A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu provimento a recurso do Ministério Público Federal (MPF) para restabelecer a condenação de um fazendeiro do Pará pelo delito de submissão de trabalhadores a condição análoga à de escravo. O colegiado reafirmou a jurisprudência segundo a qual o crime pode ser configurado independentemente de haver restrição à liberdade de ir e vir dos trabalhadores.
Segundo o ministro Nefi Cordeiro, relator, nos termos da jurisprudência do STJ, a configuração do crime está condicionada à demonstração de submissão a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou condições degradantes – situações que foram comprovadas no processo em análise.
O Ministério do Trabalho e Emprego, o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Federal realizaram em 2006 uma ação conjunta para erradicar o trabalho degradante desenvolvido em uma fazenda de gado em Paragominas (PA).
A denúncia citou irregularidades como não fornecimento de água potável, péssimas condições de conforto e higiene, ausência de banheiros para os trabalhadores e alojamentos de palha e lona no meio da mata, sem qualquer proteção lateral.
Ao julgar a apelação contra a sentença condenatória, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF 1) concluiu que o delito não estava caracterizado, pois, apesar das violações à legislação trabalhista, não havia cerceamento à liberdade dos trabalhadores da fazenda. O TRF 1 absolveu o proprietário da acusação baseada no artigo 149 do Código Penal (CP).
O ministro Nefi Cordeiro explicou que a redação do artigo 149 do CP – bem como a jurisprudência do STJ – é clara no sentido de que o delito se configura independentemente de restrição à liberdade, e que este é um crime de ação múltipla e conteúdo variado.
A discussão se deu no REsp 1843150 .
Dita o artigo 149 do Código Penal:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 1º. Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 2º. A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
I - contra criança ou adolescente; (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
Tráfico de Pessoas (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
III - submetê-la a qualquer tipo de servidão; (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
IV - adoção ilegal; ou (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
V - exploração sexual. (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
§ 1º. A pena é aumentada de um terço até a metade se: (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las; (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência; (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional. (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
§ 2º. A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa. (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
Estamos diante de um crime de ação múltipla.
Reduzir significa subjulgar, transformar à força, impelir a uma situação danosa.
O tipo penal tem a finalidade de atacar o problema do trabalho escravo.
Na redação do artigo 149 do CP entende-se que não mais se exige, em todas as suas formas, a união de tipos penais como sequestro ou cárcere privado com maus tratos, bastando que se siga a orientação do preceito primário.
Assim para reduzir uma pessoa a condição análoga à de escravo pode bastar submetê-la a trabalhos forçados ou jornadas exaustivas, bem como condições degradantes de trabalho.
As situações descritas no artigo 149 do Código Penal são alternativas e não cumulativas.
Sujeito ativo é qualquer pessoa, mas o sujeito passivo é pessoa vinculada a uma relação de trabalho. Por essa razão muitos consideram que o tipo penal melhor estaria disposta nos crimes do Capítulo VI do Título I da parte especial, envolvendo delito que afronta a liberdade individual de ir e vir.
O que é escravo?
Escravo é aquele que é privado de sua liberdade.
Bem ensinou Souza Nucci (Código Penal Comentado, 8ª edição, pág. 678) que para a configuração do delito, não mais se necessita voltar ao passado, buscando no escravo a figura do acorrentado, que levava chibatadas. É suficiente para o comum que exista uma submissão fora do comum. Será o caso da pessoa que trabalha aprisionado em sua fazenda, com ou sem salário, que não tenha para onde vir.
Retorna-se à seguinte conclusão: o tipo penal envolve tanto a submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas como ainda com relação a restrição da liberdade de locomoção.
É crime comum, material, comissivo e excepcionalmente comissivo por omissão.
Fala-se no consentimento da vítima. Ora, ele pode afastar a configuração do delito, desde que a situação na qual se veja envolvido o ofendido não ofenda a ética social e os bons costumes.
O que é trabalho forçado?
É a atividade laborativa desenvolvida de maneira compulsória, sem voluntariedade.
Jornada forçada é o período de trabalho diário que foge às regras da legislação trabalhista, exaurindo o trabalhador, independente de pagamento de horas extras ou outo tipo de compensação.
O que são Condições degradantes?
Significa indignidade, rebaixamento ou aviltamento.
Mas a lei fala em restrição à liberdade de locomoção.
O tipo penal utilizou a forma alternativa. Basta que o empregador submeta o trabalhador a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas ou a trabalho degradante ou mesmo a uma situação de vinculo obrigatório com o local do trabalho, através do artifício de constituir o trabalhador em eterno devedor.
Mas o parágrafo primeiro daquele artigo fala em tipos penais autônomos.
No caso do inciso I, a conduta típica prevê a restrição a livre opção do trabalhador de se ausentar do lugar de trabalho, valendo-se do meio de transporte que deseje e seja aprto a tanto.
No caso do inciso II, fala-se num vigilância aparente – armada ou não- que retém o empregado no lugar do trabalho. Trata-se de caso de dolo especifico.
O inciso III fala em apossamento de documentos ou dos objetos pessoais do trabalhador de forma a impedir que ele deixe o local de trabalho, caracterizando a condição análoga a de escravo.
O crime é da competência da Justiça Federal, como se lê do RE 398041-PA, 30 de novembro de 2006.
Trago precedentes citados no julgado citado do STJ:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME DO ART. 149. DO CÓDIGO PENAL. RESTRIÇÃO À LIBERDADE DO TRABALHADOR NÃO É CONDIÇÃO ÚNICA DE SUBSUNÇÃO TÍPICA. TRATAMENTO SUBUMANO AO TRABALHADOR. CONDIÇÕES DEGRADANTES DE TRABALHO. FATO TÍPICO. SÚMULA N. 568/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. O artigo 149 do Código Penal dispõe que configura crime a conduta de "reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto". 2. O crime de redução a condição análoga à de escravo pode ocorrer independentemente da restrição à liberdade de locomoção do trabalhador, uma vez que esta é apenas uma das formas de cometimento do delito, mas não é a única. O referido tipo penal prevê outras condutas que podem ofender o bem juridicamente tutelado, isto é, a liberdade de o indivíduo ir, vir e se autodeterminar, dentre elas submeter o sujeito passivo do delito a condições degradantes de trabalho. Precedentes do STJ e STF. [...] 4. Agravo regimental não provido.
(AgRg no AREsp 1467766/PR, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 27/08/2019, DJe 10/09/2019.)
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. REITERAÇÃO DE RECURSO JÁ ANALISADO POR ESTA CORTE. PEDIDO DE EXTENSÃO DE ORDEM CONCEDIDA A CORRÉU PELO COLEGIADO DE ORIGEM. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA-PROCESSUAL ENTRE OS DENUNCIADOS. REQUISITOS DO ART. 580. DO CPP NÃO ATENDIDOS. AGRAVO DESPROVIDO. [...] 3. No art. 149. do Código Penal são previstas condutas alternativas que, isoladamente, subsumem-se ao crime de redução a condição análoga à de escravo, tratando-se, portanto, de crime plurissubsistente. Assim, tendo sido atribuído ao réu o verbo "sujeitar alguém a condições degradantes de trabalho", o simples fato de não ter sido descrito cerceamento do direito de locomoção dos trabalhares explorados não denota a ausência de tipicidade das condutas descritas na peça acusatória. 4. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no RHC 85.875/PI, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 24/04/2018, DJe 02/05/2018.)