PORTE DE ARMAS: DIREITO HUMANO E FUNDAMENTAL

25/05/2020 às 15:17

Resumo:


  • A Constituição de 1988 foi criticada por não incluir explicitamente o direito à autodefesa e o direito de portar armas como garantias fundamentais, o que é visto como uma omissão grave, considerando a importância desses direitos para a resistência à tirania e a proteção da liberdade individual.

  • O direito de portar armas é classificado como um direito humano de primeira geração, implicando que tal direito está implícito na Constituição Federal de 1988, e qualquer legislação que o restrinja ou proíba está em conflito com as normas supralegais dos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

  • A Lei 10.826/2003, que regula o porte de armas no Brasil, é considerada inconstitucional e em conflito com os tratados internacionais sobre direitos humanos, pois restringe o direito à segurança pessoal ao exigir a comprovação de "efetiva necessidade" para o porte de armas, o que não está alinhado com a proteção do direito à liberdade e à segurança pessoal.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Neste trabalho demonstraremos que os direitos ao porte de armas e à legítima defesa são direitos humanos de primeira geração, possuem assento constitucional, consubstanciadas no direito à segurança pessoal previsto no Pacto de São José da Costa Rica.

Introdução

É grave e preocupante que o imaginário social não perceba que é responsabilidade de cada indivíduo defender a sua própria vida e de seus entes queridos.

Vivemos sob uma constituição que se diz cidadã mas ao mesmo tempo sequer trouxe explicitamente, como garantia fundamental, o mais básico direito de autodefesa.

A legítima defesa está intimamente relacionada com o direito de portar armas. Mas é um erro entendê-los apenas como um meio de enfrentar criminosos comuns. A legítima defesa e o direito de portar armas se revelam verdadeiros direitos humanos de primeira geração pois são instrumentos hábeis a opor resistência ao estado e garantir a liberdade ao cidadão.

É com foco nessa crítica que desenvolveremos este trabalho, onde se procura iniciar um debate sobre a necessidade de reafirmar o direito de autopreservação como natural, básico, individual, fundamental e humano.

1 DAS GERAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS. DA PRIMEIRA GERAÇÃO. DIREITOS HUMANOS DE RESISTÊNCIA E OPOSIÇÃO AO ESTADO.

A conhecida classificação das gerações dos direitos humanos apresentada por Karel Vasak relaciona a natureza de determinados direitos com o lema da revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Seriam os direitos de primeira, segunda e terceira geração, respectivamente.  

De todas as gerações, a primeira tem sido a menos estudada e mais ignorada. Em que pese a festividade e entusiasmo com os direitos de segunda, terceira e, conforme outros autores, quarta e demais novíssimas gerações, todos esses direitos não se sustentam sem que os direitos de primeira geração – ou direitos naturais do homem – estejam bem consolidados.

É sobre os direitos de liberdade, que determinam ordens negativas ao Estado ou quem faças as vezes de[1], que devem ser erguidas as demais estruturas dos direitos humanos.

Desde o século passado vivenciamos experiências cada vez mais nefastas e totalitárias. A criatividade para criar e impor medidas de controle da sociedade e dos indivíduos tem se revelado muito fértil. A guerra contra o terror ou o enfrentamento da pandemia de Covid-19 são exemplos que demonstram que as soluções sugeridas para superar tais desafios passaram por limitar algum direito individual.

Em suma, as forças totalitárias têm se revelado criativas para redigir normas que, travestidas de direitos humanos, impõem cada vez mais restrições ao indivíduo e atribuem cada vez mais poder ao Estado.

É importante, contudo, analisarmos se tais normas, que procuram cercear, dentre outros, o direito de todo cidadão portar armas, resistem ao texto constitucional e aos tratados internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil.

2 CRÍTICA À CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. A CARTA “CIDADÔ QUE NÃO INCLUIU O DIREITO DE PORTAR ARMAS - SEQUER A LEGÍTIMA DEFESA - COMO UM DIREITO INDIVIDUAL OU DEVER SOCIAL. CONSTITUIÇÃO IMPERIAL DE 1824. CONTRAPONTO E REFLEXÕES.

A tão festejada e aclamada Constituição Federal de 1988 traz um longo e extenso rol de direitos e deveres individuais e coletivos, acrescidos de direitos sociais, todos fundamentados em quatro artigos onde estão registrados os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil.

