UM DESPACHO ABSURDO

04/06/2020 às 13:57
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O ARTIGO DISCUTE SOBRE RECENTE DESPACHO DO MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE QUE TRATOU DA EXPLORAÇÃO DA MATA ATLÂNTICA.

UM DESPACHO ABSURDO

 

I – O FATO

 

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, revogou despacho assinado por ele em abril que poderia anular infrações ambientais e anistiar desmatadores da Mata Atlântica. A revogação está publicada no Diário Oficial da União (DOU) desta quinta-feira, dia 4 de junho de 2020.  

O despacho invalidado reconhecia como consolidadas as áreas de preservação permanentes (APPs) desmatadas e ocupadas até julho de 2008 em propriedades rurais na Mata Atlântica. Na prática, o ato regularizava invasões feitas no bioma até esse período e, com isso, margens de rios e topos de morro devastados para a prática de agricultura e pecuária, por exemplo, não precisariam mais ser recuperados com vegetação nativa.

A determinação anterior de Salles causou a reação de ambientalistas e outros setores da sociedade. Ainda em maio, o Ministério Público Federal entrou com ação civil pública pedindo a suspensão do Despacho MMA 4.410/2020 que, segundo os procuradores, "aniquila significativa parcela da proteção de vegetação nativa do bioma Mata Atlântica, proporciona uma fragilização ainda maior da segurança hídrica em tempos de mudanças climáticas e de notórios, recorrentes e cada vez mais intensos episódios de escassez hídrica e racionamento do fornecimento de água potável". A ação foi assinada também pela Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público do Meio Ambiente (Abrampa) e a organização não governamental SOS Mata Atlântica.

Discute-se sobre a aplicação da Lei da Mata Atlântica e o novo Código Florestal.

Para a presidente da Comissão Nacional de Direito Ambiental da OAB, Marina Gadelha, a Lei da Mata Atlântica deve prevalecer sobre o Código Florestal, mesmo sendo mais antiga que este. “Toda lei específica é direcionada, é uma norma especial. E o entendimento da OAB já é antigo e uniforme neste sentido, pois em abril de 2017 o Conselho Pleno da entidade aprovou o apoio à Proposta de Emenda Constitucional nº 5 de 2009, que inclui os biomas Pampa, Cerrado e Caatinga no rol do parágrafo 4º do artigo 225 da Constituição Federal. O propósito de tal inclusão é, exatamente, permitir que esses biomas possam contar com uma legislação específica, como ocorre com a Mata Atlântica”, aponta.

O Código Florestal apresentou o conceito de “área rural consolidada”, caracterizada por área de imóvel rural com ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008, com edificações, benfeitorias ou atividades agrossilvipastoris, admitida, neste último caso, a adoção do regime de pousio, aplicável a todos os imóveis rurais do país.

O bioma Mata Atlântica, por sua vez, é regulamentado pela Lei nº 11.428/2006 e pelo Decreto Federal nº 6.660/2008, que dispõem sobre a utilização e proteção da vegetação nativa.

Sustenta-se que o entendimento de que no Bioma Mata Atlântica não se aplicaria o conceito de áreas consolidadas apresentada no novo código florestal (Lei nº 12.651/12), tendo em vista a existência de regulamentação considerada mais específica ao caso.

A Lei de Mata Atlântica é mais restritiva que o Código Florestal.

No entanto, após o regular trâmite no IBAMA, ICMBIO e MAPA, a Advocacia Geral da União-AGU revisou tal posicionamento e aprovou o PARECER 0115/2019/DECOR/CGU/AGU, afastando o entendimento posto na mencionada Nota nº 52/2017/CONJURMMA/CGU/AGU de que o regime transitório de que cuida o Código Florestal representaria um retrocesso ambiental.

