Revisão da inconstitucionalidade do critério do salário-de-contribuição para definição de baixa renda para fins do auxílio-reclusão

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Abordaremos a inconstitucionalidade da utilização do salário-de-contribuição para definição da situação de baixa renda para concessão do auxílio-reclusão, mesmo após a decisão do STF no RE 587.365, que não apreciou diretamente a matéria.

RESUMO

Abordaremos a inconstitucionalidade da utilização do salário-de-contribuição para definição da situação de baixa renda para concessão do auxílio-reclusão, mesmo após a decisão do STF no RE 587.365, que não apreciou diretamente a matéria.

Palavras-chave: auxílio-reclusão, renda do preso, inconstitucionalidade, salário-de-contribuição, renda mensal bruta

INTRODUÇÃO

Na presente pesquisa, apresentando uma discussão teórica com repercussões práticas, abordaremos mediante análise qualitativa a manutenção da inconstitucionalidade critério elegido pelo art. 116, do Decreto 3.048/1999, que limitou a concessão do benefício de auxílio-reclusão aos dependentes do segurado de baixa renda observando-se unicamente o último salário-de-contribuição em contraposição ao art. 13, da Emenda Constitucional nº 20/1998, que elegeu o critério da renda mensal bruta, bem como explicitaremos que o Supremo Tribunal Federal, na verdade, não declarou constitucional a norma neste ponto, permanecendo, pois, o vício de inconstitucionalidade da norma regulamentadora, no âmbito do Regime Geral de Previdência Social.

DA PREVIDÊNCIA SOCIAL

A Constituição Federal de 1988 criou um sistema chamado de Seguridade Social, o qual abarca as áreas da Saúde, Previdência e Assistência Social, a partir do seu art. 194, cujo fundamento é conferir “segurança” às pessoas que estão sob a guarda constitucional, pouco importando se são brasileiros nato, naturalizados ou estrangeiros.

Não é por menos que o termo “Seguridade” tem sua origem no espanhol como “Seguridad” e significa “Segurança”. Esse conceito, todavia, não se confunde com o seu modo coloquial mais usual de segurança pública, forças armadas etc. Aqui, o conceito é empregado no sentido de “segurança social”, de proteção à vida, à dignidade da pessoa humana, ao trabalho e, ao mesmo tempo, erradicando a pobreza e a marginalização.

Nesse passo, a Previdência Social é um subsistema do sistema Seguridade Social e que garante proteção não só ao cidadão inscrito/filiado à previdência, mas também à sua família, e subsistência em caso de eventos que não permitam a manutenção por conta própria, mediante oferta de benefícios e serviços, conferindo, pois, segurança e dignidade.

A fim de garantir a realização dos preceitos constitucionais, o constituinte criou direitos/benefícios em favor dos cidadãos.

Nesta seara, entre outros benefícios, criou-se a figura do auxílio-reclusão.

DO AUXÍLIO-RECLUSÃO

Atualmente, o auxílio-reclusão está previsto no inciso IV, do art. 201, da Constituição Federal de 1988 e é devido apenas aos dependentes dos segurados de baixa renda, mudança esta promovida pela EC 20/1998.

Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:  

(...)

 IV - salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; 

Todavia, em breve esforço histórico e conceitual, a proteção previdenciária pela reclusão estava prevista na parte final do inciso I, do art. 201, da CF/88, sem qualquer limitação, ou seja, era devido aos dependentes de todos os segurados, não apenas aos que fossem enquadrados como baixa renda.

Veja-se:

Art. 201. Os planos de previdência social, mediante contribuição, atenderão, nos termos da lei, a:

I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte, incluídos os resultantes de acidentes do trabalho, velhice e reclusão;

Apesar disso, há vozes que defendem, na verdade, a proteção sempre teria sido orientada àqueles de baixa de renda, por força da redação original do inciso II, do art. 201.

Art. 201.

II - ajuda à manutenção dos dependentes dos segurados de baixa renda;

A meu sentir, todavia, essa não é a melhor orientação, eis que esta norma parece refletir outro benefício, qual seja, o salário-família que é devido, mensalmente, ao segurado empregado, exceto o doméstico, e ao trabalhador avulso que tenham salário-de-contribuição inferior ou igual a R$ 360,00 (trezentos e sessenta reais), na proporção do respectivo número de filhos ou equiparados até 14 anos de idade.

Desse modo, é cristalino que inicialmente o benefício de auxílio-reclusão era devido indistintamente aos segurados do regime geral de previdência social, ainda que de renda mais alta.

Permaneceu assim até que a Emenda Constitucional nº 20, de 15/12/1998, sem vacatio legis, determinou em seu art. 13 que o auxílio-reclusão será concedido apenas àqueles que tenham renda bruta mensal igual ou inferior à época de R$ 360,00, que em 2020 equivale a R$ 1.425,56.

