Os mecanismos tributários de apoio às empresas do Simples Nacional para o enfrentamento da pandemia da COVID-19

05/06/2020 às 22:42
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A desoneração tributária com relação ao ICMS devido por substituição tributária e do diferencial de alíquota para as empresas enquadradas no Simples Nacional, como ajuda para o enfrentamento do impacto econômico da pandemia da COVID-19.

Para quem transita no mundo jurídico tributário sabe do desinteresse da comunidade jurídica para o enfrentamento e debate das  questões tributárias relacionadas às pessoas jurídicas enquadradas no Simples Nacional, com tratamento diferenciado nos termos da Lei Complementar nº 123/2006, com as alterações subsequentes, em cumprimento ao que determina o art. 146, III, “d”, da Constituição Federal. Os congressos, simpósios ou centros de estudos, não destinam painéis de debates que tenham por objeto temas de interesse dos microempresários, ou se fazem, é de forma passageira, sem profundidade. Talvez esta  omissão decorra da exígua expressão econômica da microempresa, considerada de forma isolada, não aguçando o interesse dos profissionais, segundo o critério econômico, para um maior empenho no estudo de suas demandas.

Contudo, este segmento empresarial é de extrema relevância na economia brasileira. Segundo o Sebrae, as micro e pequenas empresas são responsáveis por 53,4% do PIB do comércio; na indústria e nos serviços, esta participação é de 22,5% e 36,3%, respectivamente. São 13 milhões de empresas optantes pelo Simples Nacional. [i]

As reflexões deste artigo se limitarão à abordagem do tratamento tributário diferenciado para as micro e pequenas empresas,  mas enfocando pontos sensíveis que devem merecer uma atenção especial para o enfrentamento das dificuldades econômicas geradas pela pandemia da COVID-19, tragédia mundial que não poupou o Brasil, atingindo de forma mais agressiva a frágil estrutura financeira deste segmento empresarial de pequeno porte.   

Apesar de muito alarde e propaganda oficial, até o momento as ações de ajuda financeira às empresas do Simples Nacional dos governos federal, estadual e municipal, cada um no âmbito de sua competência,  são discretas e de quase nenhuma eficácia efetiva na suavização dos impactos nefastos da pandemia.

As iniciativas de ajuda se resumem basicamente em adiamento de recolhimentos dos tributos devidos e o oferecimento de créditos bancários, considerando o escasso ou a inexistência do capital de giro que são pontos de fragilidade deste segmento empresarial.

Estes mecanismos de socorro são estéreis no seu resultado prático. A postergação de recolhimento de tributo não sensibiliza ninguém, pois que resulta numa sobrecarga tributária no futuro, quando o contribuinte deverá recolher o tributo normal do mês corrente, mais aquele objeto da prorrogação. Por certo, o  contribuinte lúcido e previdente, sequer se utilizará deste expediente de falsa ajuda. A postergação no recolhimento não representa renúncia fiscal a favor do microempresário e contribui muito pouco para a sua sobrevivência.  

Na linha de concessão de créditos a reclamação tem sido generalizada entre aqueles que deveriam ser beneficiados, principalmente com relação às exigências de garantias do empréstimo, exigência claramente excludente, considerando que o microempresário não possui estas garantias exigidas pelos estabelecimentos bancários.  

Enfim, por mais que se reconheça a necessidade de apoio financeiro a este setor de empreendedores, para atravessar e sobreviver a esta crise sanitária e  econômica como consequência, pouco ou nada se ofereceu até o momento.

Diante deste cenário de expectativas frustradas, pretende-se, neste artigo, sugerir medidas, no âmbito tributário, de efetiva repercussão na manutenção da solidez financeira das empresas enquadradas no Simples Nacional, garantindo a continuidade dos negócios e a manutenção dos  empregos e a renda. 

O primeiro ponto seria desonerar o microempresário do recolhimento do ICMS devido pelo regime de substituição tributária (ICMS-ST).

Com se sabe, às operações ou prestações sujeitas ao regime de substituição tributária não se aplica o regime tributário do Simples Nacional, e a incidência do ICMS deve ocorrer pelo regime normal de tributação (art. 13, § 1º, XIII, “a”, da LC 123/06). Ou seja, com relação a estas operações ou prestações, o microempresário opera no regime normal de tributação, como se empresa normal fosse. Dependendo da proporção em que estas operações e prestações  representar do total das vendas, o benefício tributário do Simples Nacional será relativizado, podendo ser quase neutralizado. O fato é que esta excludente do Simples Nacional mutila os próprios objetivos do regime simplificado de tributação e padece de coerência. Os Estados, diante da necessidade de arrecadar, poderiam buscar outra fonte de arrecadação e deixar incólume o regime simplificado de tributação do Simples Nacional. Este sistema híbrido quebra o princípio da isonomia, na medida em que, o microempresário que operar com mercadorias regidas pelo regime de substituição tributária, suporta um gravame tributário maior que aquele que não operar com operações regidas por esta sistemática de tributação. O regime simplificado é mais ou menos benéfico dependendo das mercadorias ou serviços do objeto social da microempresa.

A proposição de desoneração do recolhimento do ICMS-ST pelas empresas do Simples Nacional seria um instrumento de ajuda efetiva para a sua sobrevivência, diante dos efeitos econômicos catastróficos da pandemia da COVID-19. Esta ajuda não seria só na questão financeira, mas na simplificação do regime tributário, atendendo aos propósitos deste instituto de incentivo ao pequeno empreendedor. Convém registrar que o sistema de substituição tributária carrega um grau de complexidade incompatível com os fundamentos do Simples Nacional.   

