FAMÍLIA MULTIESPÉCIE NO DIREITO DE FAMÍLIA

25/05/2020 às 15:34
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Conceito de família. Espécies de família. Família multiespécie: conceito e amparo jurídico.

FAMÍLIA MULTIESPÉCIE NO DIREITO DE FAMÍLIA 

Keny de Melo Souza 

Graduanda no curso de Direito pelo Centro de Ensino Superior de São Gotardo 

1 CONCEITO DE FAMÍLIA 

1.1 O que vem a ser família? 

Cada um tem seu conceito e construção mental e moral de família, mas será que existe um padrão correto para o que seja a entidade familiar? A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226 , especificamente nos parágrafos 3° e 4°, assevera que, 

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. 

[….] 

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. 

§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. 

A Carta Magna, como apresentado acima, pontua que a família por se tratar de uma base da sociedade, deve ter especial proteção do Estado, consolidando a constituição familiar; como também, através da união estável. 

O Código Civil brasileiro não apresenta expressamente o conceito de família, mas traz em seu artigo 1.511 como se dá a constituição da entidade familiar ao contrair matrimônio, versando que “o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direito e deveres dos cônjuges ”; bem como reza o artigo 1.723, deste mesmo código, “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família ”. Ambos preceituam que a família surge com a vontade de dois indivíduos de constituírem família. 

Destarte, diante da presente panorâmica social, o Dicionário Houaiss traz um novo conceito de família como sendo o "núcleo social de pessoas unidas por laços afetivos, que geralmente compartilham o mesmo espaço e mantêm entre si uma relação solidária ". 

Para tanto, percebe-se que a entidade familiar, ou seja, a família, possui um caráter tradicionalista; porém, nos últimos anos vêm ganhando novos conceito e formato, transcendendo a mera composição conceitual ou moral, adequando-se ao cenário estrutural moderno. 

2 ESPÉCIES DE FAMÍLIA 

Dentro do contexto de que família é um núcleo social de pessoas unidas por laços afetivos, variando de acordo com sua composição e organização, tendo em comum o zelo e bem-estar daqueles que a compõe; espera-se que o Estado preste total e isonômico cuidado a qualquer espécie familiar. 

Claro que, como o indivíduo vive em uma época dinâmica e em constante mutação, há de constar as principais espécies que estruturam estes núcleos. São elas: família tradicional ou nuclear; família matrimonial; família informal; família monoparental; família anaparental; família reconstituída; família unipessoal; família eudemonista. 

Segue um quadro explicativo destes principais tipos, apresentado pelo professor Pedro Menezes

Tipos de família

Características

Membros

Exemplos

Tradicional nuclear

Tipo mais comum de família formado pelos pais e seus filhos.

  • Pai(s)
  • Mãe(s)
  • Filho(s)

Formação básica da família composta por pai, mãe e filhos.

Matrimonial

A família matrimonial é legitimada pelo casamento civil.

  • Pai(s)
  • Mãe(s)
  • Filho(s)

Famílias em que os responsáveis são casados legalmente (casamento civil).

Informal

A legitimidade se dá pela convivência, sem o que a união do casal tenha sido oficializada.

  • Pai(s)
  • Mãe(s)
  • Filho(s)

Famílias em que os pais possuem uma união estável, não oficializada.

Monoparental

Composta por apenas um dos responsáveis, pai ou mãe.

  • Mãe ou pai
  • Filhos

Famílias em que a responsabilidade com os filhos é de apenas um dos pais.

Anaparental

Composta sem a presença de nenhum dos pais.

  • Filhos

Famílias sem a presença dos pais, como no caso de irmãos em que os mais velhos cuidam dos mais novos.

Reconstituída

Composta pela união de um casal com filho(s) de uma união anterior.

  • Mãe ou pai
  • Madrasta ou padrasto
  • Filhos

Famílias onde pelo menos um dos cônjuges possui filho(s) de uma união anterior.

Unipessoal

Composta por apenas uma pessoa.