O referido Parecer nº 0115/2019/DECOR/CGU/AGU, em ligeira síntese, concluiu que a Lei da Mata Atlântica ( Lei nº 11.428/2006) prevê explicitamente a aplicação do Código Florestal ao referido bioma, defendendo o entendimento de que os regramentos especiais preservam o disciplinamento da ocupação rural e urbana, de forma a harmonizar o crescimento econômico com a manutenção do equilíbrio ecológico.

Do mesmo modo, o Parecer sustenta que a especial proteção e utilização do Bioma Mata Atlântica, previstas na legislação específica (Lei nº 11.428/2006), se voltam para a preservação da vegetação nativa primária e secundária em estado de regeneração, não interferindo em áreas já ocupadas com agricultura, cidades, pastagens e florestas plantadas ou outras áreas desprovidas de vegetação nativa, conforme disposto no artigo 1º, § 1º, do Decreto nº 6.660, de 2008.

II – O BIOMA MATA ATLÂNTICA

O que é a Mata Atlântica?

A Mata Atlântica toma a costa do país e atinge também áreas da Argentina e do Paraguai. Originalmente abrangia 1.309.736 km² no território brasileiro —o país tem 8.516.000 km². Restam 8,5 % de remanescentes florestais acima de 100 hectares. Somados os fragmentos de floresta nativa acima de 3 hectares, existem atualmente 12,5% do território original. A Mata Atlântica é um dos 34 pontos críticos mundiais para conservação da biodiversidade e parte de sua área é considerada reserva da biosfera pela Unesco.

A Mata Atlântica é um bioma de floresta tropical que abrange a costa leste, sudeste e sul do Brasil, leste do Paraguai e a província de Misiones, na Argentina.

Trata-se de um conjunto de tipologias florestais formadas por árvores altas(de 25 a 35 metros), que revestem as encostas e as planícies fortemente influenciadas pela regulação térmica e pelo regime de chuvas abundantes e da proximidade do Oceano Atlântico. Essa mata se vê numa estreita faixa costeira que vai do Rio Grande do Norte até o Rio Grande do Sul.

Contribuíram para o alto grau de destruição da Mata Atlântica, hoje reduzida a 8% de sua configuração original, a expansão da indústria, da agricultura, do turismo e da urbanização de modo não sustentável, causando a supressão da biodiversidade em vastas áreas, com a possível perda de espécies conhecidas e ainda não conhecidas pela ciência, influindo na quantidade e qualidade da água de rios e mananciais, diminuindo a fertilidade do solo, bem como afetando características do microclima nesses delicados ecossistemas e contribuindo com o problema do aquecimento global.

A fauna que habita a Mata Atlântica é de uma riqueza inestimável.

Mico-leão-dourado, onça-pintada, bicho-preguiça, capivara. Estes são alguns dos mais conhecidos animais que vivem na Mata Atlântica. Mas a fauna do bioma onde estão as principais cidades brasileiras é bem mais abrangente do que nossa memória pode conceber. São, por exemplo, 261 espécies conhecidas de mamíferos. Isto significa que, se acrescentássemos à nossa lista inicial o tamanduá-bandeira, o tatu-peludo , a jaguatirica, e o cachorro-do-mato, ainda faltariam 252 mamíferos para completar o total de espécies dessa classe na Mata Atlântica.

O mesmo acontece com os pássaros, répteis, anfíbios e peixes. A garça, o tiê-sangue, o tucano, as araras, os beija-flores e periquitos. A jararaca, o jacaré-do-papo-amarelo, a cobra-coral, o sapo-cururu, a perereca-verde e a rã-de-vidro. Ou peixes conhecidos como o dourado, o pacu e a traíra.

Mas, ainda esses nomes estão longe de representar as 1020 espécies de pássaros, 197 de répteis, 340 de anfíbios e 350 de peixes que são conhecidos até hoje no bioma. Sem falar de insetos e demais invertebrados e das espécies que ainda nem foram descobertas pela ciência e que podem estar escondidas bem naquele trecho intacto de floresta que você admira quando vai para o litoral.