Entretanto, a carta “cidadã” padece de grave defeito. Em que pese um longo histórico de exemplos anteriores[2] ao processo de criação do seu texto[3] apontarem a necessidade de garantir o porte[4] de armas como direito civil, os então constituintes parecem não terem percebido que as meras referências a direito à vida ou direito  à segurança não seriam plenamente respeitados pelos governantes subsequentes.

Não é de surpreender. Mesmo nos Estados Unidos da América – onde sua constituição afirma textualmente que não devem ser infringidos os direitos de portar armas e de criar organizações civis de autodefesa, pressuposto de um Estado Livre – governantes de ocasião não escondem seus interesses autoritários e buscam, regularmente, pôr fim nessa garantia.

A verdade é que o direito de portar armas é o meio mais efetivo meio de igualar forças e constranger, não só criminosos comuns, mas aqueles que se utilizam do Estado para impor suas vontades mais macabras. A proteção da vida e da liberdade é o verdadeiro núcleo essencial do direito de portar armas. Todos os demais direitos não podem violar tal premissa e a ela devem ser acrescentados.

A omissão dessa garantia no texto constitucional de 1988 é uma falta grave e preocupante. Não há sequer menção ao direito natural à legítima defesa, deixando o legislador constitucional originário essa atribuição para o legislador derivado ou ordinário. É possível afirmar que o legislador constitucional originário não tinha confiança no povo brasileiro com acesso às armas.

Nem sempre foi assim na história do Brasil. Durante o Império a relação Estado x Povo assumia outra característica O artigo 145 da Constituição Imperial atribuía o dever aos brasileiros de pegar em armas, para sustentar a independência, integridade do Império e o defender dos inimigos externos ou internos[5]. Tal norma jamais foi repetida nas constituições republicanas.

Registrada essa grave falha, é necessário avaliar se o direito de portar armas é um direito humano fundamental e, assim, encontra guarida como regra implícita na Constituição Federal de 1988.

3 DO DIREITO À POSSE DE ARMAS. DA NATUREZA DE DIREITO HUMANO DE PRIMEIRA GERAÇÃO. RESISTÊNCIA À TIRANIA.

Os direitos humanos de primeira geração são aqueles que visam proteger a integridade do indivíduo contra intervenções abusivas do Estado. Nesse sentido, confira-se o seguinte excerto de Paulo Bonavides:

“Os direitos da primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”[6].

Nenhum direito humano concentra mais resistência ou oposição ao Estado que o direito de portar armas. Sem ele cabe exclusivamente ao Estado decidir se o cidadão terá os demais direitos humanos, fundamentais ou civis.

É importante lembrar que a tirania não recai somente no Poder Executivo de um país. O legislativo rotineiramente cede à tentação totalitária. Muito mais grave, contudo, é o Poder Judiciário com vocação tirânica.

Vejamos o caso da Venezuela Bolivariana. O Tribunal Supremo de Justicia da Venezuela, em março de 2017, cassou alguns poderes do Legislativo venezuelano e os tomou para si. É público e notório que a composição do parlamento venezuelano daquele momento era de oposição, enquanto que a suprema corte local era alinhada com o regime[7]. A conduta tirânica do TSJ potencializa e permite que o poder do ditador momentâneo seja praticamente ilimitado, impondo gravíssimas consequências ao povo que, por sua vez, não tem a quem recorrer.

Ressalte-se que, além do histórico controle de armas da Venezuela, o regime de Hugo Chávez, por meio de lei assinada por Diosdado Cabello, implantou a total proibição de venda de armas e munições. Ou seja, o ideal tirânico de impedir armas nas mãos do povo estava completo.

Registre-se: tal ato tirânico se deu com fundamento no combate à insegurança e contou com entusiasmada participação da Viva Rio[8].

O desarmamento da população e a subsequente escalada da tirania não é novidade na história da humanidade. Talvez o exemplo mais cruel tenha sido na Alemanha.

Utilizando-se dos cadastros criados pela República de Weimar, o regime nazista – antes mesmo de consolidar a sua trágica força tirânica – conseguiu perseguir e confiscar as armas de todos os inimigos do Reich, especialmente dos judeus. Anos depois seriam revelados ao mundo os chocantes campos de concentração. Todos esses fatos são bem retratados por Stephen Halbrook em sua obra “Hitler e o desarmamento”.

O destino dos venezuelanos e alemães vítimas das tiranias teria sido diferente se estivessem armados? Não sabemos e é impossível sabermos. Entretanto o desarmamento consolidou a submissão da população.

