LEI PENAL NO TEMPO

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25/05/2020 às 15:45
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O artigo analisa, de forma objetiva, as questões da anterioridade e irretroatividade da lei penal, retroatividade benéfica, lei excepcional ou temporária e tempo do crime.

LEI PENAL NO TEMPO

 

 

1 Anterioridade e Irretroatividade

 

A anterioridade e irretroatividade da lei penal possuem, em nosso ordenamento jurídico, relevância constitucional, pois previstas pelo art. 5º, incisos XXXIX e XL, da Constituição Federal, os quais dispõem que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal, e que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

Destes dispositivos depreende-se que, para a criminalização e penalização de uma conduta, não basta a existência de uma lei, devendo esta ser existente, válida e eficaz em momento anterior ao comportamento[1].

Às leis penais, assim, concede-se apenas a possibilidade de incriminar e sancionar condutas posteriores.

Esta interpretação, ainda que não fosse expressa a exigência de lei anterior pela Constituição Federal e Código Penal, seria consequência lógica do princípio da legalidade em sentido amplo, pois ninguém é obrigado a abster-se de uma ação, senão em virtude de lei, que, logicamente, deve existir ao menos no momento anterior à prática da conduta.

A garantia da anterioridade é complementada pela irretroatividade da lei penal mais gravosa, pois, como assevera Maurício Antonio Ribeiro Lopes: “O princípio da legalidade estaria sendo indubitavelmente violado com o reconhecimento de uma norma penal incriminadora, se esta viesse emprestar relevância penal a fatos com fundamento em norma que não existia no momento em que os fatos teriam sido perpetrados. Assim, na feliz expressão de Bettiol, entraria pela janela o que se pretendia despejar pela porta”.[2]

De nada valeriam, portanto, os princípios da legalidade e da anterioridade da lei penal, se por leis posteriores pudesse o Estado incriminar e sancionar mais severamente condutas já praticadas em momento pretérito. Perder-se-ia todo o substrato de garantia destes princípios, pois a segurança de estar praticando uma ação lícita, em determinado momento, poderia ser atingida pela elaboração de uma norma posterior, que passasse a considerar aquele comportamento criminoso e passível de punição.

Logo, a anterioridade e irretroatividade da lei penal mais gravosa constituem exigências do princípio da legalidade, sem as quais este perderia a sua principal função, qual seja, a de limitação ao poder de interferência do Estado nas vidas dos cidadãos.

 

 

2. Retroatividade Benéfica

 

2.1. Abolitio criminis

 

Por abolitio criminis entende-se a promulgação de lei que deixa de considerar como criminosa conduta antes valorada negativamente, tipificada legalmente pelo ordenamento jurídico-penal.

Cuida-se - como anotam Silva Franco e outros - [3], “de hipótese de supressão da figura criminosa, por ter o legislador considerado que a ação, antes prevista como delituosa, não é mais idônea a ferir um bem jurídico que pretende tutelar [ou que esta lesão não é grave o suficiente, diante do princípio da subsidiariedade, para a intervenção penal, havendo outros instrumentos para a sua prevenção]. Com a descriminalização [ou descriminação] do fato, não  teria  sentido    o prosseguimento da execução da pena, nem a mantença das seqüelas penais da sentença condenatória”.

abolitio criminis opera-se tanto com a revogação, pura e simples, expressa ou tácita, da lei penal, como com a introdução de novo elemento essencial ao tipo penal, pouco importando, na hipótese, se o elemento especial, irrelevante na tipificação anterior, encontrava-se presente no fato antigo.

Isto porque a introdução de elemento ex novo especial no tipo implica o rompimento da continuidade típico-normativa entre as leis penais, independentemente da presença do elemento especial no fato antigo, com a consequente despenalização da conduta pretérita.

Neste sentido posiciona-se Américo A. Taipa de Carvalho, para quem: “Com a entrada em vigor da lei nova, que adicionou um novo elemento ao tipo legal da lei antiga, o facto praticado na vigência da lei antiga – preencha, ou não, o elemento da lei nova – fica despenalizado, se o elemento adicionado constituir um elemento essencial”.[4]

Revogada a lei penal incriminadora, extingue-se a punibilidade do agente, nos termos do art. 107, inciso III, do Código Penal, operando-se, ainda, a extinção dos efeitos da sentença penal condenatória, previstos pelos artigos 91 e 92, ambos do Código Penal.