Art. 13 - Até que a lei discipline o acesso ao salário-família e auxílio-reclusão para os servidores, segurados e seus dependentes, esses benefícios serão concedidos apenas àqueles que tenham renda bruta mensal igual ou inferior a R$ 360,00 (trezentos e sessenta reais), que, até a publicação da lei, serão corrigidos pelos mesmos índices aplicados aos benefícios do regime geral de previdência social.

Além disso, ao passo que houve a publicação do referido art. 13, pela EC 20/98, também houve alteração de texto no art. 201, da Constituição, preceituando em seu inciso IV:

Art. 201. (...)

IV - Salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; 

Portanto, desde a edição da EC 20/1998, exige-se que haja uma situação de baixa renda para fins de concessão do benefício de auxílio-reclusão.

Apesar dessas mudanças, não houve alteração na redação do art. 80, da Lei 8.213/91, que trata do benefício de auxílio-reclusão, para que fosse adaptado a nova realidade constitucional que exigia uma situação de baixa renda para concessão do benefício e que fosse explicitada de quem seria a renda mensal bruta a ser observada: se dos segurados ou se dos dependentes.

Nesse ínterim, o Poder Executivo se adiantou e publicou o Dec. 3.048, de 6 de maio de 1999, estabelecendo em seu art. 116 que o auxílio-reclusão será devido, nas mesmas condições da pensão por morte, aos dependentes do segurado recolhido à prisão desde que o seu último salário-de-contribuição seja inferior ou igual ao valor de à época R$ 360,00.

Assim, por conta da mudança constitucional e ausência de autorização legislativa, surgiu o debate jurídico a saber se a renda bruta mensal a ser considerada para concessão do benefício é do preso ou a de seus dependentes, porque o art. 13, da EC 20/98, diz expressamente “esses benefícios serão concedidos apenas àqueles que tenham renda bruta mensal igual ou inferior...”.

Ora, pensaram os intérpretes: a renda a ser considerada é a dos dependentes, porque o benefício é concedido a eles. E assim alguns Tribunais passaram a decidir e a sumular a matéria. Até mesmo a Procuradoria-Geral da República se manifestou em parecer a favor da interpretação de se deve considerar a renda dos dependentes, e não a do segurado.

O embate fora, então, solucionado pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do RE 587.365, o qual declarou constitucional o art. 116, do Decreto 3.048/1999, eis que o dispositivo teria se amoldado aquilo que o próprio texto constitucional definiu e, portanto, não teria afrontado à constituição.

Segue ementa:

PREVIDENCIÁRIO. CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AUXÍLIO-RECLUSÃO. ART. 201, IV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. LIMITAÇÃO DO UNIVERSO DOS CONTEMPLADOS PELO AUXÍLIO-RECLUSÃO. BENEFÍCIO RESTRITO AOS SEGURADOS PRESOS DE BAIXA RENDA. RESTRIÇÃO INTRODUZIDA PELA EC 20/1998. SELETIVIDADE FUNDADA NA RENDA DO SEGURADO PRESO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. I - Segundo decorre do art. 201, IV, da Constituição, a renda do segurado preso é que a deve ser utilizada como parâmetro para a concessão do benefício e não a de seus dependentes. II - Tal compreensão se extrai da redação dada ao referido dispositivo pela EC 20/1998, que restringiu o universo daqueles alcançados pelo auxílio-reclusão, a qual adotou o critério da seletividade para apurar a efetiva necessidade dos beneficiários. III - Diante disso, o art. 116 do Decreto 3.048/1999 não padece do vício da inconstitucionalidade. IV - Recurso extraordinário conhecido e provido. (STF - Tribunal Pleno - RE 587365 / SC - em Repercussão Geral - Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, DJe-084 DIVULG 07-05-2009 PUBLIC 08-05-2009).

Todavia, analisando atentamente este julgamento, verifica-se que a norma foi declarada constitucional tão somente na linha de qual renda mensal bruta deveria ser observada para fins de concessão do auxílio-reclusão, não havendo o STF adentrado no mérito da escolha do critério utilizado no art. 116, do Decreto 3.048/1999, eleito pelo Poder Executivo.

Portanto, o art. 116, do Decreto 3.048/99, permanece com vício de inconstitucionalidade, tendo em vista que restringiu a concessão a concessão do benefício além do que fora permitido pelo art. 13, da EC nº 20/98, porque o primeiro restringiu a concessão do benefício aos dependentes dos segurados de baixa, cujo último salário-de-contribuição; já a emenda constitucional manteve um conceito amplo, estabelecendo que se deve conceder o benefício de auxílio-reclusão aos dependentes dos segurados de baixa renda, observando-se a renda mensal bruta igual ou inferior.

Ou seja, de um lado o decreto escolheu o critério do último salário-de-contribuição; e de outro, a emenda constitucional estabeleceu como critério a renda mensal bruta.

Ocorre que o conceito de último salário-de-contribuição difere do conceito de renda mensal bruta.