A restrição ao direito humano de acesso às armas também provoca gravíssimos danos em regimes de aparência democrática. O Brasil demonstra possuir uma certa normalidade política e institucional desde sua última constituição. Entretanto, vem escalonando o controle e restrição às armas de fogo. A consequência imediata é que a população desarmada fica à mercê de criminosos comuns que agem com cada vez mais ousadia, estimulados por um estado de coisas que parece celebrar a bandidolatria e estimular o democídio[9].

Seja qual for a finalidade, o direito de possuir armas é direito humano de primeira geração. Sem ele, não é possível resistir a tirania ou garantir a segurança pessoal.

Nessa qualidade, vê-se que se trata de direito e garantia fundamental com assento implícito na Constituição Federal de 1988.

É importante alertar: todos os demais direitos e garantias fundamentais nela escritos correm o risco de se tornarem letra morta se o povo, de quem todo poder emana[10], não tiver as ferramentas aptas para fazer valer sua força normativa.

Afinal, seguindo a lógica da teoria dos poderes implícitos, a Constituição Federal não atribui direitos ou garantias sem os instrumentos necessários para alcançar seu objetivo. Essa, inclusive, é a lição do professor Celso Antônio Bandeira de Mello[11]:

“Em face da Lei Magna do País, o cidadão jamais poderá ser proibido de tentar defender sua vida, seu patrimônio, sua honra, sua dignidade ou a incolumidade física de sua mulher e filhos a fim de impedir que sejam atemorizados, agredidos, eventualmente vilipendiados e assassinados, desde que se valha de meios proporcionais aos utilizados por quem busque submetê-los a estes sofrimentos, humilhações ou eliminação de suas existências

A Constituição Brasileira não autoriza a que seja legalmente qualificado como criminoso, e muito menos como sujeito eventual à pena de reclusão, o cidadão que tente defender a própria vida, o patrimônio, a honra, a dignidade ou a incolumidade física de sua mulher e filhos usando de meios proporcionais aos utilizados por quem busque inflingir-lhes estes sofrimentos, humilhações ou eliminação de suas existências ou então que simplesmente se aprovisione de tais meios, na esperança de impedir que ele ou seus familiares sejam atemorizados, agredidos, e eventualmente vilipendiado.

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Logo, é grosseiramente inconstitucional a lei que para eles concorra ou que abique direta ou indiretamente em tais resultados. ”

Para aqueles que, porventura, entendam que o direito de porte de armas não seja um direito constitucional implícito, é importante relembrar que o Brasil é signatário de tratados internacionais de direitos humanos que trazem, textualmente, a garantia à segurança pessoal.

A internalização desses tratados no ordenamento pátrio e a sua força normativa serão objeto do tópico a seguir.

4 DO PANORAMA DA INTERNALIZAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

O parágrafo 2° do artigo 5° da Constituição Federal afirma que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

A Emenda Constitucional n° 45/2004 acrescentou o parágrafo 3° ao referido artigo e determinou que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Antes da adição desse dispositivo constitucional, havia a discussão sobre qual a natureza jurídica das normas constantes nos tratados internacionais de direitos humanos em que a República Federativa do Brasil fosse parte. Quatro vertentes apontam que essas normas poderiam, respectivamente, ter natureza: a) supraconstitucional; b) constitucional; c) de lei ordinária; e d) supralegal[12]. Obviamente, por força do legislador constituinte derivado, os atos normativos dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos aprovados nos moldes similares a de uma Emenda à Constituição, passam a gozar desse status.

O problema persistiu, no entanto, para os casos dos tratados internacionais de direitos humanos internalizados sem alcançarem o referido quórum qualificado.

O Supremo Tribunal Federal, seguindo o voto proferido pelo ministro Gilmar Ferreira Mendes no julgamento do RE 466.343 e do RE 349.703, passou a entender que as normas dos tratados internacionais de direitos humanos que sejam internalizadas por quórum distinto do parágrafo 3° do artigo 5° da Constituição Federal, acrescido pela Emenda Constitucional n° 45/2004, possuem natureza jurídica de norma supralegal. Confira-se a ementa de alguns julgados nesse sentido:

EMENTA: PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.

