A escassez de recursos de saúde e os protocolos de triagem de pacientes

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O cenário atual traz à tona a discussão sobre a alocação de recursos de saúde em esgotamento: O estabelecimento de saúde pode ser responsabilizado se adotar um protocolo de triagem que identifique quais pacientes teriam prioridade?

O cenário atual traz à tona a discussão sobre a alocação de recursos de saúde em esgotamento: O estabelecimento de saúde pode ser responsabilizado se adotar um protocolo de triagem que identifique quais pacientes teriam prioridade na utilização dos recursos escassos?

Entendemos que irá depender, principalmente, do estabelecimento comprovar o real esgotamento dos recursos na localidade, bem como das tentativas efetivas de aumentar a oferta. Serão necessários, portanto, comprovações de que a instituição, por meio da sua diretoria, atuou de forma efetiva para suprir os recursos em falta.

Sabendo-se que a COVID-19 se caracteriza por uma alta transmissibilidade e, consequentemente, alta demanda de serviços de saúde, algumas entidades preocuparam-se em elaborar recomendações sobre o tema, como a AMBI, ABRAMEDE, SBGG e ANCP, apresentando como condições essenciais para o início da aplicação de protocolos de triagem:

- O reconhecimento da compatibilidade do protocolo ao arcabouço bioético e legal brasileiro;

- A declaração de estado de emergência em saúde pública;

- Reconhecimento de que tenha havido esforços razoáveis em aumentar a oferta dos recursos em esgotamento;

- O envolvimento da direção técnica de cada hospital, com o objetivo de nomear os membros da comissão de triagem e garantir que o protocolo esteja alinhado com o sistema de regulação de leitos local/regional que permita encaminhamento de pacientes para outras unidades hospitalares com disponibilidade de leitos, incluindo a possibilidade de intercâmbio entre leitos públicos e privados;

- A realização, pela direção técnica e gestores públicos de saúde, locais e regionais, (a) da contínua monitoração das condições de esgotamento de recursos e (b) de esforços apropriados de ampliação de serviços que permitam a identificação da necessidade de início da vigência da triagem assim como a possibilidade de seu fim (tanto o início quanto o fim da vigência da triagem devem ser publicamente anunciados).

Observar esses requisitos iniciais evita o esgotamento completo e indiscriminado da oferta de produtos/serviços, beneficiando não somente os pacientes acometidos pelo novo coronavírus, mas igualmente os portadores de doenças não interligadas à pandemia; configurando-se, também, como mais uma comprovação de que a instituição de saúde buscou atuar de forma ética e legal.

Sendo inevitável a realização de triagem para a alocação dos recursos, entendemos que é prudente observar as recomendações dadas pelas entidades competentes, uma vez que a situação pandêmica carrega consigo o risco real de que “mesmo as medidas de contingenciamento não sejam suficientes para lidar com a demanda aumentada de pacientes graves.”[1]

Assim, os processos de alocação de recursos escassos devem ser registrados de forma objetiva e clara, inclusive com a finalidade de proteger os profissionais que tomam decisões tão difíceis – razão pela qual se faz necessário o apoio institucional e a utilização de recomendações formais, que sejam fundamentadas[2]:

- Pela Constituição Federal e os princípios da dignidade da pessoa humana, bem como do bem-estar geral sem nenhum tipo de discriminação (arts. 1º, inciso III e 3º, inciso IV). Lembramos que o que a Constituição preconiza é a vida digna e não qualquer forma de vida, bem como que a discriminação não pode existir em nenhuma etapa do atendimento do paciente, razão pela qual não pode haver critérios de triagem baseados tão somente em idade.

- Pelo Código Penal e a eutanásia: A eutanásia é considerada, atualmente, como crime de homicídio, sendo, no máximo, a depender do caso, enquadrada como homicídio privilegiado. Isso considerado, o protocolo de triagem não pode autorizar/prever nenhum tipo de ação/omissão dos profissionais da saúde que abreviem a vida do paciente.

