O internato forense como alternativa profiláxica da morosidade processual crônica

01/06/2020 às 15:05
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Internato forense seria a proposta de um ano a mais no curso de direito, com reformulação da grade curricular, para que estudantes exerçam a função social de auxiliar do Judiciário.

Pode-se afirmar com certa veemência que a morosidade processual crônica afeta a maioria das instâncias brasileiras, senão, todas, gerando reflexos no âmbito público e, principalmente, no âmbito social, o que é refletido na descrença de efetividade na justiça por parcela considerável da população, causando sentimentos de distanciamento e ineficácia que vão de encontro aos princípios constitucionais básicos de acesso ao Poder Judiciário, direito de ação e razoável duração dos processos.

A morosidade crônica não se confunde com a morosidade natural do processo, condizente com o respeito dos ritos e trâmites formais consubstanciado nos prazos de citações, intimações, marcações de perícias, recursos, contrarrazões, agendamentos de pautas.

A crônica resulta dos longos - e até absurdos - períodos aguardando despachos, decisões e até simples movimentações processuais. Segundo estatísticas, o tempo médio de um processo corresponde a um período de 4 anos e 10 meses aguardando o desfecho final, nesse sentido:

  • O tempo médio do acervo caiu de 5 anos e 6 meses em 2015 para 4 anos e 10 meses em 2018.
  • O tempo médio até a sentença subiu de 1 ano e meio em 2015 para 2 anos e 2 meses em 2018.
  • Nas Varas do Trabalho, o julgamento na fase de conhecimento é realizado em apenas 9 meses – mesma média dos Juizados Especiais Estaduais. Nos JEFs, a média é um pouco maior: 12 meses. 
  • No juízo comum, o tempo de julgamento nas Varas supera o tempo dos Juizados. Leva-se, em média, 1 ano e 10 meses para julgar um processo em fase de conhecimento nas varas federais e 2 anos e 4 meses nas varas estaduais.
  • A execução é a fase mais demorada: são necessários, em média, 5 anos e 11 meses para dar baixa a um caso em execução e, assim, dar fim ao processo.

Pensando em soluções, O Conselho Nacional de Justiça – CNJ vem estipulando diversas metas para combater a lentidão, tendo desenvolvido o “Justiça em Números”[i] como forma de dar publicidade as estatísticas oficiais obtidas.

Segundo dados de 2019, houve, pela primeira vez, queda na quantidade de processos pendentes, indicando que o Judiciário julgou mais processos que o número de ações ajuizadas.

Em 2018, houve um total de 28.052.965 casos novos ingressados, apontando uma redução de 1,9% em relação ao exercício de 2017. Já a quantidade de processos baixados em 2018 corresponde à quantia de 31.883.892, um aumento de 3,8% em relação de produtividade.

A pesquisa indica que cada juiz julgou numa média de 8 casos por dia útil do ano. A força de trabalho totaliza 450.175 do capital humano, dividindo-se em: 18.141 magistrados, 272.138 servidores (efetivos – 233.169, cedidos/requisitados – 21.840, sem vínculo efetivo – 17.129) e auxiliares 159.896.

No momento, a prioridade do CNJ é na produtividade do 1º grau de jurisdição que concentra 94% do acervo processual. A ilustração de sobrecarga de trabalho do servidor na 1ª instância corresponde ao dobro do servidor na 2ª instância: são 602 processos por servidor no primeiro grau para 312, no segundo grau.

Não há dúvidas de que um dos fatores que auxiliaram na redução do tempo de litígios deu-se por causa dos esforços no incentivo da conciliação que, em 2018, totalizou 4,4 milhões de sentenças homologatórias provenientes de acordos proferidos pela justiça, representando a expressiva quantia de 12% dos processos julgados.

Dessa forma, percebe-se que o Judiciário como um todo enfrenta o problema comum da morosidade, sendo indispensável a requisição de mais mão de obra para analisar, e, consequentemente, conseguir impulsionar o atual acervo de demandas processuais, sendo a questão orçamentária um grande entrave, pois muitos órgãos já estão no limite do gasto, não conseguindo sequer fazer novos concursos para repor os cargos vagos.

Em 2010, os dados do CNJ apontavam que o Brasil possuía 1240 cursos jurídicos espalhados pelo território federal, enquanto outras nações, incluindo China, Estados Unidos e toda Europa, somavam 1100.

Com relatórios mais recentes, o portal E-mec apontou que há 1.650 cursos de Direito em atividade, que ofertam mais de 317 mil vagas por ano.[ii]

Tendo em mente o interesse público na razoável duração dos processos e na célere e eficaz resolução dos litígios, é interessante cogitar alguma medida para o empréstimo dessa força de trabalho num viés de cumprimento da função social da atividade jurídica.

Pensando nisso, formula-se a presente reflexão sobre uma futura proposta de incremento/reformulação da grade dos cursos de Direito no País para 6 anos, com a inclusão de 1 ano de internato forense como uma espécie de estágio automático no Judiciário e inclusão de outras cadeiras práticas indispensáveis para formação profissional.

