Breves linhas sobre o princípio da boa-fé

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Este artigo tem como finalidade desenvolver algumas linhas sobre o princípio da boa-fé, que tem dois sentidos, sendo um relacionado à consciência do sujeito e outra às condutas adotadas pelas partes em uma certa relação social relevante ao Direito.

I. Considerações iniciais.

O mundo atual é regido por uma pluralidade de disciplinas das mais diversas áreas, dentre as quais se destacam duas: as ciências econômica e jurídica. A primeira regula a produção e distribuição de bens e serviços finitos para atendimento de anseios sociais infinitos; a segunda disciplina relações sociais consideradas juridicamente relevantes tanto no sentido de solucionar eventuais conflitos quanto sedimentar certas instituições sociais.

Dentro desse enlace entre Direito e Economia é que se destaca uma figura que atende ambas: o contrato, que é uma espécie de negócio jurídico por meio do qual são constituídas, modificadas ou extintas posições jurídicas de caráter patrimonial[1].

Cabe a lição de Enzo Roppo[2] de que o contrato é bifocal: sob a óptica jurídica, como uma estrutura que serve para tutelar as expectativas relacionadas aos contratantes, e sob a óptica econômica serve como meio através do qual a riqueza circula, sai do setor patrimonial de alguém e ingressa no de outrem.

Essa operação jurídica-econômica chamada negócio contratual tem como base a noção de boa-fé, que é para Karl Larenz[3] um elemento ético-social inserido não apenas nas relações ligadas ao patrimônio, mas a todas as relações jurídicas de Direito Privado, patrimoniais ou não-patrimoniais (= extrapatrimoniais).

Tanto o próprio Karl Larenz[4] quanto António M. da R. e Menezes Cordeiro[5] apontam o Código Civil alemão (BGB), de 1900, como a fonte a partir da qual se espraiou a boa-fé, pautando-se na noção de lealdade para que as relações intersubjetivas sejam estáveis, alcancem as legítimas finalidades e mantenham a paz social. Sem essa confiança que permeia as interações sociais o mundo voltaria a um estado belicoso no qual vigoraria a força.

O Código Civil brasileiro (CCB/2002) contém diversos enunciados relativas à categoria em questão, p. ex., arts. 113, 128, 164, 167, parág. 2º, 187, 309, 422, 896, 925, 1.201, 1.260, 1.268, parág. 1º, 1.563, 1.740, 1.828. O diploma em questão tem 2.046 dispositivos e é visível que a boa-fé consta em diversos enunciados relativos a, praticamente, todas as matérias civilistas: da parte geral às sucessões.

Dentro ou fora do mercado, fato é que a lealdade não apenas está no setor jusprivatista, mas em toda e qualquer relação jurídica, inclusive nas regidas pelo Direito Público. Fala-se disso a partir da noção de moralidade contida na Constituição do Brasil (art. 37), que exige do Poder Público condutas pautadas na confiança que as pessoas depositam no Estado.

Com todo o exposto é que se extrai as perguntas centrais: o que é e quais os sentidos de boa-fé? E a tão falada boa-fé objetiva?

As respostas serão desenvolvidas em etapas: em maior grau serão desenvolvidos os sentidos do signo acima e, após, haverá um aprofundamento sobre a chamada feição objetiva, expondo as funções por ela exercida.

II. Sentidos de boa-fé.

A título exemplificativo, o signo boa-fé é polissêmico em sentido jurídico, ao que se pode constatar no CCB/2002: no art. 113 consta que ‘’Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé’’, no art. 1.201 consta que ‘’É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa’’, no art. 422 consta ‘’Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé’’.

Acima há, no mínimo, três significados extraídos da mesma palavra: no primeiro há um cânone interpretativo, no segundo uma situação subjetiva em relação à coisa que possui e no terceiro há um dever de conduta dos contratantes.

Metodologicamente, a boa-fé divide-se em dois sentidos[6], quais sejam, em sentido subjetivo e em sentido objetivo. Por ter extrema vagueza na sua significação, um conceito jurídico indeterminado, há contextos fácticos nos quais consta um ou ambos os sentidos de forma indistinta – ou nenhum deles -, o que não inviabiliza a exposição bipartida.

António M. da R. e Menezes Cordeiro[7] desenvolve histórico da boa-fé subjetiva, que encontra um conceito inicial a partir do psicologismo, um estado de ignorância do possuidor, quando constituiu ou adquiriu a posse, em lesar outrem. Em sentido ético, a acepção mudou para incluir na ignorância exigências de diligência ou desculpabilidade do erro.

O desenvolvimento teorético acima redundou, segundo Judith Martins-Costa[8], na definição de boa-fé subjetiva como o estado psicológico caracterizado pela crença do sujeito quanto à legitimidade jurídica de certos fatos. Trata-se do estado de ignorância desculpável no qual o sujeito, tendo cumprido com certos cuidados, ignora certas eventualidades[9].