Outro número impressionante da fauna da Mata Atlântica se refere ao endemismo, ou seja, as espécies que só existem em ambientes específicos dentro desse bioma. Das 1711 espécies de vertebrados que vivem ali, 700 são endêmicas, sendo 55 espécies de mamíferos, 188 de aves, 60 de répteis, 90 de anfíbios e 133 de peixes. Os números impressionantes são um dos indicadores desse bioma como o de maior biodiversidade na face da Terra.

É impressionante a formação florestal da região.

A Mata Atlântica é formada por um conjunto de formações florestais (Florestas: Ombrófila Densa, Ombrófila Mista, Estacional Semidecidual, Estacional Decidual e Ombrófila Aberta) e ecossistemas associados como as restingas, manguezais e campos de altitude, que se estendiam originalmente por aproximadamente 1.300.000 km2 em 17 estados do território brasileiro. Hoje, os remanescentes de vegetação nativa estão reduzidos a cerca de 22% de sua cobertura original e encontram-se em diferentes estágios de regeneração. Apenas cerca de 7% estão bem conservados em fragmentos acima de 100 hectares.

Mesmo reduzida e muito fragmentada, estima-se que, na Mata Atlântica, existam cerca de 20.000 espécies vegetais (cerca de 35% das espécies existentes no Brasil), incluindo diversas espécies endêmicas e ameaçadas de extinção. Essa riqueza é maior que a de alguns continentes (17.000 espécies na América do Norte e 12.500 na Europa) e por isso a região da Mata Atlântica é altamente prioritária para a conservação da biodiversidade mundial.

Em relação à fauna, os levantamentos já realizados indicam que a Mata Atlântica abriga 849 espécies de aves, 370 espécies de anfíbios, 200 espécies de répteis, 270 de mamíferos e cerca de 350 espécies de peixes. Veja-se o caso do Parque Estadual do Rio Doce, localizado na mesorregião do Vale do Rio Doce, na Microrregião de Ipatinga, envolvendo diversas localidades, tais como Timóteo, Marliéria, Dionísio, Córrego Novo.

O Parque Estadual do Rio Doce, criado em 14 de julho de 1944, situado em Minas Gerais, Brasil, se localiza na Região Metropolitana do Vale do Aço, entre os municípios de Timóteo, Marliéria e Dionísio e é uma das principais regiões de proteção à Biodiversidade do Estado, com a maior área contínua de Mata Atlântica preservada em Minas Gerais.

Restam hoje 160 mil km² de mata atlântica, um quase nada perto dos 3,2 milhões de km² de floresta amazônica. Nesse contexto, ser desfalcada em 290 km² num ano é preocupante, e tanto mais por causa da reversão na tendência anterior de queda no desmatamento.

Santa Cruz de Cabrália, Belmonte e Porto Seguro responderam por metade da devastação baiana, que deu um salto de 207%.

IV – A NORMA ESPECIAL E O CONFLITO DE LEIS

Ora, tem-se o artigo 2º, da Lei de introdução às Normas do Direito Brasileiro:  

Art. 2º - Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

§ 1º - A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

§ 2º - A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.

NO caso a Lei da Mata Atlântica, pela Lei nº 11.428/2006, é anterior ao novo Código Florestal, Lei 12.651, de 25 de maio de 2012.

A Lei da Mata Atlântica é norma especial.

Na lição de Eduardo Espínola(Sistema do direito civil brasileiro, pág. 88) leis especiais são as que limitam as disposições das leis comuns em relação a uma certa classe de pessoas, de coisas ou de relações jurídicas.

Há sem dúvida um conflito de leis.

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Que critério deverá ser utilizado?

Norberto Bobbio(Teoria do Ordenamento Jurídico, tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, 4ª edição, pág. 108) falou sobre o conflito entre o critério da especialidade e o cronológico.