(RE 466343, Relator(a):  Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-06 PP-01106 RTJ VOL-00210-02 PP-00745 RDECTRAB v. 17, n. 186, 2010, p. 29-165)

PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5O DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002). ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. DECRETO-LEI N° 911/69. EQUIPAÇÃO DO DEVEDOR-FIDUCIANTE AO DEPOSITÁRIO. PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR-FIDUCIANTE EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. A prisão civil do devedor-fiduciante no âmbito do contrato de alienação fiduciária em garantia viola o princípio da proporcionalidade, visto que: a) o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito, de forma que a prisão civil, como medida extrema de coerção do devedor inadimplente, não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso, em sua tríplice configuração: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito; e b) o Decreto-Lei n° 911/69, ao instituir uma ficção jurídica, equiparando o devedor-fiduciante ao depositário, para todos os efeitos previstos nas leis civis e penais, criou uma figura atípica de depósito, transbordando os limites do conteúdo semântico da expressão "depositário infiel" insculpida no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição e, dessa forma, desfigurando o instituto do depósito em sua conformação constitucional, o que perfaz a violação ao princípio da reserva legal proporcional. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.

(RE 349703, Relator(a):  Min. CARLOS BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-04 PP-00675)

Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROVIMENTO CONJUNTO 03/2015 DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA. 1. A Convenção Americana sobre Direitos do Homem, que dispõe, em seu artigo 7º, item 5, que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”, posto ostentar o status jurídico supralegal que os tratados internacionais sobre direitos humanos têm no ordenamento jurídico brasileiro, legitima a denominada “audiência de custódia”, cuja denominação sugere-se “audiência de apresentação”. 2. O direito convencional de apresentação do preso ao Juiz, consectariamente, deflagra o procedimento legal de habeas corpus, no qual o Juiz apreciará a legalidade da prisão, à vista do preso que lhe é apresentado, procedimento esse instituído pelo Código de Processo Penal, nos seus artigos 647 e seguintes. 3. O habeas corpus ad subjiciendum, em sua origem remota, consistia na determinação do juiz de apresentação do preso para aferição da legalidade da sua prisão, o que ainda se faz presente na legislação processual penal (artigo 656 do CPP). 4. O ato normativo sob o crivo da fiscalização abstrata de constitucionalidade contempla, em seus artigos 1º, 3º, 5º, 6º e 7º normas estritamente regulamentadoras do procedimento legal de habeas corpus instaurado perante o Juiz de primeira instância, em nada exorbitando ou contrariando a lei processual vigente, restando, assim, inexistência de conflito com a lei, o que torna inadmissível o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade para a sua impugnação, porquanto o status do CPP não gera violação constitucional, posto legislação infraconstitucional. 5. As disposições administrativas do ato impugnado (artigos 2º, 4° 8°, 9º, 10 e 11), sobre a organização do funcionamento das unidades jurisdicionais do Tribunal de Justiça, situam-se dentro dos limites da sua autogestão (artigo 96, inciso I, alínea a, da CRFB). Fundada diretamente na Constituição Federal, admitindo ad argumentandum impugnação pela via da ação direta de inconstitucionalidade, mercê de materialmente inviável a demanda. 6. In casu, a parte do ato impugnado que versa sobre as rotinas cartorárias e providências administrativas ligadas à audiência de custódia em nada ofende a reserva de lei ou norma constitucional. 7. Os artigos 5º, inciso II, e 22, inciso I, da Constituição Federal não foram violados, na medida em que há legislação federal em sentido estrito legitimando a audiência de apresentação. 8. A Convenção Americana sobre Direitos do Homem e o Código de Processo Penal, posto ostentarem eficácia geral e erga omnes, atingem a esfera de atuação dos Delegados de Polícia, conjurando a alegação de violação da cláusula pétrea de separação de poderes. 9. A Associação Nacional dos Delegados de Polícia – ADEPOL, entidade de classe de âmbito nacional, que congrega a totalidade da categoria dos Delegados de Polícia (civis e federais), tem legitimidade para propor ação direta de inconstitucionalidade (artigo 103, inciso IX, da CRFB). Precedentes. 10. A pertinência temática entre os objetivos da associação autora e o objeto da ação direta de inconstitucionalidade é inequívoca, uma vez que a realização das audiências de custódia repercute na atividade dos Delegados de Polícia, encarregados da apresentação do preso em Juízo. 11. Ação direta de inconstitucionalidade PARCIALMENTE CONHECIDA e, nessa parte, JULGADA IMPROCEDENTE, indicando a adoção da referida prática da audiência de apresentação por todos os tribunais do país.

