As ofensas proferidas pelo Presidente da Fundação Palmares e o crime de responsabilidade

04/06/2020 às 00:37
Leia nesta página:

Os insultos feitos por Sérgio Camargo, Presidente da Fundação Palmares, contra o movimento negro e Zumbi dos Palmares, pode configurar crime de responsabilidade.

INTRODUÇÃO

Recentemente, o Presidente da Fundação Palmares proferiu ofensas ao movimento negro e a Zumbi dos Palmares, líder quilombola o qual é homenageado pela Fundação Palmares em seu nome. Sérgio Camargo também criticou o dia da consciência negra, dizendo que não iria a data. Em razão disso, um grupo de deputados e a instituição Educafro protocolaram um pedido no Ministério Público Federal para a investigação das falas de Sérgio Camargo. Os parlamentares a instituição defendem que o Presidente da Fundação praticou os crimes de discriminação, desvio de finalidade, abuso de poder e improbidade administrativa, o que culminaria em um crime de responsabilidade. Portanto, é necessária a observação da legislação vigente para a reflexão sobre a possível prática de crime em razão das condutas apontadas.

1 - Da Fundação Palmares

Em 22 de Agosto de 1988, o Governo Federal criou a Fundação Palmares [1], no intuito de promover e preservar os valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira. Assim sendo, a instituição trabalha para promover uma política cultural igualitária e inclusiva, que contribua para a valorização da história e das manifestações culturais e artísticas negras brasileiras como patrimônios nacionais. É função do instituto, de acordo com o § 4º do art. 3º do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, a emissão de certidão às comunidades quilombolas e sua inscrição em cadastro geral.

2 - Dos insultos à Fundação Palmares

No dia 02/06/2020, em áudios divulgados pelo Jornal Estado de São Paulo, o Presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, em uma reunião, proferiu ofensas ao movimento negro, o chamando de escória maldita, além também de ter ofendido Zumbi dos Palmares, símbolo da resistência negra na época da escravidão, considerado herói nacional [2]. O encontro tratava do desaparecimento de um aparelho celular, quando questionado sobre quem poderia ter pego o aparelho, Sérgio Camargo respondeu:

"Qualquer um. Eu exonerei três diretores nossos assim que voltei. Qualquer um deles pode ter feito isso. Quem poderia? Alguém que quer me prejudicar, invadindo esse prédio aqui pra me espancar. Quem poderia ter feito isso? Invadindo com a ajuda de funcionários daqui. O movimento negro, os vagabundos do movimento negro, essa escória maldita".

Sobre Zumbi dos Palmares, o Presidente da instituição comentou:

"Não tenho que admirar Zumbi dos Palmares, que pra mim era um filho da puta que escravizava pretos. Não tenho que apoiar Dia da Consciência Negra. Aqui não vai ter, zero – aqui vai ser zero pra [Dia da] Consciência Negra. Quando eu cheguei aqui, tinha eventos até no Amapá, tinha show de pagode com dinheiro da Consciência Negra. Aí, tem que mandar um cara lá, pra viajar, se hospedar, pra fiscalizar... Que palhaçada é essa?".

3 - Do crime de incitação ao crime e preconceito ou discriminação

A Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997, altera os artigos 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Portanto, o artigo 20 da referida legislação passou a vigorar como:

"Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa. “ [3]

Assim, é configurada também indução e incitação do crime de descriminação, ficando exposto que não só que pratica o crime de modo direto pode ser enquadrado, mas também quem realiza de modo a incitar a discriminação. Além disso, a prática de racismo é tratata como crime imprescritível pela Constituição Federal:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; “ [4]

4 - Do desvio de finalidade

O desvio de finalidade pode ser conceituado como a prática de um ato diverso do previsto, dessa maneira, o agente público devera praticar seus atos para fins do interesse público e não distante a sua função. É destacado pela doutrinadora Odete Medauar que:

“Os poderes atribuídos aos agentes visam ao atendimento do interesse público pertinente à matéria em que esses agentes atuam. Não se destinam tais poderes à satisfação de interesses pessoais, de grupos, de partidos, nem são instrumentos de represália, vingança ou favorecimento próprio ou alheio. Exemplo: usar o poder de expropriar em represália a declarações formuladas na imprensa por um administrado. “ [5]

Logo, é preceituado na Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965, Lei que regula a ação popular, o ato de desvio de finalidade:

“Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de:

e) desvio de finalidade.

Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas:

e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência. “ [6]

5 - Do abuso de poder

O princípio da legalidade no Poder Público determina que o agente público só poderá realizar atos que a Lei determina, estando esse totalmente subordinado à legalidade e em caso que desobedeça a norma vigente, poderá incorrer em abuso de poder. O abuso se manifesta de duas formas, em excesso de poder e no desvio de finalidade, como preceitua Licínia Rossi:

“a) DO EXCESSO DE PODER:

Se o agente público invadir atribuições de outro agente, ou, ainda, exercer atividades que a lei não lhe conferiu, cometerá abuso de poder na modalidade EXCESSO DE PODER.