Na disciplina legal do CCB/2002 determina que o estado subjetivo de lealdade confere justeza à posse (arts. 1.200 a 1.203), a eficácia liberatória no pagamento a credor putativo (art. 309), a produção de todos os efeitos não-patrimoniais e patrimoniais entre nubentes que se casaram sob incidência de invalidade (art. 1.561), a eficácia das alienações feitas por herdeiros aparentes (arts. 1.827 e 1.828), assim como torna eficaz transmissão de coisa móvel a terceiro por quem não é proprietário (art. 1.268).

Tendo em vista que haverá tópico específico, de forma mais genérica, a boa-fé objetiva é norma que, tal qual o Direito, regula comportamentos, no caso exigindo lealdade dos termos da relação quanto ao conteúdo da interação[10].

Paulo Lôbo[11] acentua que o sentido objetivo aqui perseguido envolve o regramento das condutas e, portanto, diz respeito à confiança causada pelos comportamentos adotados por uma parte, não no estado de consciência criado. A noção geral está estabelecida, partindo para as proposições gerais de grau intermediário.

III. A boa-fé objetiva.

Segundo Judith Martins-Costa[12] e Paulo Lôbo[13], boa-fé em sentido objetivo é regramento que diz respeito à faceta exteriorizada da lealdade nas relações intersubjetivas, as condutas, sendo que ela se traduz em uma norma-princípio com tríplice funcionalidade: (i) hermenêutica, (ii) integrativa e (iii) corretiva.

A função hermenêutica liga-se, principalmente, ao art. 113 do CCB/2002, que determina ao intérprete que os atos (e não apenas os negócios) jurídicos sejam compreendidos a partir da boa-fé. Clóvis V. do Couto e Silva[14] aduz que o papel principiológico-interpretativo advém da necessidade de afastar subjetivismos e psicologismos nas relações jurídicas, particularmente nos negócios. Por meio da boa-fé objetiva é possível determinar os limites dos interesses das partes de forma a estabelecer um mandamento de consideração que cada participante dever ter para com o outro[15].

Ligada ao art. 422 CCB/2002, a função integrativa liga-se mais ainda a Clóvis V. do Couto e Silva[16], na concepção da obrigação como processo, isto é, que a relação obrigacional não é criada simplesmente do nada, e sim tem fases mais ou menos delineadas: a fase pré-negocial, na qual há contatos entre interessados, a fase da conclusão negocial, na qual o ato obrigacional se perfaz, constituindo o liame, a fase da execução, na qual cada parte cumpre com o que prometido, e a fase pós-negocial, na qual há deveres que envolvem não violar a esfera alheia mediante, p. ex., exposição de informações confidenciais.

A funcionalidade integrativa está, justamente, no fato de que existem deveres acessórios, laterais ou anexos que não precisam constar expressamente no ato para que existam, bem como eles recaem sobre todos os envolvidos, não apenas sobre um ou uns[17].

De acordo com António M. da R. e Menezes Cordeiro[18], há três grandes deveres acessórios, a saber, o dever de informar ou esclarecer, que determina às partes que prestem informações quanto às questões atinentes à relação, o dever de lealdade, que determina às partes que se abstenham de falsear o objetivo negocial ou desequilibrar a relação, e o dever de proteção, que determina às partes que não atentem contra a esfera jurídica da contraparte.

Uma terceira função da boa-fé objetiva é a corretiva[19], que se liga tanto à constituição do negócio quanto ao exercício inadmissível de posições jurídicas. É dizer: desdobra-se a atribuição corretora tanto no ajustamento do conteúdo do negócio no que diz respeito às abusividades quanto no ajustamento do exercício de certo direito lato sensu ou dever lato sensu.

Especificamente sobre o controle do exercício é que se destacam as figuras parcelares da boa-fé objetiva: nemo potest venire contra factum proprium, supressio, surrectio, exceptio doli, tu quoque, duty to mitigate the loss, Nachfrist. Por haver tantas subcategorias ligadas à função de controle, o CCB/2002 não estabeleceu uma fórmula geral, aplicável a tudo, mas deixou evidente a existência da funcionalidade em decorrência da interpretação do art. 422, assim como, p. ex., dos arts. 330 (supressio), 476 (tu quoque, na espécie exceptio non adimpleti contractus).

A síntese geral está em certa expansão da lição de Rodrigo Fernandes Rebouças[20] (que se atém aos contratos), para quem a boa-fé objetiva tem função (i) interpretativa, como um dos cânones para compreensão das relações jurídicas, (ii) supletiva ou integrativa, que diz respeito ao suprimento de lacunas e estabelece deveres acessórios para os termos da relação, e (iii) corretiva, corretora ou de controle, que serve como meio de ajustar tanto o conteúdo do ato quanto o exercício de certas posições jurídicas às exigências de lealdade comportamental.

IV. Considerações finais.

Um dos núcleos fundantes da visão pautada no personalismo ético kantiano é a boa-fé, que ganhou os contrastes contemporâneos a partir, principalmente, dos teutões durante a fase de sistematização do Código Civil alemão.