 

2..2. Lex Mitior

 

A proibição da irretroatividade da lei penal, decorrência do princípio da legalidade, não compreende a da lei penal mais favorável, que, ao contrário, constitui, por previsão constitucional, uma garantia individual.

Por “lei mais benigna” entende-se aquela que deixa de considerar a conduta como criminosa (abolitio criminis), passa a impor pena menos rigorosa ou de menor duração – qualitativa ou quantitativamente inferior -, considera novas circunstâncias atenuantes, cria condições de procedibilidade ou objetivas de punibilidade, ou amplia as possibilidades de alternativas penais - suspensão condicional da pena, livramento condicional, penas substitutivas. 

A lei posterior, em nosso entender, somente pode ter aplicabilidade ao fato após adquirir plena eficácia, isto é, com a sua entrada em vigor. Antes disso, exatamente pela ausência de eficácia da lei nova, há mera expectativa de aplicabilidade.

Nem se diga que este posicionamento implicaria iniquidade, tratamento desigual dos sujeitos à mesma situação jurídica, pois, com a entrada em vigor da lei mais benigna, a sua incidência será imediata, ainda que na fase de execução da pena.

Questão que se coloca no tocante ao princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica é se, diante do conflito de proposições de duas ou mais leis, contendo preceitos mais favoráveis ao acusado, pode o juiz simplesmente combiná-los.

Damásio Evangelista[5] e Frederico Marques[6] afirmam que sim, pois se o juiz pode aplicar o todo de uma ou de outra lei para favorecer o acusado, não há por que não possa escolher parte de uma ou de outra para o mesmo fim, aplicando o mandamento constitucional. Entendimento contrário, segundo estes autores, constituiria formalismo jurídico em contraposição à Constituição, o que é inadmissível. 

Em sentido próximo, embora apenas em hipóteses excepcionais, posiciona-se Basileu Garcia[7].

Entendemos, contudo, que não há como prevalecer o argumento acima exposto.

Isto porque se o juiz simplesmente, na aplicação da lei penal, combinar os preceitos benéficos de duas ou mais leis (revogadora e revogada), estará extrapolando a sua função jurisdicional e interpretativa para transformar-se em legislador, elaborador de uma nova norma (lex tertia). Esta atividade, entretanto, face ao princípio constitucional da divisão de poderes, pertence ao Poder Legislativo e não ao Judiciário.

Com esta orientação a 1ª Turma do STF indeferiu habeas corpus em que condenada por crime de tráfico de drogas praticado sob a vigência Lei 6.368/76 pretendia fosse aplicada à sua pena-base a causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º da Lei 11.343/2006 (“§ 4o  Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.”). Aduziu-se, de início, que a sentença condenatória considerara diversos fatores que afastariam a diminuição da pena, tais como maus antecedentes, quantidade de droga apreendida, entre outros. Destacou-se, ademais, que a nova lei majorou a pena mínima aplicada a tal crime de três para cinco anos, daí o advento da referida causa de diminuição. Por fim, considerou-se não ser lícito tomar preceitos isolados de uma e outra lei, pois cada uma delas deve ser analisada em sua totalidade, sob pena de aplicação de uma terceira lei, criada unicamente pelo intérprete. Declarou-se, ainda, o prejuízo do pedido de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.[8]

O plenário do Supremo Tribunal Federal, contudo, chamado a deliberar a respeito da matéria, em um primeiro momento não chegou a uma conclusão definitiva – o que demonstra o grau da controvérsia -, pois o julgamento do RE 596152/SP (Rel. orig. Min. Ricardo Lewandowski, Rel. p/ o acórdão Min. Ayres Britto, j. em 13.10.2011) resultou em empate.[9]

Em um segundo momento, entretanto, o STF, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 600817, que teve repercussão geral reconhecida, em 07.11.2013, acabou por pacificar a questão ao adotar a tese nesta obra sustentada e a impossibilidade da combinação de leis. Extrai-se do voto do Min. Relator Ricardo Lewandowiski que, embora a retroação da lei penal para favorecer o réu seja uma garantia constitucional, a Lei Magna não autoriza que partes de diversas leis sejam aplicadas separadamente em seu benefício. A aplicação da minorante prevista em uma lei, portanto, combinada com a pena prevista em outra, criaria uma terceira norma, fazendo com que o julgador atuasse como legislador positivo, o que configuraria uma afronta ao princípio constitucional da separação dos Poderes.