O internato forense funcionaria como um estágio obrigatório sem ônus remuneratório pelo Poder Público, num intuito similar ao internato hospitalar experimentado pelos estudantes de medicina, tendo como possíveis objetivos:

  • Consolidar os conhecimentos e habilidades adquiridos pelos alunos através da interação do aluno com as partes e servidores da área jurídica nos diferentes cenários de aprendizagem (tribunais, fóruns, juizados, câmaras de mediação e arbitragem).
  • Possibilitar ao aluno a atuação nas diferentes instâncias e justiças através do contato com problemas reais.
  • Estimular ao aluno torna-se crítico e responsável pelo processo de aprendizagem no decorrer de sua vida profissional.
  • Vincular, através da integração ensino-serviço a formação jurídico-acadêmico às necessidades sociais da justiça.

Inicialmente, numa tríplice parceria do Judiciário com a OAB e as instituições de ensino, o 6º ano poderia ser implementado sem maiores ônus nas parcelas dos estudantes, no caso de instituições privadas, e em troca poderia ser analisado o recebimento de benefícios fiscais pela manutenção dessas atividades de cunho social em prol da sociedade.

No internato, as atividades poderiam consistir tanto em funções de secretaria de teor administrativo, com atribuições e serviços menos especializados e mais “braçais”, supervisionada por um servidor tutor responsável pelo serviço, como também por aulas práticas constituídas em: estudos de casos, aprofundamento de jurisprudências locais, júri simulados, ensaios de audiência, retóricas de sustentação oral, treino de petições, cursos de mediação e arbitragem, tudo acompanhada por profissionais dos mais diversos segmentos jurídicos: juízes, promotores, procuradores, advogados, delegados, defensores públicos.

Assim, instruídos para suprir as necessidades de secretaria, poderia haver a transição lenta e gradual dos servidores para as funções mais especializadas que exigem maiores preparos e responsabilidades no desempenho como as de gerenciamento, supervisão e assessoria, permitindo-se assim o incremento da equipe técnica para análise de processos e feitura de minutas, gerando, por consequência, em teoria, ganho de celeridade, sem perda na qualidade dos julgados.

À primeira vista, talvez, tal projeto aparente representar uma burla ao princípio do concurso público pela aquisição de mão de obra estudantil em prol da contratação de novos servidores técnicos judiciários. Porém, como se procura mostrar, as funções desempenhadas pelos internos seriam funções básicas: movimentação processual, citações, intimações, cumprimento de despachos, típicas de qualquer estagiário no serviço público, atividades que não retiram a necessidade de revisão e supervisão desempenhada por outros servidores.

O cargo continuará existindo, mas os servidores centralizarão seus esforços em funções com maior grau de responsabilidade como supervisão de atividades, auxílio de minutas e análise de processos em conjunto com a assessoria. Nesse mesmo sentido é a descrição das atividades do cargo de técnico judiciário pelo TRF 5º no concurso realizado pela FCC em 2017[iii]:

Técnico Judiciário – Área Administrativa: Realizar atividades de nível intermediário a fim de fornecer auxílio técnico e administrativo, favorecendo o exercício da função judicante pelos magistrados e/ou órgãos julgadores e o exercício das funções necessárias ao adequado funcionamento da organização. Compreende o processamento de feitos, a redação de minutas, o levantamento de dados para elaboração de relatórios estatísticos, planos, programas, projetos e para a instrução de processos, a pesquisa de legislação, doutrina e jurisprudência, a emissão de pareceres, relatórios técnicos, certidões, declarações e informações em processos. Envolve a distribuição e controle de materiais de consumo e permanente, a elaboração e conferência de cálculos diversos, a digitação, revisão, reprodução, expedição e arquivamento de documentos e correspondências, a prestação de informações gerais ao público, bem como a manutenção e consulta a bancos de dados e outras atividades de mesma natureza e grau de complexidade.

Dessa forma, percebe-se que as funções desempenhadas pelos internos e servidores são distintas, continuando com a necessidade do cargo e futura realização de novos concursos para repor servidores, porém, pode ser interessante a estipulação de um número mínimo e máximo de alunos por setor, a fim de evitar o inchaço e eventual manobra ardilosa para tentativa de eventual substituição de mão de obra.

Apesar do número expressivo de instituições espalhadas pelo País, a maioria delas está concentrada nas capitais e regiões metropolitanas, fazendo com que alguns interiores e comarcas mais afastadas possam não ser beneficiadas pelo presente projeto.

Pensando nisso, o Poder Público poderia fazer o remanejamento ou redistribuição de ofício de alguns servidores entre as comarcas a fim de equalizar todo o sistema em termos de pessoal, havendo uma melhoria geral de produtividade nas diversas instâncias e entrâncias.

Os servidores tutores poderiam desenvolver, em parceria com os professores supervisores das instituições, considerações de casos específicos e estudos sobre a evolução da jurisprudência local a fim de estimular o pensamento crítico e aprofundamento da matéria concreta.

