Adoção à brasileira sob o ponto de vista penal

Análise da conduta praticada contra o estado de filiação

25/05/2020 às 22:34
Leia nesta página:

Embora trata-se de uma prática muito comum, a adoção à brasileira configura crime contra o estado de filiação, sendo tipificado, atualmente, pelo artigo 242 do Código Penal.

Simões (2009, p. 90) destaca que a criminalização dessa conduta surgiu através do Direito Português, especialmente das Ordenações Filipinas, as quais previam o crime de parto suposto, com a seguinte redação:

O crime do parto supposto eh acompanhado de muitos outros, e em grande dano da República.
Por tanto mandamos, que toda a mulher, que se fingir ser prenhe, sem o ser, e der o parto alheio por seu, seja degradada para o Brazil, e perca todos seus bens para nossa Coròa.
E as mesmas penas haverão as pessoas, que ao tal crime derem favor, ajuda ou conselho.

Inicialmente, quando do surgimento do Código Penal Brasileiro, a conduta tipificada pelo artigo 242 somente previa o crime de parto suposto, com o seguinte texto: “dar parto alheio como próprio; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil.” Referido artigo ainda possibilitava a redução de pena se reconhecido motivo de nobreza (SIMÕES, 2009, p. 90).

No entanto, com a nova redação dada pela Lei nº 6.898 de 1981, incluiu-se a conduta de “registrar como seu o filho de outrem” como crime. Ressalta-se que, anteriormente ao surgimento da Lei 6.898/81, a conduta era criminalizada através do artigo 299 do Código Penal, consistente na prática de falsidade ideológica em assentamento do registro civil. Contudo, em razão da inexistência do dolo subjetivo exigido pelo artigo 299, passou a conduta a ser enquadrada no artigo 242, sendo absorvida aquela conduta, por ser geral, por esta última que, por sua vez, é especial (SIMÕES, 2009, p. 90).

Outrossim, referido artigo também passou a prever a possibilidade de concessão do perdão judicial, conforme parágrafo único, passando a ter a seguinte redação:

Dar parto alheio como próprio; registrar como seu filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil: Pena – reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos. Parágrafo único. Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza: Pena – detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena.

De acordo com Capez e Prado, a conduta tipificada para adoção à brasileira é aquela descrita na segunda parte do artigo, qual seja, a de registrar como seu o filho de outrem. Os autores ainda destacam:

A segunda figura típica pune a ação de registrar como seu o filho de outrem. É a denominada adoção à brasileira. Na hipótese, a criança efetivamente existe, ao contrário do delito previsto no art. 241 (registro de nascimento inexistente). Se a fictícia mãe realizar o registro, responderá por essa modalidade de conduta criminosa, pois o parto suposto resta absorvido. Trata-se de crime comum, de forma que qualquer pessoa pode praticá-lo. O sujeito passivo principal, em todas as figuras, é sempre o Estado. Na figura em estudo, também são sujeitos passivos os indivíduos lesados com o registro. O elemento subjetivo, por sua vez, é o dolo, consubstanciado na vontade livre e consciente de registrar como seu o filho de outrem. Não se exige qualquer finalidade específica. Finalmente, consuma-se no momento em que é realizada a inscrição do infante alheio no registro civil. É possível a tentativa. (CAPEZ; PRADO, 2016, p. 515).

Delma [et al] (2015, texto digital) mencionam que o objeto jurídico da segunda figura do caput, mencionada no artigo 242 do CP, qual seja, o registro de filho alheio, é o estado de filiação, podendo figurar como sujeito ativo qualquer pessoa, seja homem ou mulher e, como sujeito passivo, o Estado e as pessoas prejudicadas pelo crime. Inicialmente, o Estado, porque a regularidade do registro civil é de interesse público, que envolve a cidadania e, posteriormente, as pessoas prejudicadas por este registro, quais sejam: “eventuais herdeiros lesados, o próprio recém-nascido e os pais biológicos da criança que não tenham tido qualquer participação na conduta criminosa”.