Some-se a isto que - como afirma Nelson Hungria - “não se pode tomar parte do todo, pois os dispositivos de uma lei se completam e se condicionam mutuamente, entrosando-se num sistema orgânico e irrepartível, e é, de todo, incurial que se destaque um deles como ser autônomo, truncando-se tal sistema”.[10] No mesmo sentido o pensamento de Pietro Nuvolone: “Para estabelecer qual a norma mais favorável é preciso fazer referência tanto ao preceito primário de conduta, quanto ao preceito secundário ou sancionador: em última análise, às conseqüências aflitivas que, com base nas duas normas em questão, possam advir ao particular pela aplicação de uma ou outra norma; deve-se, pois, fazer uma avaliação global e não fragmentária”.[11] Com efeito, extrair alguns dispositivos, de forma isolada, de um diploma legal, e outros dispositivos de outra lei implica alterar por completo o seu espírito normativo, criando um conteúdo diverso do previamente estabelecido pelo legislador.[12]

Assim, no conflito de leis, deverá o juiz optar pela que for mais benigna em seu conjunto, aplicando, se o caso, a retroatividade da lei mais benéfica ou a irretroatividade da mais gravosa.[13] Esta a orientação adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, sintetizada em sua súmula n. 501, em consonância com o entendimento do Supremo Tribunal Federal: “É cabível a aplicação retroativa da Lei 11.343/2006, desde que o resultado da incidência das suas disposições, na íntegra, seja mais favorável ao réu do que o advindo da aplicação da Lei n. 6.368/1976, sendo vedada a combinação de leis”.

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 3- LEI EXCEPCIONAL OU TEMPORÁRIA

 

Lei excepcional, nos termos do art. 3º, do Código Penal, é aquela determinada por circunstâncias especiais, isto é, calamidades públicas, guerras, revoluções, epidemias, e que tem o prazo de vigência fixado até a cessação destas condições excepcionais.

A lei temporária, por outro lado, tem o seu prazo de vigência (pré)fixado pelo próprio legislador, que, ao estabelecê-la, determina a data em que será cessada a sua eficácia. A razão desta temporariedade também deve ser a existência de determinadas circunstâncias excepcionais, não se admitindo, para tanto, o  mero arbítrio do legislador.

Ambas as espécies de leis têm como característica a ultra-atividade, ou seja, mesmo após a sua autorrevogação – determinada pelo término de seu prazo ou das circunstâncias que motivaram a sua promulgação -, continuam a ser aplicáveis aos fatos ocorridos durante a sua vigência.

A ultra-atividade destas espécies de leis,  ao contrário do que se possa supor a uma primeira análise, superficial, não contrasta e nem constitui exceção aos princípios constitucionais da legalidade e da retroatividade da lei penal mais benéfica. Tanto é assim que, decidindo o legislador pela abrrogação da lei penal, opera-se a abolitio criminis e a impunibilidade do fato.

A ultra-atividade tem as suas raízes nos princípios constitucionais da igualdade e da justiça, pois, se não tivessem esta característica as leis excepcionais ou temporárias, na feliz lição de Frederico Marques, “seriam inócuas para grande número de infratores, porquanto fácil lhes seria evitar as sanções ali cominadas”[14]

Com efeito, as circunstâncias excepcionais ou temporais que fundamentam a edição destas leis integram-se, em verdade, aos respectivos tipos penais, formando um todo indissociável, vigente para as condutas perpetradas durante o período de exceção.

A título de exemplo, basta observarmos os crimes militares em tempo de guerra (artigos 355 a 408 do Código Penal Militar), para cujas tipificações indispensável é a existência de estado de guerra contra nação estrangeira, declarado nos termos dos artigos 84, inciso XIX, e 137 e seguintes da Constituição Federal, que constitui elemento de todos os tipos de delitos desta espécie. Inexistindo este estado, não há se falar em crime de guerra; decretado e findo, entretanto, as ações típicas nele praticadas continuarão puníveis, pois dotadas de ultra-atividade.

Logo, as leis excepcionais ou temporárias, na realidade, criam tipos penais que são destinados à proteção de determinados bens jurídicos, que, por condutas antes consideradas irrelevantes (ou menos graves), são agora colocados em perigo, exatamente em virtude das circunstâncias de exceção. Ultrapassado o período excepcional e restabelecida a normalidade das relações sociais, as mesmas condutas deixam de ser potencialmente lesivas aos valores ético-jurídicos fundamentais, o que explica a cessação da incidência da norma proibitiva. 