A parceria com a OAB e as instituições, também, poderia fornecer aos estudantes aulas com foco no mercado de trabalho: como gestão de escritórios, captação de clientes, ética no serviço público e na advocacia, familiaridade com o PJE e outros softwares jurídicos utilizados na prática, marketing pessoal, técnicas de mediação e resolução de conflitos, treino da oratória em sustentação oral, simulações de júris e audiências, com um preparo mais efetivo no desenvolvimento do futuro profissional.

O mercado de trabalho exige várias habilidades dos operadores do Direito, dentre elas: oratória, retórica, escrita, negociação, vendas, convencimento, resolução de conflitos, liderança, análise crítica, planejamento estratégico, gestão, intuição e inteligência emocional.

Assim, os alunos no internato poderiam ser divididos em turnos, manhã e tarde, onde cada grupo teria um período de efetiva atividade jurídica e, no outro turno, aula prática dentro do próprio recinto forense, tudo com vistas a unir a teoria com a prática.

Também poderia se cogitar uma lista de preferência dos alunos por área de atuação: Tributário (varas de execuções fiscais), D. Público (varas e juizados da fazenda pública), Penal (varas e juizados criminais), Civil/Consumidor (varas e juizados cíveis), Trabalho (justiça do trabalho), para fins de unir o futuro interesse profissional com a escolha do órgão de internato para auxiliar ou a ponderação de um período de 3 meses em cada ambiente, estimulando o máximo de contato com áreas diferentes, aumentando o leque de experiência vivenciadas e oportunidades para o aluno e futuro profissional.

 Interessante também meditar sobre a interpretação do cômputo do período de internato como nítido desempenho de função pública para fins de contagem do tempo de atividade jurídica, assim como o internato seria um estágio automático, obrigatório, agregado a grade curricular, haveria diversos benefícios em sua instituição.

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Benefícios na formação jurídica dos futuros profissionais com ricas experiências nos recintos forenses: atividades de campo, estudos de casos, simulações de júris e audiências, tudo em prol do aperfeiçoamento profissional.

Benefícios para o Judiciário com o ganho de mão de obra para auxiliar nas atividades de secretaria, possibilitando a migração dos servidores para assessoria almejando reduzir a taxa de lentidão a custo zero pela desnecessidade de pagamento de bolsas, sendo parte integrante da grade curricular como estágio automático.

Haveria, também, um ganho no desempenho da advocacia como um todo, pela parceria com a OAB para o ministério de aulas com foco na gestão de escritórios, captação de clientes, marketing pessoal, sustentação oral, compartilhamento de informações pelas vivências forenses experimentadas por causídicos expositores com um foco maior de preparo do profissional para o mercado de trabalho.

Estes interessantes elementos estão ausentes na grade curricular atual, tornando o curso de Direito, basicamente, um curso básico ou introdutório para os que almejam concursos, focado apenas em noções da teoria geral, abandonando por completo a formação prática dos futuros profissionais, sendo na advocacia mais perceptível a visualização dos reflexos dessas sequelas, pois não é raro se deparar com jovens advogados que não tiveram oportunidade de estagiar durante a graduação.

Atenta para as carências na área prática de diversos jovens advogados, a Ordem dos Advogados do Brasil Seccional de Pernambuco criou o programa de residência jurídica com vistas de fornecer melhores subsídios para atuação no mercado de trabalho do jovem profissional.[iv]

Sem adentrar nas nuances meritórias do projeto vanguardista da Ordem que é destinada para o público pós graduado, é notória a defasagem do ensino jurídico com a realidade do mercado de trabalho. Pensando nisso, é chegada a hora de uma reformulação da grade curricular com vistas a fornecer uma graduação mais aprofundada, que habilite melhor o futuro profissional para atuar sem contar unicamente com sua experiência empírica de aprendizagem, destinando a residência jurídica para atuações mais específicas, ou servindo como uma forma de reciclagem do profissional que quer voltar a atuar.

A própria instituição de ensino seria beneficiada pelos convênios com o Judiciário por meio de possíveis benefícios fiscais com a criação de acompanhamento das turmas por professores supervisores dos internos para formulação de avaliações e planejamento de outras cadeiras que agreguem na formação.

A presente reflexão não tem o intuito de esgotar o tema, servindo apenas como introdução para futuras análises aprofundadas sobre a viabilidade de uma possível proposta de reformulação da grade curricular do ensino jurídico no Brasil, com vistas a agregar na formação profissional e, de quebra, auxiliar na redução da morosidade judicial crônica.


Notas

[i] https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/

[ii] https://www.gazetadopovo.com.br/justica/numero-advogados-brasil-oab/

[iii] https://www.concursosfcc.com.br/concursos/trf5r317/boletim_trf5r317.pdf

[iv] https://www.esape.com.br/noticia/44-residencia-juridica-tem-inscricoes-abertas-ate-esta-segunda-23-09

Sobre o autor
Filipe Reis Caldas

Advogado Tributarista. Bacharel em Direito pela Faculdade Marista. Pós-graduado em Direito Público pela Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF. Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Membro da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/PE.

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