Com relação ao tipo objetivo, Delma [et. al] (2015, texto digital) mencionam:

O núcleo é registrar, que tem significação de declarar o nascimento, promover sua inscrição no registro civil. Pune-se a ação de registrar como seu o filho de outrem. Ou seja, o agente declara-se pai ou mãe de determinada criança que, na verdade, não é seu filho, mas de terceira pessoa. Ao contrário do que ocorre na primeira figura, aqui o nascimento é real, a criança registrada existe, porém sua filiação é diversa da declarada. Tal situação ocorre, por exemplo, na chamada adoção à brasileira mediante a qual muitos casais, em vez de adotar regularmente uma criança (nos termos da legislação vigente e com a devida intervenção do Poder Judiciário), preferem registrá-la como própria, o que caracteriza, em tese, o crime deste art. 242. (Grifo no original).

No que se refere ao tipo subjetivo, Nucci (2018, p. 1289) informa que ele resta caracterizado pelo dolo, inexistindo a forma culposa, sendo exigido, contudo, “o elemento subjetivo específico, consistente na vontade de suprimir ou alterar estado civil.” O autor destaca que esse elemento deve ser aplicado às três condutas “pois não teria sentido ‘dar parto alheio como próprio’ sem a finalidade de alterar direito inerente ao estado civil, o que esvaziaria por completo o crime contra o estado de filiação.”

Nesse mesmo sentido, destacam Delma [et al] (texto digital, 2015), referindo que o tipo subjetivo se dá pelo dolo, “consistente na vontade consciente e livre de registrar filho alheio como próprio”, acrescentando, inclusive, que “se a intenção for a se salvar a criança ou outro motivo nobre, poderá haver o perdão judicial (vide parágrafo único) ou até mesmo a exclusão da antijuridicidade.”

Nucci (2018, p. 1289) também refere acerca da possibilidade de perdão judicial, reconhecendo-se a figura privilegiada, a qual extingue a punibilidade do autor do fato:

[...] praticando qualquer das condutas típicas por motivo de reconhecida nobreza, isto é, se a razão que levou o agente a assim agir for nitidamente elevada ou superior, pode o juiz julgar extinta a punibilidade. Nem sempre o criminoso tem má intenção, podendo querer salvar da miséria um recém- nascido, cuja mãe reconhecidamente não o quer. Assim, termina registrando, por exemplo, o filho de outra pessoa como se fosse seu. Eventualmente, não sendo o caso de aplicar o perdão, porque o magistrado detectou outras condições pessoais desfavoráveis (ex.: maus antecedentes, reincidência, péssima conduta social), incide, então, a figura privilegiada, aplicando-se pena bem menor do que a prevista no caput. Lembremos que há duas opções fixadas pelo legislador ao juiz, quando houver motivo de reconhecida nobreza: aplicar o privilégio (pena menor) ou o perdão judicial (extinção da punibilidade), razão pela qual pode ele valer-se dos fatores pessoais do agente para essa avaliação. Grifos no original.

Assim, verifica-se que a ilegalidade da conduta e sua consumação ocorrem com a lavratura do registro civil, de modo voluntário e consciente pelo autor do fato, podendo haver coautoria ou participação de terceiros, caracterizando o concurso de pessoas (DELMA [et al], 2015, texto digital).

Acerca da possibilidade de concurso de crimes, Delma [et al] (2015, texto digital) referem:

Concurso de crimes: Se o agente, para proceder ao registro de filho alheio como próprio, pratica falsidade ideológica ou material, ou ainda faz uso de documento falso, haverá apenas o crime deste art. 242, ficando os demais crimes absorvidos, por ser o falso elemento do crime. Se o agente se limita a falsificar ou alterar o conteúdo do assentamento de registro civil já existente (de filho que não é recém-nascido, portanto), haverá tão somente o crime do art. 299, parágrafo único, do CP.
(...)
O registro de filho alheio absorve o falso, pois este é elementar do delito.

Em sendo assim, verifica-se que a adoção à brasileira ocorre quando não obedecidas às exigências legais, as normas vigentes que tratam acerca dos adequados procedimentos a serem seguidos para a adoção.

