O exercício da advocacia nos possibilita, por vezes, o enfrentamento de situações novas. Isso é bom, na medida em que o novo nos desafia, nos faz ter novas experiências e a crescer.
Certa vez, após a produção de todas as provas no bojo do inquérito policial, o Ministério Público denunciou o agente pela prática de três crimes: furto qualificado (art. 155, § 4º, IV, do CP); desobediência (art. 330. do CP); e tentativa de homicídio duplamente qualificado (art. 121, § 2º, V e VII, c/c art. 14, II, do Código Penal).
Recebida a denúncia, o acusado foi citado. Dias depois, sem a existência de informação ou documento novo, antes mesmo da apresentação da defesa escrita, o Parquet aditou a denúncia e imputou ao réu a prática de delito muito mais grave, qual seja, tentativa de latrocínio (art. 157, §§ 1º e 3º, II, c/c art. 14, II, do Código Penal).
Poderia, então, o Ministério Público agir dessa forma?
Obviamente, não!
Sabe-se que a denúncia é a peça processual que dá início à ação penal pública. É no momento do oferecimento da peça acusatória que o órgão ministerial, titular da actio, expõe o fato criminoso com todas as suas particularidades, a fim de possibilitar ao acusado o exercício da ampla defesa e do contraditório (art. 41. do CPP; art. 5º, LV, da CF/1988).
Não se desconhece, ainda, que o fato delituoso somente pode ser modificado na hipótese do art. 384, caput, do Código de Processo Penal, desde que exista novo elemento ou circunstância não descrita na denúncia, oriunda da instrução probatória realizada em juízo, fenômeno conhecido como mutatio libelli. Veja-se:
“Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente”.
Esse não foi o caso, já que não houve fato novo, “elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação”, surgida na instrução, que ensejasse a propositura do aditamento, mesmo porque, quando do oferecimento da peça acusatória, o Parquet já tinha conhecimento de todos os fatos da causa.
Sobre a matéria, extrai-se da doutrina:
“O artigo 384, parágrafo único, não admite seja a acusação ampliada a novos fatos através do aditamento à denúncia, pois a mutatio acusationis está restrita à "nova definição jurídica do fato" constante da imputação inicial e não à correção de equívocos na incriminação ou à apresentação de nova imputação, providências que são compatíveis apenas com a propositura de nova ação penal” (Mirabete, Julio Fabbrini. Processo penal. 17. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2005. p. 492-493).
No mesmo sentido, em relação ao fato conhecido à época da denúncia, Demercian e Maluly aduzem que “o aditamento, nessa fase, não se presta às corrigendas da denúncia. Vale dizer, se o fato não contido na denúncia não decorrer de prova surgida durante a instrução, não terá aplicabilidade o disposto no art. 384. do CPP” (Demercian, Pedro Henrique; Maluly, Jorge Assaf. Curso de processo penal. 9. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014. p. 591).
De mais a mais, ao oferecer a denúncia, como não se tratava da hipótese prevista no art. 384. do CPP, operou-se a preclusão consumativa, o que impede a modificação do fato delituoso pelo Parquet.
Os Tribunais já analisaram casos semelhantes (REsp n. 1481171/STJ, julgado em 26/6/2018. Relator: Min. Nefi Cordeiro; REse n. 70080225725/TJRS, julgado em 23/5/2019. Relator: Desa. Rosaura Masques Borba).
Sendo assim, o Ministério Público não pode, com base em um fato que já era conhecido ao tempo da denúncia, e em razão de um erro de interpretação dos acontecimentos fáticos, inovar na tese acusatória e realizar o aditamento com o fim de imputar ao réu outra conduta delituosa.