(ADI 5240, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 20/08/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016)

Fixados os critérios para a definição da natureza jurídica das normas de tratados internacionais sobre direitos humanos, passa-se à análise de atos internacionais que garantem o direito humano à segurança pessoal.

Antes, contudo, vale dizer que o direito à segurança pessoal é previsto, pelo menos, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, Convenção Americana de Direitos Humanos: Pacto de São José da Costa Rica e Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher: Convenção de Belém do Pará.

Desses textos, destacamos o Pacto Internacional sobre Direito Civis, internalizado pelo Decreto n° 592, de 6 de julho de 1992, e a Convenção Americana de Direitos Humanos: Pacto de São José da Costa Rica, internalizado pelo Decreto n° 678, de 6 de novembro de 1992.

Sobre essas normas internacionais, que afirmam textualmente que toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais, o Supremo Tribunal Federal já afirmou que se encontram em posição hierárquica inferior à Constituição Federal, mas superior à legislação ordinária. Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes na conclusão de seu voto no RE 349703:

“Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002).

Assim como não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois há conflito com os referidos diplomas internacionais, é obrigatório entender que não há mais base legal para normas que entre em conflito com o direito à segurança pessoal, previsto nos tratados internacionais.

O direito à segurança pessoal difere da segurança pública de sorte. Ambas devem se utilizar dos meios necessários, especialmente armas de fogo, e dizem respeito a aspectos distintos da vida em sociedade. Não há – e nunca se esperou que se tenha – um policial para fazer a segurança pessoal de cada cidadão. À segurança pública compete o policiamento ostensivo e judiciário, enquanto a segurança pessoal diz respeito à proteção do indivíduo onde quer que ele se encontre.

Sem o direito à posse e ao porte de armas, o direito à segurança pessoal se torna letra morta. É fundamental que o cidadão possua paridade de armas com os seus possíveis agressores, inclusive aqueles que pretendem decair para a tirania.

Consolidada a natureza jurídica supralegal do direito à segurança pessoal prevista no Pacto Internacional sobre Direito Civis e no Pacto de São José da Costa Rica, passa-se à análise legislação ordinária.

5 DA LEI N° 10.826/2003. DA SUA INCONSTITUCIONALIDADE. DO DIREITO FUNDAMENTAL IMPLÍCITO DE PORTAR ARMAS. DO CONFLITO COM O PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E O PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA. DO DIREITO À SEGURANÇA PESSOAL.

O direito de portar armas está implícito na Constituição Federal como direito fundamental. Toda e qualquer norma com hierarquia inferior que conflite com essa regra é, portanto, inconstitucional.

Há mais. Além de violar o texto constitucional, qualquer ato normativo que conflite com o direito à segurança pessoal deve ser extirpado do ordenamento jurídico pátrio.

Diante da afirmação do Supremo Tribunal Federal de que o Pacto Internacional sobre Direito Civis e o Pacto de São José da Costa Rica possuem status normativo supralegal é imperativo analisar a legislação ordinária que conflite com o direito à segurança pessoal, previsto nos referidos tratados internacionais.

A atual legislação sobre armas é a Lei 10.826/2003. Essa norma passou a proibir o porte de armas ao cidadão, permitindo raríssimas exceções e condicionado à demonstração ou comprovação de efetiva necessidade.

Sobre a inadequação da proibição do porte como regra, não é necessário tecer muitos comentários. Segundo o Pacto Internacional sobre Direito Civis e o Pacto de São José da Costa Rica a regra é a segurança pessoal. Para tanto, os meios necessários para fazer valer tal direito não podem ser proibidos.

No que diz respeito à condição de comprovação de efetiva necessidade, trata-se de mais uma norma de cunho tirânico que tem por objetivo impedir que o cidadão tenha direito à segurança pessoal.

A norma supralegal descrita nos referidos tratados internacionais afirma que toda pessoa tem direito à segurança pessoal. Não há nenhum condicionante relacionado com efetiva necessidade. Essa análise – efetiva necessidade – compete ao indivíduo e não ao Estado decidir. E não poderia ser diferente, como já exposto neste trabalho, os direitos humanos de primeira geração são aqueles oponíveis ao Estado e não concedidos por ele.

Tanto a proibição pura e simples do porte de armas quanto a possibilidade de sua concessão, mas desde que demonstrada ou comprovada a efetiva necessidade, violam frontalmente a norma supralegal do direito à segurança.