A lei nº 8.212/1991 conceitua o salário-de-contribuição, em síntese, como todo e qualquer rendimento para remunerar o trabalho. O professor Dr. Frederico Amado conceitua salário-de-contribuição como “parcela normalmente composta por verbas remuneratórias do trabalho, podendo também excepcionalmente formada por verbas indenizatórias do trabalho” a critério da lei.

Fica de fora, portanto, do conceito do salário-de-contribuição os rendimentos auferidos de aluguéis, ganhos de capital, lucros, dividendos que são considerados renda mensal, que são compreendidos no conceito de renda mensal bruta.

Do modo como está hoje, um microempreendedor individual dispensado de emitir nota fiscal poderia ser enquadrado como baixa renda para fins de concessão do auxílio-reclusão, mas não o trabalhador empregado de família miserável que, além do salário mínimo, percebe mensalmente adicional de hora extra e/ou insalubridade.

Com efeito, interessa as ponderações do Dr. Jonathan Grochovski da Silva, em artigo publicado no Jus:

“Renda e proventos de qualquer natureza (ou renda em sentido amplo ou simplesmente Renda) é conceito que está contido em normas constitucionais relativas ao imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza e que designa o acréscimo de valor patrimonial, representativo da obtenção de produto ou de simples aumento no valor do patrimônio apurado, em certo período de tempo, a partir da combinação de todos os fatos que contribuem para o acréscimo de valor do patrimônio (fatos-acréscimos) com certos fatos que, estando relacionados ao atendimento das necessidades vitais básicas ou à preservação da existência, com dignidade, tanto da própria pessoa quanto de sua família, contribuem para o decréscimo de valor do patrimônio (fatos-decréscimos)”.

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E finaliza:

“o conceito constitucional de renda tem incutido em seu amago reconhecimento da existência de receita, lucro, proveito, ganho, acréscimo patrimonial que ocorrem mediante o ingresso ou o auferimento de algo, a título oneroso, além de sua disponibilidade jurídica e/ou econômica”.

Diante disso, há de se reconhecer que, para análise da renda para fins de concessão do auxílio-reclusão, o critério deveria ser outro, qual seja, de análise da situação social renda mensal do instituidor e de sua família, em seu montante global.

Não é trabalho do Poder Judiciário escolher o melhor ou pior critério legal, mas cabe ao Poder Judiciário fazer juízo de adequação do critério eleito pela Administração, especialmente se tiver eleito critério que, sem autorização legal, restringe de sobremaneira os direitos fundamentais dos cidadãos ao arrepio da ordem jurídica.

Por essas razões, tem-se que o critério de baixa renda que leva em consideração apenas o último salário-de-contribuição, como estabelecido no art. 116, do Decreto nº 3.048/99, em que se é inconstitucional, não por conta do valor em si, mas sim porque se utiliza de um critério que não reflete adequadamente a situação de baixa renda/vulnerabilidade a que estão submetidos o instituidor e/ou sua família.

Em conclusão, o critério que melhor se amolda ao texto constitucional, aos fundamentos da previdência social e aos objetivos da República não é aquele que leva em conta unicamente os salários-de-contribuição do instituidor, mas sua realidade social.

Logo, para verificação da situação de baixa renda e da renda bruta mensal deveria se utilizar como parâmetro os cadastros das famílias nos programas sociais de transferência de renda, mantidos pelo Governo Federal, como já ocorre  nos benefícios assistenciais em que se analisa a situação de baixa renda através do Cadastro Único - CADUNICO, permitindo-se outros meios de prova como justificação administrativa ou judicial, perícia social por assistente social e outros.

Bibliografia

Amado, F. (2016). Curso de Direito e Processo Previdenciário. Salvador: Juspodium.

Constituição Federal de 1988. (02 de junho de 2020). Fonte: Planalto: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

Decreto 3.048/99. (02 de junho de 2020). Fonte: Planalto: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3048.htm

EC 20/1998. (15 de Dezembro de 1998). Fonte: Planalto: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc20.htm

Imprensa Nacional. (10 de Fevereiro de 2020). Fonte: Diário Oficial: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-3.659-de-10-de-fevereiro-de-2020-242573505

Lei 8.212/91. (02 de junho de 2020). Fonte: Planalto: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8212cons.htm

Lei 8.213/91. (02 de junho de 2020). Fonte: Planalto: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm

Silva, J. G. (02 de junho de 2020). O conceito constitucional de renda. Fonte: JUS: https://jus.com.br/artigos/56850/o-conceito-constitucional-de-renda

Sobre o autor
Paulo Henrique Gonçalves de Souza Silva

Pós-graduando em Direito Processual Civil Pós-graduando em Direito Previdenciário Especialista em Direito Previdenciário Advogado atuante em Fortaleza/CE Website: http://paulogoncalves.adv.br/

Informações sobre o texto

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