  • Uma única pessoa

É o caso de pessoas viúvas ou solteiras que vivem sozinhas em uma casa.

Eudemonista

União afetiva entre pessoas tendo como princípio a busca pela felicidade.

  • Múltiplas pessoas

Famílias poliamorosas, onde adultos compartilham o afeto e o cuidado das crianças entre si.

 Fonte: https://www.diferenca.com/tipos-de-familia/ 

Este quadro confirma que família, independente da sua forma de constituição, possui amparo legal, protegida pelo Estado, com o vínculo seja pautado no respeito e afeto entre seus membros. 

No entanto, este quadro não apresenta uma constituição familiar peculiar, conhecida como família multiespécie, tema deste presente artigo. Este tipo de família vem traçando novos entendimentos jurídicos conforme os casos concretos que chegam ao Poder Judiciário, levando o animal doméstico de semovente para ser senciente, figurando em decisões importantes como na guarda compartilhada em ações de divórcio no Brasil. 

3 FAMÍLIA MULTIESPÉCIE NO DIREITO BRASILEIRO 

3.1 Conceito 

De forma bem simples, família multiespécie é aquela constituída pelo vínculo afetivo entre seres humanos e seus animais de estimação. 

Partindo deste pressuposto, os animais de estimações não podem ser tratados meramente como objetos de direito (bens móveis), ou melhor, semoventes como preconiza o direito brasileiro, no artigo 82, do Código Civil; estes, atualmente, são considerados seres sencientes, pois são passíveis de sentimento. Para o advogado Rodrigo da Cunha Pereira , especialista em Direito de Família e Sucessões, 

Os animais de estimação devem ser considerados mais que “semoventes” como tratados pela doutrina tradicional. Por isso têm sido denominados de seres sencientes que são aqueles que têm sensações, isto é, que são capazes de sentir dor, angústias, sofrimento, solidão, raiva etc. A ideia de um animal como uma cadeira, como móveis, como um automóvel em uma disputa judicial, a tradicional percepção legal de animais de companhia como mera res não coincide mais com o sentimento social pós-moderno. 

Percebe-se que o interesse de constituir família não traz unicamente o desejo do casal em ter filhos; muitas das vezes, independente das circunstâncias e de suas escolhas, adotam ou “adquirem” um animalzinho de estimação para complementar o ambiente familiar. Neste diapasão, o tratamento dispensado aos animais vem traçando um novo caminho no sistema jurídico, presente não apenas pela convivência digna e bem-estar deste ser senciente; mas o estreitamento do vínculo afetivo entre o ser humano e seu animal. 

3.2 Amparo jurídico 

Difícil estabelecer uma diferenciação do status jurídico do animal. Para o direito das coisas está no rol de objeto de direito, considerado semovente; como animal de companhia, acaba sendo inferiorizado em relação ao ser humano, muita das vezes menospreza por sua condição animal. 

Este, como ser senciente, necessita do reconhecimento de seu status como pessoa para determinados fins; como vem acontecendo comumente em sede de divórcio e guarda do animal de estimação. Por isso é importante que o ordenamento jurídico acompanhe a evolução constante da sociedade. 

Uma família multiespécie ao romper os laços do matrimônio ou união estável, veem-se diante da demanda de quem ficará com o animal de estimação; uma vez que este ocupa um espaço para além do convencional, envolvendo carinho, dedicação, afeto e cuidados; o mesmo dispensado a um filho. 

Neste ponto, nas Varas de Família, o magistrado em uma ação de divórcio que envolve menores, na decisão para quem dar a guarda, deve prezar pelo melhor interesse da criança e do adolescente; da mesma forma, deve resguardar o melhor interesse do animal, atrelado ao interesse do reclamante. 

Destarte, nestes casos aplica-se a legislação de família relativa à guarda, como versa o artigo 1.583, § 1°, do Código Civil, vez que ainda não há lei específica. 

Art.1.583 - A guarda será unilateral ou compartilhada. 

