O indeferimento do pedido de interceptação telefônica (e ambiental) desafia qual recurso?

03/06/2020 às 19:54
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O pedido de interceptação foi indeferido. O que fazer?

O indeferimento do pedido de interceptação telefônica (e ambiental) desafia qual recurso?

 

Um tema pouco explorado na doutrina, e de inegável repercussão prática, consiste em saber qual recurso (ou ação autônoma de impugnação) desafia a decisão judicial que indefere o pedido de interceptação telefônica ou ambiental. Vencido em seu pleito, como deve agir processualmente o Ministério Público?[1]

 

À míngua de previsão legal expressa, formaram-se quatro correntes acerca da tormentosa questão. Objetivamente, são elas:

 

1ª corrente: Mandado de segurança. Com didática ímpar, Paulo Rangel leciona que:

 

“a medida judicial cabível é o mandado de segurança, pois há a necessidade de defender o direito líquido e certo do Ministério Público de persecução penal nos exatos limites previstos no art. 129, incs. I, VII e VIII da CRFB.

A impetração do mandado de segurança é recomendável não só por entendermos que a hipótese se amolda aos seus requisitos, mas também, para evitarmos o inconveniente da ausência de contrarrazões recursais, caso o intérprete entenda que a medida judicial cabível seja o recurso de apelação com fulcro no art. 593, II do CPP. Pois, neste caso, seria um contra senso chamarmos o investigado ou acusado para contra arrazoar um recurso de uma decisão que foi prolatada inaudita altera pars, pois se houver concessão da segurança o segredo de justiça continua mantido em relação ao investigado ou acusado.”[2]

 

2ª corrente: Correição parcial. Esse entendimento já foi adotado pelo Tribunal de Justiça do Paraná (e de Goiás), nos seguintes termos: “Tendo em vista as particularidades do caso em análise, mormente à ausência de previsão legal de recurso específico, posto que a Lei nº 9.296/96 é omissa na questão referente ao recurso cabível quando do indeferimento do pedido de interceptação telefônica e, considerando-se ainda, que a correição pode ser admitida como sucedâneo recursal, impõe-se o conhecimento do pedido correcional.”[3]

 

3ª corrente: Apelação, nos termos do art. 593, inc. II, do CPP. É como pensam Eugênio Pacelli e Douglas Fischer,[4] e, também, como entendia o saudoso prof. Damásio de Jesus.[5] Discordamos desse posicionamento em razão de a decisão indeferitória não se tratar de sentença definitiva, nem terminativa de mérito, nem interlocutória mista, mas de decisão meramente interlocutória, que não encerra o procedimento nem uma fase dele. Ademais, é cediço que a apelação tem tramitação lenta e pressupõe notificação da parte contrária para oferecimento de contrarrazões, o que fulmina a sigilosidade do feito e o caráter inaudita altera pars da medida.[6]

 

 

4ª corrente: Recurso em sentido estrito. Em alguns tribunais de justiça é possível encontrar o entendimento segundo o qual já seria “pacificado que da decisão que indefere requerimento de interceptação telefônica é possível interpor recurso em sentido estrito.”[7] Aliás, até mesmo o Superior Tribunal de Justiça já decidiu ser “passível de impugnação, por recurso em sentido estrito, decisão interlocutória de primeiro grau que indefere requerimento de interceptação telefônica, para que se verifique, no caso concreto, a necessidade dessa providência processual.”[8]

 

A meu ver, esse posicionamento tem dois inconvenientes, a saber: o primeiro, a notificação da parte contrária (CPP, arts. 588 e 589), que acarretaria a ineficácia absoluta da medida; o segundo, o fato de não haver previsão no taxativo[9] rol do art. 581 do CPP.

 

Em minha visão, portanto, o ideal é o manejo do mandado de segurança, justamente a fim de evitar as contrarrazões (comum à correição parcial, à apelação e ao recurso em sentido estrito) pelo sujeito da investigação.[10] Seria mesmo esdrúxula a notificação da parte contrária (o investigado) para impugnar as razões ministeriais. Ciente das intenções investigativas do Ministério Público, obviamente, o investigado, antes de responder ao recurso, tomaria cautelas para não ser interceptado. 

 

Uma situação assim deporia contra a inteligência do ordenamento jurídico. Não é por outro motivo que, ao apreciar providências cautelares, não deverá o magistrado intimar a parte contrária para se manifestar a respeito do pedido se o caso for urgente ou houver perigo de ineficácia da medida(CPP, art. 282, § 3.º).

 

De mais a mais, o direito não pode ser interpretado de modo a gerar situações absurdas e conclusões despropositadas. Afinal, na lavra de Carlos Maximiliano, “commodissimum est, id accipi, quo res de qua agitur, magis valeat quam pereat: ‘prefira-se a inteligência dos textos que torne viável o seu objetivo, ao invés da que os reduza à inutilidade’.”[11]

 

Seja como for, a grande controvérsia acerca do tema abre a possiblidade para aplicação do princípio da fungibilidade[12] (também chamado de teoria do recurso indiferente ou teoria do tanto vale), haja vista que, “salvo a hipótese de má-fé, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro” (CPP, art. 579).