Nesse quadro, toda a Lei 10826/2003, além de ser inconstitucional, está em conflito com Pacto Internacional sobre Direito Civis e o Pacto de São José da Costa Rica, especialmente os artigos 4°, 6° e o inciso I do parágrafo 1° do artigo 10, todos dessa norma[13].

Conclusão

Ao longo deste trabalho, verificamos que os direitos humanos de primeira geração parecem ter sido deixados para um segundo plano. Tal conduta revela uma falta de apreço com a liberdade. Os direitos humanos de primeira geração são aqueles relacionados com a liberdade e necessários para opor resistência ao Estado.

Sob esse prisma, apontamos que a Constituição Federal de 1988 possui grave mácula ao ser omissa quanto ao direito fundamental de portar armas. Essa carta constitucional, em que pese possuir extenso rol de direitos e garantias fundamentais, nada trata do tema e sequer prevê a garantia de legítima defesa.

O direito de portar armas é direito humano de primeira geração pois consolida em seu núcleo essencial a resistência à tirania e a garantia de segurança pessoal. Nessa qualidade, revela-se direito fundamental implícito na Constituição Federal de 1988.

Além disso, o direito à segurança pessoal, e por consequência os meios necessários à sua efetivação, é norma supralegal pois está previsto no Pacto Internacional sobre Direito Civis e no Pacto de São José da Costa Rica.

Diante de todo exposto, concluímos que qualquer legislação ordinária e de hierarquia inferior que conflite com o direito do cidadão de portar armas é inconstitucional, por violar esse direito constitucional implícito, e viola o direito humano à segurança pessoal previsto no Pacto Internacional sobre Direito Civis e no Pacto de São José da Costa Rica.

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REBELO, Fabricio. Articulando em segurança: Contrapontos ao desarmamento civil. 3ª edição. São José dos Campos: Burke Editorial, 2019.

 


[1] Vivemos em uma realidade onde empresas privadas possuem informações detalhadas sobre indivíduos. É público e notório que, por exemplo, as mídias sociais coletam informações sobre seus usuários.

[2] A revolução americana; a Guerra Cristera; a luta de homens livres, ex-escravos, contra aberrações como a Ku Klux Klan; o Levante do Gueto de Varsóvia; a Revolução Constitucionalista de 1932; etc.

[3] A Assembleia Nacional Constituinte da atual Constituição Federal ocorreu entre 1987 e 1988.

[4] O porte de armas, para fim deste trabalho, pressupõe a posse de armas e sua utilização para defesa em sua máxima extensão.

[5] Art. 145. Todos os Brazileiros são obrigados a pegar em armas, para sustentar a Independencia, e integridade do Imperio, e defendel-o dos seus inimigos externos, ou internos.

[6]BONAVIDES (2010; 563).

[7] COUTINHO (2018, 161).

[8] Disponível em: http://vivario.org.br/viva-rio-participa-de-desarmamento-na-venezuela/. Consulta realizada em 29 de abril de 2020, às 16h20.

[9] Essa referência é proposital e é uma singela homenagem a Diego Pessi e a Leonardo Giardin de Souza, autores do célebre livro “Bandidolatria e Democídio: ensaios sobre garantismo penal e a criminalidade no Brasil”.

[10] Sobre isso é importante relembrar que o povo brasileiro já deixou clara sua opção pelo armamento civil tanto em 2005, com o referendo, quanto em 2018, com a eleição de Jair Messias Bolsonaro – cuja plataforma eleitoral estava centrada no direito civil de porte de armas.

[11] MELLO (2015).

[12] Nesse sentido, recomenda-se a leitura do item “9.4.4. Prisão civil do depositário infiel em face dos tratados internacionais de direitos humanos” do livro Curso de direito constitucional de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, publicado pela editora Saraiva. Páginas 653 a 671 da primeira edição, ano 2007.

[13] Art. 4o Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes requisitos: (...)

Art. 6o É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para: (...)

Art. 10. A autorização para o porte de arma de fogo de uso permitido, em todo o território nacional, é de competência da Polícia Federal e somente será concedida após autorização do Sinarm.

§ 1o A autorização prevista neste artigo poderá ser concedida com eficácia temporária e territorial limitada, nos termos de atos regulamentares, e dependerá de o requerente:

I – demonstrar a sua efetiva necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física;

Sobre o autor
Rafael Vasconcelos Fontes

Procurador Federal

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