§ 1o - Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5o) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. 

É imperioso ressaltar a dificuldade de comprovar quem é o verdadeiro responsável pelos cuidados e zelo do animal de estimação, principalmente se tiver sido adotado, neste caso, não há nenhum dado ou registro de quem é o adotante; mesmo que tenha sido adquirido em algum pet shop, o recibo de compra e venda, não dá ao comprador o pleno direito de ser o legítimo responsável por seu pet. 

Marianna Chaves comenta que, 

Certamente não se está a defender a relação entre humanos e animais como uma espécie de parentesco e nem que o dever de cuidado se origine em uma espécie de poder familiar advindo de uma relação de filiação. Mas ao adquirir ou “adotar” um animal de companhia, há de se ter em mente – tal como um filho – de que se trata de um ser vivo que não poderá ser descartado. E ao contrário das crianças, os animais de companhia jamais alcançarão autonomia, sendo dependentes dos humanos com quem conviverem, do instante do nascimento até o momento da sua morte. É uma relação pautada pelo afeto que ambos os seres experimentarão, mas também vinculada a uma conduta responsável por parte dos humanos, que se exprimirá através de um dever de cuidado. 

Este é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, em análise à ação de Recurso Especial, 

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. ANIMAL DE ESTIMAÇÃO. AQUISIÇÃO NA CONSTÂNCIA DO RELACIONAMENTO. INTENSO AFETO DOS COMPANHEIROS PELO ANIMAL. DIREITO DE VISITAS. POSSIBILIDADE, A DEPENDER DO CASO CONCRETO. 

1- Inicialmente, deve ser afastada qualquer alegação de que a discussão envolvendo a entidade familiar e o seu animal de estimação é menor, ou se trata de mera futilidade a ocupar o tempo desta Corte. Ao contrário, é cada vez mais recorrente no mundo da pós-modernidade e envolve questão bastante delicada, examinada tanto pelo ângulo da afetividade em relação ao animal, como também pela necessidade de sua preservação como mandamento constitucional (art. 225, § 1, inciso VII - "proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”). 2 - O Código Civil, ao definir a natureza jurídica dos animais, tipificou-os como coisas e, por conseguinte, objetos de propriedade, não lhes atribuindo a qualidade de pessoas, não sendo dotados de personalidade jurídica nem podendo ser considerados sujeitos de direitos. Na forma da lei civil, o só fato de o animal ser tido como de estimação, recebendo o afeto da entidade familiar, não pode vir a alterar sua substância, a ponto de converter a sua natureza jurídica. 3 - No entanto, os animais de companhia possuem valor subjetivo único e peculiar, aflorando sentimentos bastante íntimos em seus donos, totalmente diversos de qualquer outro tipo de propriedade privada. Destarte, o regramento jurídico dos bens não se vem mostrando suficiente para resolver, de forma satisfatória, a disputa familiar envolvendo os pets, visto que não se trata de simples discussão atinente à posse e à propriedade. 4 - Por sua vez, a guarda propriamente dita - inerente ao poder familiar - instituto, por essência, de direito de família, não pode ser simples e fielmente subvertida para definir o direito dos consortes, por meio do enquadramento de seus animais de estimação, notadamente porque é um munus exercido no interesse tanto dos pais quanto do filho. Não se trata de uma faculdade, e sim de um direito, em que se impõe aos pais a observância dos deveres inerentes ao poder familiar. 5 - A ordem jurídica não pode, simplesmente, desprezar o relevo da relação do homem com seu animal de estimação, sobretudo nos tempos atuais. Deve-se ter como norte o fato, cultural e da pós-modernidade, de que há uma disputa dentro da entidade familiar em que prepondera o afeto de ambos os cônjuges pelo animal. Portanto, a solução deve perpassar pela preservação e garantia dos direitos à pessoa humana, mais precisamente, o âmago de sua dignidade. 6 - Os animais de companhia são seres que, inevitavelmente, possuem natureza especial e, como ser senciente - dotados de sensibilidade, sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos animais racionais -, também devem ter o seu bem-estar considerado. 7 - Assim, na dissolução da entidade familiar em que haja algum conflito em relação ao animal de estimação, independentemente da qualificação jurídica a ser adotada, a resolução deverá buscar atender, sempre a depender do caso em concreto, aos fins sociais, atentando para a própria evolução da sociedade, com a proteção do ser humano e do seu vínculo afetivo com o animal. 8 - Na hipótese, o Tribunal de origem reconheceu que a cadela fora adquirida na constância da união estável e que estaria demonstrada a relação de afeto entre o recorrente e o animal de estimação, reconhecendo o seu direito de visitas ao animal, o que deve ser mantido. 9 - Recurso especial não provido. (STJ - REsp 1713167 SP 2017/0239804-9 – Relator Ministro LUIZ FELIPE SALOMÃO, Data do Julgamento: 19/06/2018, T4 – Quarta Turma, Data de Publicação: DJe 09/10/2018) 