Como caroço principiológico, boa-fé tem como entendimento a lealdade tanto que as partes nutrem no seu interior quanto nas condutas que exercem dentro de uma relação intersubjetiva. O intuito da norma é levar ao plano jurídico a noção de confiança que serve como eixo de estabilidade das interações sociais, para que alcancem a finalidade ensejada pelos envolvidos e a paz social reine.

Ato contínuo, desdobrou-se a boa-fé em dois sentidos para o Direito. O primeiro é a boa-fé subjetiva, que tem bases tanto no psicologismo quanto no aprimoramento ético, consistindo no estado psicológico caracterizado pela crença do sujeito quanto à legitimidade jurídica de certos fatos, na ignorância subjetiva desculpável sobre certas eventualidades.

A boa-fé objetiva, por sua vez, vislumbra a adoção de comportamentos e sobre eles determina certos regramentos que envolvem a exigência de lealdade dos termos da relação. Os regramentos se dividiram de acordo com funcionalidades, que são três: (i) hermenêutica, como um direcionador para compreensão das relações jurídicas, (ii) integrativa, que diz respeito ao suprimento de lacunas mediante imposição de deveres acessórios aos termos da relação, e (iii) corretiva, destinada ao ajustamento às exigências de lealdade tanto do conteúdo do ato quanto do exercício de certas posições jurídicas.

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V. Referências bibliográficas.

BESSONE, Darcy. Do contrato: teoria geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no Direito Civil. 7. reimpressão. Coimbra: Almedina, 2017.

LARENZ, Karl. Derecho Civil: parte general. Trad. Miguel Izquierdo y Macías-Picavea. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1978.

LÔBO, Paulo. Direito Civil: contratos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

MARTINS-COSTA, Judith.  A boa-fé no direto privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015.

REBOUÇAS, Rodrigo Fernandes. Autonomia privada e análise econômica do contrato. São Paulo: Almedina, 2017.

ROPPO, Enzo. O contrato. Trad. Coimbra: Almedina, 2009.

SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006.


[1] BESSONE, Darcy. Do contrato: teoria geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 17.

[2] O contrato. Trad. Coimbra: Almedina, 2009, pp. 7-15.

[3] Derecho Civil: parte general. Trad. Miguel Izquierdo y Macías-Picavea. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1978, p. 58.

[4] Ibidem, pp. 58-61.

[5] Da boa fé no Direito Civil. 7. reimpressão. Coimbra: Almedina, 2017, pp. 325 e ss.

[6] MARTINS-COSTA, Judith.  A boa-fé no direto privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, pp. 261 e ss.

[7] Da boa fé no Direito Civil. Op. Cit., pp. 407 e ss.

[8] A boa-fé no direto privado: critérios para a sua aplicação. Op. Cit., pp. 261-263.

[9] Ibidem, p. 516.

[10] CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no Direito Civil. Op. Cit., p. 527; MARTINS-COSTA, Judith.  A boa-fé no direto privado: critérios para a sua aplicação. Op. Cit., p. 263.

[11] Direito Civil: contratos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 70.

[12] A boa-fé no direto privado: critérios para a sua aplicação. Op. Cit., pp. 263-265.

[13] Direito Civil: contratos. Op. Cit., pp. 70-74.

[14] A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006, pp. 35-36.

[15] Idem.

[16] Ibidem, pp. 63 e ss.

[17] SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. A obrigação como processo. Op. Cit; CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no Direito Civil. Op. Cit., pp. 586 e ss.; MARTINS-COSTA, Judith.  A boa-fé no direto privado: critérios para a sua aplicação. Op. Cit., pp. 511 e ss.

[18] Da boa fé no Direito Civil. Op. Cit., pp. 603 e ss.

[19] CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no Direito Civil. Op. Cit., pp. 661 e ss.; MARTINS-COSTA, Judith.  A boa-fé no direto privado: critérios para a sua aplicação. Op. Cit., pp. 571 e ss.

[20] Autonomia privada e análise econômica do contrato. São Paulo: Almedina, 2017, pp. 74-75.

Sobre o autor
Felipe Bizinoto Soares de Pádua

Mestrando em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo Instituto de Direito Público de São Paulo (IDPSP) (2021-). Pós-graduado em Direito Constitucional e Processo Constitucional pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil (IDPSP/EDB) (2019). Pós-graduado em Direito Registral e Notarial pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil (IDPSP/EDB) (2019). Pós-graduado em Direito Ambiental, Processo Ambiental e Sustentabilidade pelo Instituto de Direito Público de São Paulo/Escola de Direito do Brasil (IDPSP/EDB) (2019). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC) (2017). É monitor voluntário nas disciplinas Direito Constitucional I e Prática Constitucional, ministradas pela Profª. Dra. Denise Auad, na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É membro do grupo de pesquisa Hermenêutica e Justiça Constitucional: STF, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). É membro do grupo de pesquisa Direito Privado no Século XXI, do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Foi auxiliar de coordenação no Núcleo de Estudos Permanentes em Arbitragem (NEPA), da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (2018). Foi articulista da edição eletrônica do Jornal Estado de Direito (2020-2021). Advogado na Cury, Santana & Kubric Advogados.

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