 

 4 - TEMPO DO CRIME

 

4.1. Colocação Do Problema

 

O legislador da nova Parte Geral do Código Penal, ao contrário do Código de 1940, preferiu disciplinar a questão do “tempo do crime”, com o que restaram superadas as divergências até então pendentes na doutrina.

Adotou-se a teoria da atividade, segundo a qual se considera praticado o delito quando da perpetração da conduta humana (positiva ou omissiva), isto é, no momento em que o agente cumpre o seu último ato, pois, como ensina Zaffaroni, se “a norma funciona como imperativo não só no momento inicial, senão também ao largo de todo o desenvolvimento da conduta até o momento em que se cumpre o último ato, a lógica que se encontra na base do regime de sucessão de leis induz a tomar, como tempo do delito, o tempo do último ato da conduta. Somente aqui cessa para a norma a possibilidade de funcionar como imperativo (...)”[15].

Embora a questão, a uma primeira análise, não pareça guardar grande relevância, constitui matéria imprescindível para a solução de uma série de problemas que podem surgir quanto à aplicação da lei penal.

Observe-se que com a opção pela teoria da atividade, e não do resultado – que considera praticado o crime no momento do evento típico -, fixa-se a lei vigente quando da ação como aplicável ao fato, ressalvada, contudo, a retroatividade da lei penal mais benéfica (art. 2º, do C.P.).

Marca-se, ainda, o momento da ação humana como início dos prazos prescricional e decadencial, bem como da eventual inimputabilidade pela menoridade penal.

A adoção da teoria da atividade, assim, é consequência do respeito ao princípio fundamental da legalidade dos delitos e das penas, na medida em que é a única que permite ao destinatário da norma penal o pleno conhecimento, quando do comportamento, da valoração negativa de sua conduta e das conseqüências que podem advir da violação da lei penal.

A teoria do resultado, ao contrário, possibilita, por vias transversas, eventualmente, a retroatividade da lei penal mais gravosa, o que é incompatível com a formulação de um direito penal democrático.

 

4.2. Crimes Permanentes, Habituais e Continuados

 

Adotada a teoria da atividade, por nossa legislação penal, para definir o “tempo do crime”, qual seria, na hipótese de sucessão de leis penais, a norma proibitiva aplicável aos delitos permanentes ou habituais?

Por delito habitual entende-se, como ensina Damásio[16], a reiteração da mesma conduta reprovável, de forma a constituir um estilo ou hábito de vida; a habitualidade, em si, representa uma elementar do tipo, como por exemplo no crime de curandeirismo (art. 284, do Código Penal), de forma que as ações que o integram, consideradas em separado, não são delitos.

O crime permanente, por sua vez, é aquele cuja consumação se protai no tempo, podendo a consumação cessar-se pela vontade de seu sujeito ativo, como por exemplo o delito de seqüestro (art. 148, do Código Penal).

Tanto no crime permanente como no habitual, na precisa lição de Nelson Hungria[17], na eventual sucessão de leis, incide a nova, ainda que mais severa e que iniciado o delito sob a vigência da lei antiga, pois “a cada momento de tal  permanência – ou  habitualidade – está presente e militando, por ação ou omissão, a vontade do agente, nada importando assim que o estado de permanência se haja iniciado no regime da lei antiga, ou que esta incriminasse ou não o fato.”  

Com efeito, a aplicação da lei nova constitui decorrência da opção valorativa do agente, pois, mesmo advertido da maior desvalorização social de sua conduta, e das conseqüências mais gravosas que dela podem advir, opta pela manutenção do comportamento delituoso.

Em relação aos delitos continuados, em princípio, aplica-se o mesmo raciocínio.

Se, entretanto, em virtude da incidência da lei nova, o aumento da pena determinado pelo art. 71, do Código Penal, ultrapassar a soma das penas dos delitos considerados isoladamente, deve-se proceder nos termos no art. 70, parágrafo único, do mesmo diploma legal, isto é, aplicar-se as penas, por cada um dos fatos, cumulativamente, pois, ao contrário, haveria a retroatividade da situação mais gravosa.

 

 

Sobre o autor
Antonio Carlos Santoro Filho

Juiz de Direito em São Paulo (SP). Pós-graduado em Direito Penal. Autor de livros de Direito Penal, Processo Penal e Filosofia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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