Haverá excesso de poder quando o delegado de polícia, além de prender aquele que cometeu ilícito penal, tortura o preso, conferindo-lhe tratamento desumano ou degradante.

Configurado o abuso de poder, essa situação ficará sujeita a controle, tanto por parte da própria Administração Pública (no exercício de sua autotutela – princípio da autotutela) quanto por parte do Poder Judiciário (ex.: mandado de segurança, nos termos do art. 5º, LXIX, do texto constitucional), por se tratar de ilegalidade.

b) DO DESVIO DE FINALIDADE:

Haverá abuso de poder na modalidade desvio de finalidade quando houver prática de ato com fim diverso daquele que a lei permitiu.

Ex. 1: desapropriação realizada com o intuito de beneficiar alguém (violação, dentre outros, do princípio da impessoalidade);

Ex. 2: fraude na licitação para prejudicar o inimigo ou para beneficiar um amigo;

Ex. 3: o administrador remove um servidor público não com a finalidade de atender a necessidade do serviço, mas com o intuito de aplicar-lhe uma penalidade por infração funcional sem que essa penalidade conste da lista das possíveis penalidades aplicáveis ao caso.  “  [7]

Com esses exemplos, é possível entender que qualquer prática feita pelo agente público que for diversa da lei, configura abuso de poder. É possível dizer então, que os atos praticados que não estejam em conformidade com a função, configuram abuso de poder por desvio de finalidade, conforme é destacado pela doutrinadora:

“Assim, finalidade é o elemento pelo qual o ato administrativo deve sempre estar dirigido ao atendimento do interesse público. A não observância do interesse público (finalidade do ato administrativo) constitui ABUSO DE PODER, na modalidade DESVIO DE FINALIDADE, desde que haja a notória intenção do agente público (animus) de deliberadamente ofender o objetivo público (elemento subjetivo necessário para a caracterização do desvio). Também sua inobservância intencional configura violação a diversos princípios que regem a atuação da Administração Pública, tais como o da impessoalidade e o da moralidade “

6 - Da improbidade administrativa

O crime de improbidade trata sobre a conduta do servidor público na prática de crimes que violam a moralidade, para benefício próprio. A Constituição Federal trata do crime de improbidade administrativa em seu artigo 37, 4°:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: 

§ 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. ” [8]

A Lei prevista que trata sobre os crimes contra a administração pública é a Lei n° 8.428/1992. Dessa forma, existem dois tipos de sujeitos no crime de improbidade, o sujeito passivo e o sujeito ativo. O sujeito ativo é o agente que pratica a conduta delituosa. O sujeito passivo é a entidade vítima do ato de improbidade, conforme a referida Lei destaca em seu artigo 1°:

“Art. 1º Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual, serão punidos na forma desta lei. ”

Dessa forma, os principais sujeitos passivos do crime de improbidade são:

“a) Administração Direta: União, Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios.

b) Administração Indireta: Autarquias, Fundações Públicas, Associações Públicas, Empresas Públicas, Sociedades de Economia Mista.

c) Pessoas para cuja criação ou custeio o erário haja contribuído (criação) ou contribua (custeio) com mais de 50% do patrimônio ou receita anual. Exemplificando: o Poder Público doou um imóvel que equivale a 80% por cento do patrimônio da entidade. Nesse caso, a ação de improbidade administrativa atingirá TODO o prejuízo ao erário causado.

d) Empresa incorporada ao patrimônio público; [9]

Assim, conforme é especificado na jurisprudência:

STJ, RESP 1.319.515 – 21-9-2012 “[...] A improbidade administrativa é a caracterização atribuída pela Lei n. 8.429/92 a determinadas condutas praticadas por qualquer agente público e também por particulares contra “a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual” (art. 1º). [...] Pela Ação Civil Pública por ato de improbidade administrativa busca-se, além da punição do agente, o ressarcimento do dano causado ao patrimônio público, bem como a reversão dos produtos obtidos com o proveito do ato ímprobo. [...]” [10]

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Assim sendo, resta clara a responsabilidade do agente público pelos crimes de improbidade e em quais situações ocorrem. Em razão disso, toda conduta que viole os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, estará sujeita as observâncias legais.