Outro ponto sensível aos interesses dos microempresários, com relação à questão tributária, diz respeito ao diferencial de alíquota do ICMS  que incide sobre as  operações interestaduais com destino ao consumo final (DIFAL), nos termos do art. 155, § 2º, VII e VIII da CF/88. Esta modalidade de incidência do ICMS é outra excludente do regime simplificado do Simples Nacional e deve ser recolhido segundo as regras do regime normal de tributação, na conformidade  ao que dispõe o art. 13, § 1º,  X, XIII, ‘g”, da LC 123/06, exigência que também relativiza a política incentivada para o microempresário.

Este diferencial de alíquota onera a empresa do Simples Nacional de duas maneiras: a) na condição de adquirente e b) como fornecedora das mercadorias. Lembrando que em ambas as situações as operações devem ser interestaduais e as mercadorias destinadas ao consumo final.  

Na primeira situação, a empresa enquadrada no Simples Nacional deve recolher o diferencial de alíquota ao receber mercadorias de outro Estado e Distrito Federal e as destinar ao consumo final. Esta hipótese de incidência está prevista na disposição legal acima mencionada, exigência revestida, portanto, da legalidade formal. O STF foi acionado para examinar a  constitucionalidade desta cobrança e a matéria recebeu a estatura de repercussão geral (RE 970821/RS, Tema 517). Até o fechamento deste artigo, o julgamento ainda estava pendente.  Embora não se pretenda aprofundar na análise do controle da legalidade neste artigo, não  parecem ser plausíveis os argumentos que sustentam a inconstitucionalidade desta incidência tributária. Todavia, esta cobrança fora do regime simplificado,  representa um desvio de finalidade da política incentivadora que se pretendeu estabelecer com o estatuto do Simples Nacional.

Na segunda forma o diferencial de alíquota é cobrado da empresa enquadrada no Simples Nacional na operação de venda de mercadoria para destinatário não contribuinte do ICMS de outro Estado ou Distrito Federal. Esta incidência não tem amparo na disposição legal acima mencionada ( Art. 13, § 1º, XIII, “g”, da LC 123/06), a qual somente se refere às operações de aquisições de outros Estados e do Distrito Federal, não albergando as operações de venda.

Tentam os entes tributantes dar a esta cobrança o verniz de legalidade com base na cláusula nova do Convênio CONFAZ nº 93/15.[ii]  No entanto, não é o convênio veículo normativo apto a tratar de hipótese de incidência tributária. Cabe à lei complementar dispor sobre definição de fatos geradores de impostos (art. 146, III, “a”, CF). E a Lei Complementar nº 123/06, ao tratar do diferencial de alíquota, somente menciona as operações de aquisições de mercadorias, não as de venda. Esta cláusula já foi suspensa por medida liminar na ADIN 5.463/DF, mas sem julgamento do mérito até esta data. A expectativa é pela confirmação da decisão liminar. Para resolver esta questão poderia o STF pautar a matéria para julgamento e assim contribuir para esta desoneração tributária. Por outro lado, poderiam  os entes conveniados revogar a cláusula nova do mencionado convênio, tornado a ADIN sem objeto. 

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Com relação à norma competente para promover as desonerações propostas, o ICMS devido por substituição tributária e o diferencial de alíquota com relação às aquisições de mercadorias de outro Estado e Distrito Federal, destinadas ao consumo, necessário seria uma alteração na Lei Complementar nº 123/06. Já com relação ao diferencial de alíquota decorrente das operações de venda promovidas por empresas que operam no Simples Nacional, bastaria uma alteração no Convênio CONFAZ nº 93/15, retirando a já mencionada cláusula nona.  

Estas são medidas no âmbito tributário que poderiam beneficiar de fato as empresas que operam no regime do Simples Nacional, proporcionando um vigor financeiro para atravessar a crise da pandemia e  em continuidade, ajustar o estatuto da microempresa aos reais objetivos planejados, visando manter um ambiente propício para o empreendedorismo, com a criação de emprego e renda.  

Evidentemente, os Estados não poderiam abrir mão destes recursos decorrentes das desonerações propostas, para não desestabilizar o plano orçamentário formalizado. Para a superação deste impasse, poderia a União promover uma forma de ressarcimento (a exemplo do que está estabelecido na LC 87/96, com relação às imunidades nas exportações), dos valores destas renúncias fiscais específicas durante a pandemia, compensação que poderia permanecer, no futuro,  até que os Estados e o Distrito Federal pudessem buscar uma nova fonte de receita tributária substitutiva, talvez onerando os setores de maior capacidade contributiva.

Os ajustes propostos não só mitigariam a carga tributária suportada pela empresa do Simples nacional, mas também suavizariam a complexidade do cumprimento das obrigações tributárias, lembrando que o regime vocacionado originariamente para simplificar o sistema tributário para  as empresas de pequeno porte, de simples nada tem.

 


[i] Disponível em: https://cfa.org.br/ancoras-da-economia. Acesso em 26/05/2020.

[ii] Convênio 93 de 17 de setembro de 2015

 

Dispõe sobre os procedimentos a serem observados nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final não contribuinte do ICMS, localizado em outra unidade federada.

[...]

Cláusula nona: Aplicam-se as disposições deste convênio aos contribuintes optantes pelo Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte - Simples Nacional, instituído pela Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, em relação ao imposto devido à unidade federada de destino.

Sobre o autor
Deonísio Koch

Advogado tributarista, ex-conselheiro titular do Tribunal Administrativo Tributário de Santa Catarina – TAT, ex-auditor fiscal e professor de Direito Tributário, Tributos Estaduais e Processo Administrativo Tributário. e-mail: [email protected] ou [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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