- Pela Resolução 1.805/2006 do CFM[3], que trata sobre a autorização da ortotanásia e a obrigatoriedade dos cuidados paliativos: A Recomendação estabelece que “É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal”, bem como que: “O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social, espiritual, inclusive assegurando a ele o direito da alta hospitalar.” Ou seja, os protocolos devem sempre assegurar os cuidados paliativos para os doentes em fase terminal de enfermidade grave e incurável, bem como todas as medidas de limitação e suspensão de procedimentos e tratamentos em relação a esses doentes devem ser tomadas, na medida do possível, conforme a vontade do paciente ou de seu representante legal.

- Pelo Código de Ética Médica, como um todo, mas principalmente no que diz respeito à vedação da distanásia: Além do CEM vedar expressamente a eutanásia e autorizar a ortotanásia, veda também a distanásia, que é a prática de ações diagnósticas e terapêuticas inúteis ou obstinadas. Os protocolos de triagem devem conter vedação expressa à distanásia.

- Pela Resolução 1.195/2012[4] do CFM que trata sobre as Diretrizes Antecipadas de Vontade, que é o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. O incentivo ao paciente para que elabore, juntamente com um médico, o documento, ajuda muito nesse atual momento para assegurar que sua autonomia será respeitada, bem como para auxiliar os profissionais no momento de eventual escolha de alocação de recursos.

- Pela Resolução 2.156/ 2016[5] do CFM: Estabelece os critérios para indicação de admissão ou alta para pacientes em UTI, com o objetivo de orientar o fluxo de acolhimento de pacientes em situação de instabilidade clínica, diante da crônica oferta insuficiente de leitos de UTI.

- Pelas Recomendações da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB).

Com o emprego de tais normativas, os profissionais terão suporte bioético para a aplicação dos critérios de triagem de pacientes, resguardando a Instituição de Saúde de eventual questionamento de protocolo, desde que observe as seguintes diretrizes[6]:

- Salvar o maior número de vidas (sobrevida a curto prazo) e salvar o maior número de anos de vida (sobrevida a longo prazo): Diretrizes internacionais sobre princípios éticos em situações de desastres em massa e pandemias reconhecem a inevitável necessidade de processos de triagem, quando a oferta de serviços emergenciais é inferior à demanda de pacientes graves.

- Não utilizar avaliações de caráter subjetivo, como medidas de qualidade de vida, mas sim avaliações objetivas, com boa base de evidência e que possam ser aplicadas universalmente. Escores de gravidade tais como o Sequential Organ Failure Assessment (SOFA) e Acute Physiology And Chronic Health Evaluation (APACHE) são exemplos dessas medidas objetivas, sendo o SOFA a mais utilizada. No entanto, porque o SOFA também apresenta limitações, deve ser combinado com outros medidas.

- Aplicar os protocolos com transparência e clareza no processo de triagem, que deve ser aplicado a todos os pacientes, independente da doença apresentada (pandêmica ou não pandêmica).

- Manter a atenção ao paciente que não foi priorizado na alocação de recursos escassos, provendo os demais tratamentos não racionados, quando clinicamente apropriado e, também, desejado e consentido pelo paciente, incluindo a imperativa oferta de cuidados de conforto caso a morte seja inevitável.

- Abordar a família do paciente acerca das diretivas antecipadas de vontade expressadas pelo enfermo. O prontuário deve conter registros claros de todas as decisões tomadas entre equipe e o paciente.

- Formar sempre que possível uma equipe de triagem em cada unidade de atendimento, ou uma equipe regional com representantes nas unidades de atendimento. A AMIB recomenda que seja constituída por pelo menos três profissionais experientes (dois médicos e um profissional da equipe multidisciplinar) e preferencialmente deve ser formada também por um bioeticista e um representante da comunidade.

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- Reavaliar a evolução clínica dos pacientes internados em UTI, de maneira a evitar o prolongamento do morrer (distanásia) naqueles pacientes que não conseguiram obter a recuperação, mantendo a consistência do princípio de maximização de benefícios e garantindo a dignidade do paciente.