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Numa sociedade dinâmica, é inquestionável a necessidade do reconhecimento da família multiespécie, visto que o animal cada vez mais está presente no seio familiar e com um papel relevante, considerado como um membro da família e tratado tal qual um filho, tanto em lares solteiros quanto nos com ou sem filhos, necessita ser resguardado em contendas familiares pelo Direito de Família ou que se assevere a elaboração de legislação específica, priorizando o melhor interesse deste que será desde seu nascimento até sua morte, dependente dos indivíduos que os têm por companhia. 

Por fim, é importante destacar que em 07 de agosto de 2019, o Plenário do Senado aprovou o projeto de lei (PLC n.º 27/2018) que cria o regime jurídico especial para os animais; pelo texto, os animais não poderão mais ser considerados objetos. O referido projeto estabelece que os animais passam a ter natureza jurídica sui generis, como sujeitos de direitos despersonificados, eles serão reconhecidos como seres sencientes, ou seja, dotados de natureza biológica e emocional e passíveis de sofrimento . Assim confirmando os apontados apresentados anteriormente. 

Em suma, é perceptível o quanto o Direito de Família molda-se constantemente ao cenário em que se encontra, dinamizando a prática jurídica e aproximando-se paulatinamente da realidade e necessidade do indivíduo, apresentando diferentes tipos de tutela que se amoldem, também, à família multiespécie. 

REFERÊNCIAS 

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Senado Federal. 

Brasília-DF. 2016. Brasil. 

CHAVES, Marianna. Disputa de guarda de animais de companhia em sede de divórcio e dissolução de união estável: reconhecimento da família multiespécie? 34 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito Civil, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2017. Disponível em: https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/4066/2788. Acesso em: 23 abr. 2020.

Código Civil. Vade Mecum. 29ª ed. Editora Rideel. 2° semestre. 2019. 

 IBDFAM. Dicionário reformula conceito de família. 2016. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/noticias/5990/Dicion%C3%A1rio+reformula+conceito+de+fam%C3%ADlia. Acesso em: 26 abr. 2020. 

MENEZES, Pedro. Tipos de família. 2018. DIFERENÇA: descubra as diferenças e semelhanças. Disponível em: https://www.diferenca.com/tipos-de-familia/. Acesso em: 26 abr. 2020. 

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família multiespécie: Diálogo no Direito de Família. 2018. Disponível em: http://www.rodrigodacunha.adv.br/familia-multiespecie-e-tema-programa-dialogos-direito-de-familia/. Acesso em: 23 abr. 2020. 

Senado aprova projeto que cria natureza jurídica para os animais. Fonte: Agência Senado. 2019. Senado Federal. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/08/07/senado-aprova-projeto-que-inclui-direitos-dos-animais-na-legislacao-nacional. Acesso em: 26 abr. 2020.

Sobre a autora
Keny De Melo Souza

Graduanda do Curso de Direito - CESG

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Atividade complementar como requisito na disciplina de Direito Civil.

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