Ensinou Norberto Bobbio que esse conflito tem lugar quando uma norma anterior-especial é incompatível com a norma posterior-geral. Tem-se conflito porque, aplicando o critério da especialidade, dá-se a preponderância à primeira norma, aplicando-se o critério cronológico, dá-se a preferência a segunda.

Aplica-se aqui a regra geral: Lex posterior generalis non derrogat priori speciali. Com base nessa regra, o conflito entre critério de especialidade e o critério cronológico deve ser resolvido em favor do primeiro; a lei geral sucessiva não tira do caminho a lei especial precedente. O que leva a uma posterior exceção ao principio lex posterior derogat priori: esse princípio falha, não só quando a lex posterior é inferior, mas também quando é generalis(e a lex prior é specialis). Essa regra, por outro lado, deve  ser tomada com uma certa cautela, e tem um valor menos decisivo que o da regra anterior. Dir-se-á que a lex specialis é menos forte que a lex superior, e que, portanto, a sua vitória sobre a lex posterior é mais contrastada. Mas seria necessário para fazer tais afirmações a aplicação de ampla casuística, como explicou Bobbio.

De toda sorte, no conflito entre a lei especial, a Lei da Mata Atlântica, e a lei geral, o novo Código Florestal, deve vigorar a lei especial.

V – O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

Ademais, recomenda-se a aplicação do princípio da precaução ao caso.

O princípio da precaução busca se antecipar e prevenir a ocorrência de prejuízos ao meio ambiente. Destina-se a toda a sociedade, inclusive Governo e legisladores, para que sejam instituídas medidas e políticas destinadas a prevenir a poluição.

Por fim, ressalte-se que um dos principais instrumentos do princípio da precaução é o estudo prévio de impacto ambiental, expressamente referido no inciso IV do artigo 225 da Constituição Federal, por meio do qual devem ser estimados os riscos que tragam as instalações de obras ou atividades potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente. O fato desse importante instrumento ser obrigatoriamente público demonstra que o princípio da precaução é afeto não só a determinadas camadas sociais, mas a toda sociedade, conforme dito anteriormente.

Na matéria, duas convenções internacionais assinadas, ratificadas e promulgadas pelo Brasil inseriram o chamado princípio da precaução. 

A Convenção da Diversidade Biológica, assinada no Rio de Janeiro em 5 de junho de 1992, ratificada pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo n. 2, de 3 de fevereiro de 1994, tendo entrado em vigor para o Brasil em 29 de maio de 1994, já dizia: "Observando-se também que, quando exista ameça de sensivel redução ou perda de diversidade biológica, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar medidas para evitar ou minimizar essa ameaça". 

A Convenção - Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, diz em seu artigo 3º: "Princípios - 3 . As partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar, minimizar as causas de mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos. Quando surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar essas medidas, levando em conta que as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possivel (Decreto n. 2.652, de 1.7.1998, promulgando a Convenção, DOU 2.7.1998). 

Na Convenção da Diversidade Biológica, basta haver ameaça de sensível redução de diversidade biológica ou ameaça sensível de perda da diversidade biológica. Não se exigiu que a ameaça fosse de dano sério ou irreversível como na Convenção de Mudança do Clima. A exigência fundamental para a conservação da diversidade biológica e a conservação in situ dos ecossistemas e dos habitats naturais e a manutenção de populações viáveis de espécies no seu meio natural. 

A Convenção da Mudança do Clima preconiza que as medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos. A Convenção da Diversidade Biológica acerca dos custos das medidas. 

As duas Convenções apontam, da mesma forma, as finalidades do emprego do princípio da precaução; evitar ou minimizar os danos ao meio ambiente. Do mesmo modo, as duas Convenções são aplicáveis quando houver incerteza científica diante da ameaça de redução ou de perda da diversidade  biológica ou ameaça de danos causados de mudança no clima. 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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