 

Por fim, gize-se que a decisão que defere o pedido de interceptação também pode ser impugnada por mandado de segurança, em casos excepcionais, quando o ato judicial apresentar-se eivado de ilegalidade, teratologia ou abuso de poder.[13]

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[1] Não há espaço em nosso ordenamento jurídico para o manejo de recurso (ou ação autônoma de impugnação) pela polícia judiciária. Mesmo em caso derepresentação policial, não sendo concedida a medida, eventual recurso deve ser interposto exclusivamente pelo Ministério Público (seja na fase do inquéritopolicial, seja no curso da instrução processual penal).

 

[2] RANGEL, Paulo. Breves considerações sobre a Lei 9296/96 (interceptação telefônica). Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 41, 1 maio 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/195>. Acesso em: 11 dez. 2015. É também como pensa Ada Pellegrini Grinover (Apud JESUS, Damásio Evangelistade, Interceptação de comunicações telefônicasnotas à Lei n. 9.296/96, RT, 735/458). E ainda: CERVINI, Raúl; GOMES, Luiz Flávio. Interceptação TelefônicaLei 9.296, de 24.07.96. São Paulo: RT, 1997, p. 198.

 

[3] TJPR, Correição Parcial n. 2609336, j. 01/07/2004. O mesmo entendimento foi trilhado pelo TJGO ao apreciar a Correição Parcial/Reclamação (Autos n. 3212890720118090000 [201193212898]) proposta pelo MPGO contra decisão de magistrado de 1º grau que indeferiu pedido de interceptação ambiental.

 

[4] “Decisões definitivas ou com força de definitivas que não sejam atacáveis por recurso em sentido estrito (inciso II): Já o inciso II do art. 593 do CPP prevê apossibilidade de apelação contra as decisões definitivas ou com força de definitivas proferidas pelo juiz singular e que não se enquadre nas hipóteseselencadas no art. 581, CPP. Nessas situações, não há se falar, tecnicamente, em sentença. [...] Aí se enquadram inúmeras hipóteses, podendo-se elencar asmais correntes as decisões que: [...] d) indeferem buscas e apreensões, quebras de sigilos e interceptações telefônicas.” (FISCHER, Douglas; PACELLI, Eugênio. Comentários ao código de processo penal e sua jurisprudência. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 1212).

 

[5] JESUS, Damásio Evangelista de. Interceptação de comunicações telefônicasnotas à Lei n. 9.296/96, RT, 735/458.

 

[6] Cf. CAPEZ, Fernando. Curso de direito penallegislação penal especialVol. 4. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 330.

 

[7] TJMS, Agravo Regimental nº 1401829-36.2014.8.12.0000, rel. Manoel Mendes Carli, Seção Criminal, j. 25.03.2014.

 

[8] STJ, REsp n. 1013427-RO, rel. min. Felix Fischer, 5ª Turma, unânime, j. 03.02.2009.

 

[9] “O artigo 581, do Código de Processo Penal, apresenta rol taxativo, não comportando interpretação analógica de modo a permitir a utilização de recurso emsentido estrito quando a lei não o prevê para dada situação concreta.” (STJ, RMS 46.036/PE, rel. min. Gurgel de Faria, 5ª Turma, DJe 15/12/2014)

 

[10] Não se desconhece que a súmula 701 do STF preconiza que “no mandado de segurança impetrado pelo Ministério Público contra decisão proferida em processo penal, é obrigatória a citação do réu como litisconsorte passivo”. Calha observar, entretanto, que referido enunciado exige a citação como litisconsorte passivo apenas do réu (o que pressupõe a existência de ação penal), e não do investigado. E, na prática, como é cediço, os pedidos de interceptação ocorrem, na esmagadora maioria das vezes (para não dizer em todas), na fase investigatória (e não no decorrer do processo penal), onde réu não há. Em suma: o mandado de segurança interposto contra decisão proferida por juízo de 1.º grau, no curso de uma investigação (antes, pois, de iniciar-se o processo penal), não rende ensejo à aplicação da súmula em testilha.

[11] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 21.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 227.

 

[12] “A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça já se firmou no sentido de que é possível a aplicação do princípio da fungibilidade quando háinterposição de recurso diverso do devido, considerando-se a ausência de má-fé e, obviamente, a tempestividade.” (STJ, AgRg nos EDcl no Agravo em REsp nº375.390/BA, rel. min. Laurita Vaz, 5ª Turma, unânime, DJe 26.02.2014). Ainda: STF, Emb. Decl. no RE com Agravo nº 881579/RS, rel. Dias Toffoli, 2ª Turma, unânime, DJe 02.10.2015.

 

[13] Cf. STJ, AgRg no RMS nº 33.705/DF, rel. Gurgel de Faria, 5ª Turma do STJ, DJe 06.10.2015. Nesse sentido: “MANDADO DE SEGURANÇA. INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS AUTORIZADAS. CONSTATAÇÃO DE CONTRAVENÇÃO PENAL. HIPÓTESES LEGAIS DE CABIMENTO. Admite-se omanejo do mandado de segurança para desconstituição de ato judicial, reconhecidamente absurdo ou teratológico, desde que a decisão impugnada sejamanifestamente ilegal ou que dela advenha perigo de dano grave e de difícil reparação para o impetrante.” (TJGO, MS 154962-04.2013.8.09.0000, rel. des. Edison Miguel da Silva Jr., Seção Criminal, DJe 1407 de 14/10/2013).

Sobre o autor
Vinícius Marçal

Promotor de Justiça-GO. Professor do G7 Jurídico e do VipJus. Ex-delegado de Polícia do Distrito Federal. Foi examinador de diversos concursos públicos de ingresso na carreira do Ministério Público. Autor de obras jurídicas.

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