Observadas essas premissas, acreditamos que o profissional de saúde que atuar comprovadamente de acordo com o protocolo estabelecido no local não estará incorrendo em falta ética, tampouco poderá ser responsabilizado por negligência/imprudência, uma vez que a escassez de recursos de saúde é uma possibilidade palpável diante de uma situação pandêmica.

Entendemos, ainda, que todas as diretrizes estabelecidas nas Recomendações da AMBI, ABRAMEDE, SBGG e ANCP devem ser seguidas na elaboração de um protocolo, assim como as eventuais diretrizes estabelecidas pelos Conselhos de cada localidade, desde que estejam de acordo com o Código de Ética Médica, com os princípios bioéticos e legislações citadas no presente artigo. O fortalecimento das Comissões de Bioética das unidades hospitalares também pode contribuir com propostas específicas para realidades locais.

Nesse sentido, é essencial também que as instituições de saúde estejam atentas às Recomendações da Sociedade Brasileira de Bioética. Recentemente foi divulgada a Recomendação SBB 01/2020[7] que trata sobre a questão da falta de recursos na pandemia, estabelecendo critérios, que estão de acordo com os já mencionados, para a alocação de recursos, triagem e prescrição de medicamentos. Adicionalmente, reforça os riscos éticos que os hospitais podem enfrentar, a importância dos Comitês de Bioética das instituições e apresenta, inclusive, um fluxograma didático para a tomada de decisões em meio à escassez de recursos.

Por fim, apesar de tratarmos sobre a situação dramática possivelmente vivenciada por pacientes e seus familiares, não se pode olvidar da equipe médica multidisciplinar que executa o protocolo de triagem, necessitando de segurança sanitária, que inclui assegurar medidas para mitigação de exaustão física e mental, a disponibilização e preparo para o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e o acesso tempestivo a testes diagnósticos para o SARS-CoV-2.

Os múltiplos valores utilizados na aplicação de protocolos de triagem ganham significação quando respaldados na legislação, na ética e na bioética. Garantir o emprego do princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, seja em tempos normais, seja em tempos pandêmicos, viabiliza uma alocação justa dos recursos escassos, garantindo, também, a integridade e segurança dos profissionais de saúde, que representam forças fundamentais para a resolução da questão.

 

Autoras: Ana Beatriz Nieto Martins (OAB/SP 356.287) e Erika Evangelista Dantas (OAB/SP 434.502), sócias do escritório de advocacia Dantas & Martins Advogadas Associadas, especializado em Direito da Saúde (www.dantasemartins.com.br; Instagram: @adv.dantasemartins).

 


[1] Recomendações da AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), ABRAMEDE (Associação Brasileira de Medicina de Emergência), SBGG (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia) e ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos) de alocação de recursos em esgotamento durante a pandemia por COVID-19, disponível em: https://www.amib.org.br/fileadmin/user_upload/amib/2020/abril/24/VJS01_maio_-_Versa__o_2_-_Protocolo_AMIB_de_alocac__a__o_de_recursos_em_esgotamento_durante_a_pandemia_por_COVID.pdf

[2] Também retirados das Recomendações da AMIB, ABRAMEDE, SBGG e ANCP.

[3] Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2006/1805

[4] Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1995_2012.pdf

[5] Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2016/2156

[6] Também retiradas das Recomendações da AMIB, ABRAMEDE, SBGG e ANCP.

[7] Disponível em: http://www.sbbioetica.org.br/Noticia/754/RECOMENDACAO-SBB-N-012020-aspectos-eticos-no-enfrentamento-da-COVID-19

Sobre as autoras
Ana Beatriz Nieto Martins

Advogada (OAB/SP 356.287), sócia no escritório Dantas & Martins Advogadas Associadas, voltado o atendimento de profissionais da saúde, realizando diagnóstico de riscos jurídicos e elaborando condutas preventivas que permitam uma atuação segura e tranquila.

Erika Evangelista Dantas

Advogada (OAB/SP 434.502), sócia do escritório de advocacia Dantas & Martins Advogadas Associadas, especializado em direito da saúde.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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