justificativa de “atratividade” para o condomínio ou a intenção de angariar fundos para causas beneficentes, não é suficiente para respaldar as condutas ilícitas adotadas, as quais iremos expor nos parágrafos seguintes.

2.1 Da ilicitude civil

Conforme dispõe o Código Civil em seu artigo 1.348, o síndico tem o dever de cumprir e fazer cumprir a convenção, regimento e as decisões tomadas em assembleia, realizando a administração do condomínio, prestando contas aos condôminos e adotar diretrizes que devam atender a todos. Nesse diapasão, quando exigido quórum especial, deve levar o assunto para deliberação através de convocação de assembleia extraordinária. No caso em tela, a realização da live extravagante provavelmente se caracteriza como violação aos horários regulares para permissão de barulho, de modo que a concessão de realizar este show deveria ter-se dado com a aprovação de dois terços de todos os condôminos adimplentes.

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Importa dizer que, ainda que haja previsão na convenção e regimento do condomínio para a permissão de realização de assembleia virtual, quando tratar-se de exigência de quórum especial, essa deve ser realizada com o estrito cumprimento de todas as formalidades exigidas para a deliberação, quais sejam: convocação, horário, tema a ser votado e modalidade deliberativa, permitindo assim que todos os condôminos possam manifestar-se, não cabendo o sufrágio por meio de grupos em aplicativos de mensagens. Não havendo a previsão de assembleia virtual no regimento, tem-se um agravante da conduta, uma vez que, até o presente momento, inexiste previsão legal para a realização de assembleia nessa modalidade.[3]

Em que pese o posicionamento por nós exposto, há a necessidade de se atentar ao disposto pelo artigo 1.336, inciso IV do Código Civil, que determina que o uso da unidade autônoma não pode prejudicar o sossego dos demais condôminos, além de dar à sua parte a mesma destinação que tem a edificação. Desse modo, a realização do citado evento poderia promover a desfiguração de tal destinação, o que, nos termos do artigo 1.351 do Código Civil, somente poderia ocorrer mediante a aprovação unânime de todos os condôminos adimplentes[4].

Por fim, dada a importância do assunto e o desvio de destinação da área comum, mister que a deliberação seja feita por intermédio de assembleia, respeitando-se as suas formalidades, nos termos do Código Civil e do Regimento Interno, uma vez que o título sindical é de mera representação da sociedade condominial, não havendo poderes discricionários que independam da vontade condominial, a não ser em situações corriqueiras do dia a dia. Ora, a legislação prevê como único modo de deliberação dos condôminos a assembleia, razão pela qual deve ser seguida, não havendo grupo de mensagens por aplicativo que possa substituí-la.

Como exposto, a conduta adotada pelo síndico Sr. Márcio Raschkovsky carece de requisitos legais amparados pela legislação civil brasileira. De igual modo, a justificativa trazida à baila, isto é, a atratividade do evento ou a natureza beneficente da ação, não elidem a ilicitude civil. No que diz respeito às questões condominiais, a atuação do síndico é engessada, de modo que este tem o dever de agir como representante dos possuidores, que utilizam da coisa em comum, bem como da coisa exclusiva, cabendo aos últimos, por meio de sufrágio próprio, deliberar sobre as diretrizes que serão adotadas na relação entre condomínio e condôminos, principalmente nos tempos de pandemia.

Este é apenas um caso exemplificativo em que o poder sindical foge da sua alçada legal e razoável. Muito tem-se noticiado a respeito de medidas arbitrárias de síndicos ao longo de todo o território nacional, tais como proibição unilateral de uso de áreas comuns, proibição de receber visitantes e, até mesmo, vedação do uso de elevadores: decisões tomadas sem a prévia consulta aos condôminos, sob a justificativa da impossibilidade de realização de assembleia. Cumpre lembrar que a área em comum do condomínio integra, em sua proporção, ao direito de propriedade do condômino, razão pela qual seu uso não pode ser simplesmente tolhido sem quaisquer deliberações pelas assembleias condominiais.

Ante a exposição, resta-nos evidente que a conduta adotada pelo representante condominial representa grave afronta às determinações legais e que, por mais louvável que seja a finalidade do evento, este deve ser submetido, em respeito aos demais possuidores da coisa em comum, à deliberação nos termos legais. Mesmo em questões condominiais, os fins não podem justificar os meios.


[1] https://gazetaweb.globo.com/portal/noticia/2020/05/sindico-de-condominio-de-alok-revela-bastidores-de-live_104730.php

[2]YAHOO. Síndico do prédio de Alok fala sobre lives: “Torcendo para acabar logo”. Disponível em: <https://br.noticias.yahoo.com/s%C3%ADndico-pr%C3%A9dio-alok-fala-sobre-163909776.html>. Último acesso em 14 de maio de 2020.

[3] Cf. Projeto de Lei 548/2019, cujo intuito é dinamizar e trazer mais facilidade à condução de assembleias de quórum especial.

[4] O inciso III do artigo 1.335 do Código Civil determina ser direito do condômino, quando quite, votar nas deliberações da assembleia e delas participar.

Sobre o autor
Guilherme de Camargo Medelo

Advogado graduado pela Faculdade de Direito de Sorocaba (FADI), especializado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito (IBIJUS), pós-graduando em Direito Tributário e Constitucional pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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