Nesse sentido, poderá o adotante à brasileira responder criminalmente. No entanto, para isso, não basta tão somente a prática do ato de registrar filho alheio em nome próprio, sendo necessário também, por óbvio, que a conduta praticada chegue ao conhecimento das autoridades competentes, a fim de que investiguem o caso e apliquem as medidas necessárias.

Marques e Souza destacam as consequências que podem ser geradas quando da descoberta da prática da adoção à brasileira:

Se confirmado, durante a instrução processual, o cometimento do crime poderá ocorrer o cancelamento do registro do adotando, a busca e apreensão deste, para a família biológica e, dependendo do caso, se não se souber onde encontra-se a família biológica, o mesmo será levada a abrigos onde a criança passará pelo processo de adoção previsto no ECA (MARQUES; SOUZA, 2016, texto digital).

Para Simões, no entanto, a sentença não acarretará a anulação da “adoção”, inclusive porque deve ser levado em conta o princípio do melhor interesse, já que a criança adotada já criou vínculo com o adotante, possuindo ele como referência para sua identidade pessoal:

Cabe observar que, a sentença criminal não influenciará a civil no que diz respeito à anulação ou não da “adoção”, e nem deveria, pois embora reconhecida a existência do crime cometido pelo “adotante” o aplicador do direito deve estar atento ao interesse primordial da criança (art. 227, da Constituição de 1988), que, provavelmente, tem o “adotante” como referência de sua identidade pessoal, devendo, inclusive, carregar seu nome de família. Ademais, a pessoa poderia, para eximir-se de responsabilidade, obter êxito, alegando sua própria torpeza. (SIMÕES, 2009, p. 92).

A autora conclui:

Não há que se negar, portanto, que, muito embora, a formação da “adoção” tenha ocorrido pela prática de um crime, houve também, com o decorrer do tempo a formação de um forte vínculo de parentesco que não pode ser desconstituído, lembrando que deve sempre ser levado em conta o princípio da proteção integral e do melhor interesse da criança. (SIMÕES, 2009, p. 92- 93).

O parágrafo único do artigo que tipifica a adoção à brasileira, possibilita ao juiz que deixe de aplicar a pena, quando for reconhecido motivo de nobreza.

Embora a filiação decorrente de adoção à brasileira consista num procedimento irregular, por meio do qual se promove o registro de uma pessoa como filho de outrem, que não são seus pais biológicos, com o escopo de dar ao menor toda a assistência necessária e possivel, e possa ser ainda tipificado como crime de parto suposto, previsto no Código Penal em seu art. 242, não será aplicada a pena se o juiz entender que o delito foi praticado por motivo de reconhecida nobreza, embora a lei, mesmo nesses casos, preveja uma punição. Diferente é a hipótese da criança retirada à força de seus pais biológicos e registrada por terceiros. (MALUF C.; MALUF A., p. 254-252).

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Sendo assim, entende-se por motivo de nobreza quando a conduta é praticada com boas intenções visando proporcionar uma vida digna para a criança. Discorrem Cabette e Rodrigues:

Vemos que a própria legislação exclui a imposição de pena quando o delito é praticado por reconhecida nobreza, ou seja, quando a conduta está revestida de boas intenções, visando uma vida digna para aquele pequeno ser, logo, percebe-se que de fato há a tipificação para se evitar que crianças sejam adotadas com fins maléficos, e ao mesmo tempo, se reconhece que há casos em que o objetivo é garantir a dignidade daquele indivíduo. (CABETTE; RODRIGUES, 2019, texto digital).

Impende salientar que, no caso de adoção à brasileira, a legislação possui um enfoque maior para o benefício da criança, sendo que a prescrição do crime começa a contar a partir da data em que o fato de tornou conhecido, diferentemente da maioria dos demais casos, em que conta-se o início do prazo da prescrição com a data em que cometido o crime.

Nesse sentido dispõe o artigo 111 do Código Penal Brasileiro:

Art. 111. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr:
[…]
IV - nos de bigamia e nos de falsidade ou alteração de registro civil, da data em que o fato se tornou conhecido.