7 - Dos crimes de responsabilidade

Os agentes políticos podem cometer crime de responsabilidade, que estão previstos na legislação Lei n° 1.079/50, em que podem ser passíveis de impeachment, desse modo, se encontram na lista de agentes políticos os Chefes do Executivo federal e estadual, Ministros de Estado, Ministros do STF, Procurador-Geral da República, Secretários de Estado. No caso do Presidente da República, o artigo 4° da referida Lei afirma que:

“Art. 4º São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra:

I - A existência da União:

II - O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados;

III - O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:

IV - A segurança interna do país:

V - A probidade na administração;

VI - A lei orçamentária;

VII - A guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos;

VIII - O cumprimento das decisões judiciárias” [11]

A probidade na administração trata do princípio da probidade administrativa, que é pautado na moralidade e honestidade. Dessa maneira, a falta de probidade acarreta a improbidade do agente público, podendo esse sofrer a perda de seus direitos políticos e do cargo que ocupa.

8 - Dos pedidos de investigação por deputados e entidades

8.1 - Da fundação Educafro

A Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes entrou com representação no Ministério Público Federal contra Sérgio Camargo [12], Presidente da Fundação Palmares, por crime de racismo e ofensa à legislação, devido às ofensas proferidas por Sérgio Camargo à Fundação Palmares. Para a instituição, Camargo estabeleceu critério "flagrantemente negativo às religiões de matriz africana". Com isso, a entidade considera que ele incorreu no artigo 20 da Constituição que veda "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". A instituição ainda diz que na afirmação de que as religiões de matriz africana não irão receber 'um centavo' da Fundação, Sérgio Camargo incorre na discriminação odiosa, violando o Estatuto da Igualdade Racial e a Constituição da República.

8.2 - Do pedido feito por deputados

Um grupo de deputados pleiteou ao Ministério Público Federal a abertura de um inquérito para investigar a fala do presidente da Fundação Palmares [13], Sérgio Camargo, na qual ele chama o movimento negro de “escória maldita”. Dentre os deputados que participaram do pedido estão Áurea Carolina (PSOL-MG), Benedita da Silva (PT-RJ), Talíria Petrone (PSOL-RJ), Bira do Pindaré (PSB-MA), Damião Feliciano (PDT-PB), David Miranda (PSOL-RJ) e Orlando Silva (PCdoB-SP). No inquérito, os parlamentares avaliam que Sérgio Camargo promove o desvirtuamento dos objetivos legais da fundação que comanda, criada para promover e preservar a cultura negra, configurando desvio de finalidade, abuso de poder e improbidade administrativa.

9 - Conclusão

É necessário que o Ministério Público Federal investigue as condutas praticadas por Sérgio Camargo, pois a Fundação Palmares representa não só a história do líder quilombola Zumbi, mas de toda a população negra, que necessita de um amparo diante do sofrimento que lhes foi proporcionado no passado. Logo, o pleito dos deputados e da Educafro é imperioso para a averiguação se houve prática delituosa dos crimes de discriminação, desvio de finalidade, abuso de poder e improbidade administrativa por parte de Sérgio Camargo.

Assim, ofensas proferidas pelo Presidente da Fundação Palmares se tornam gravíssimas, pelo simples fato de poderem se configurar como os crimes expostos. A incitação ao crime de preconceito resta clara quanto o estímulo a prática do crime. Além disso, os relatados crimes contra a Administração Pública são, de modo simultâneo, interligados, pelo motivo do desvio de finalidade configurar abuso de poder, ato que configura a improbidade administrativa e de maneira consequente, um possível crime de responsabilidade, que ocasionaria um processo de impeachment.

 

REFERÊNCIAS

[1] http://www.palmares.gov.br/?page_id=95

[2]https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/02/sergio-camargo-presidente-da-fundacao-palmares-chama-movimento-negro-de-escoria-maldita-em-reuniao.ghtml

[3]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9459.htm#:~:text=%22Art.,a%20tr%C3%AAs%20anos%20e%20multa.

[4] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[5] (Direito Administrativo moderno/ Odete Medauar. 21. ed. – Belo Horizonte: Fórum, 2018. Pág 150).

[6]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4717.htm#:~:text=e)%20o%20desvio%20de%20finalidade,das%20entidades%20mencionadas%20no%20art.

[7] (Manual de direito administrativo / Licinia Rossi. – 6. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2020. Pág 199).

[8] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[9] (Manual De Direito Administrativo - 6ª Ed. 2020. Autor: RossiLicínia, Pág 904).

[10] (STJ, REsp 1.319.515 ES, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, rel. p/ Acórdão Min. Mauro Campbell Marques, 1ª S., j. 22-8-2012, DJe 21-9-2012).

[11] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1079.htm

[12]https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,educafro-entra-com-representacao-contra-camargo-no-mpf-entidade-prepara-ato-em-brasilia,70003323342

[13]https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,parlamentares-recorrem-ao-mpf-contra-sergio-camargo,70003323968

Sobre o autor
Pedro Vitor Serodio de Abreu

LL.M. em Direito Econômico Europeu, Comércio Exterior e Investimento pela Universität des Saarlandes. Legal Assistant na MarketVector Indexes.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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