Assim, de acordo com Marques e Souza, para essa prática o legislador teve um olhar mais rigoroso, haja vista que se trata de um crime cometido contra a família, base da sociedade:

[...] observamos que, para este tipo de infração, o legislador teve um olhar mais severo, pois trata-se de um crime contra a família, que é considerada a base na formação de bem. Nestes casos, a prescrição começa a ter seu prazo contado a partir da data do conhecimento do fato pela autoridade competente, diferentemente dos outros crimes, que tem como início deste prazo a data do cometimento do ato ilícito (MARQUES; SOUZA, 2016, texto digital).

Cumpre, aqui, registrar que além dessa modalidade de adoção acontecer às margens das previsões legais e, embora por vezes a justiça reconheça o motivo de nobreza e deixe de aplicar a respectiva pena, em outras oportunidades a adoção à brasileira ocorre para a prática de outros crimes, como o tráfico ou venda de crianças, sem analisar o melhor interesse do adotado.

Lima e Azevedo (texto digital, p. 11) destacam que por ser uma adoção ocorrida extrajudicialmente, não é possível controlar a ação dos pais biológicos que dão os filhos, bem como dos adotivos, que aceitam a criança doada, dando ensejo a uma espécie de “mercado negro” de crianças e contribuindo para o risco de chantagens e ameaças das quais as crianças ficam vulneráveis. As autoras ainda referem que, no Brasil, a adoção irregular ocorria em cerca de 90% dos casos de adoção efetivados até o ano de 1988.

Paz e Teixeira apud Bedin, revelam que os pais biológicos podem obter a Declaração de Nascido Vivo da criança, sob alegação de que deram à luz dentro da própria residência, dentro do veículo, etc, e que, através desse documento, qualquer pessoa pode ir ao cartório de registro civil e registrar o bebê como se seu filho biológico fosse. Os autores ainda acrescentam que o procedimento para registro civil de nascimento possui diversas falhas de segurança, dando ensejo à prática da adoção à brasileira, “inclusive mediante burla da declaração de nascido vivo”. (PAZ; TEIXEIRA apud Bedin, 2018, p. 40).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BEDIN, Paula Cristina. Adoção à brasileira: problema ou solução?. 72 f. Monografia (Graduação) — Curso de Direito, Universidade do Vale do Taquari, Lajeado, nov. 2018. Disponível em: https://www.univates.br/bdu/bitstream/10737/2449/1/2018PaulaCristinaBedin.pdf. Acesso em: 01 out 2019.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos; RODRIGUES, Raphaela Lopes. Adoção à brasileira: crime ou causa nobre?. [S. l.], 7 jan. 2019. Disponível em:<https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI293739,51045- adocao+a+brasileira+crime+ou+causa+nobre>. Acesso em: 03 set. 2019.

CAPEZ, Fernando; PRADO, Stela. Código Penal comentado. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788547209285/cfi/0. Acesso em: 7 set. 2019.

DELMA, Fábio Machado de Almeida; DELMANTO, Roberto; DELMANTO, Celso; JR., Roberto Delmanto. Código Penal Comentado. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. Disponível em: <https://app.saraivadigital.com.br/leitor/ebook:580117>. Acesso em: 11 set. 2019.

LIMA, Karina Barbosa de; AZEVEDO, Raquel Gutierrez de. Adoção intuito personae e adoção à brasileira: aspectos legais e consequências práticas. [S.l.]. [entre 2000 e 2019]. Disponível em: < Https://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/6/art20150602-11.pdf>. Acesso em: 12 set. 2019.

MARQUES, Isabel; SOUZA, Vanesca Marques. Adoção à brasileira: justiça cúmplice de um ato ilícito. JUS.com.br. 2016. Disponível em: < https://jus.com.br/artigos/45980/adocao-a-brasileira-a-justica-cumplice-de-um-ato- ilicito>. Acesso em: 11 set. 2019.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 18 ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017. Disponível em: <https://www.univates.br/biblioteca/>. Acesso em: 03 set. 2019.

SIMÕES, Nataly Moretzsohn Silveira. A adoção e o direito ao convívio familiar sob a perspectiva dos direitos fundamentais. UNIFIEO – Centro Universitário FIEO. Dissertação (Mestrado), Osasco/SP, 2009. Disponível em:<http://www.fieo.br/pdfs/diss_nataly_2009.pdf> Acesso em: 09 set. 2019.

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