MUTATIO MUTANDIS

Correlação da sentença em crimes complexos não aditados

05/06/2020 às 23:15

Resumo:


  • A correlação entre a acusação e a sentença é um princípio fundamental no processo penal, evitando decisões ultra ou extra petita.

  • A emendatio libelli permite ao juiz atribuir uma definição jurídica diferente ao fato descrito na denúncia, sem modificar a descrição do fato.

  • A mutatio libelli ocorre quando novos fatos relevantes surgem durante o processo, exigindo que o Ministério Público adite a denúncia para adequar a imputação, sob pena de o juiz condenar o réu pelo crime inicialmente imputado.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O que deve/pode o juiz fazer se, no curso do processo penal, fatos novos surgirem a ensejar mudança da imputação, e o Ministério Público, instado a se manifestar, não aditar a denuncia

 

INTRODUÇÃO

                        Tendo como tema a correlação entre a imputação penal feita pelo Ministério Público (MP) na denúncia e o dispositivo da sentença proferida pelo juiz ao cabo do processo, pretende-se neste gizado, mesmo que perfunctoriamente, adentrar humildemente eventual discussão sobre a possibilidade de o magistrado condenar o réu pelo delito originariamente imputado quando, durante a instrução, vêm a proscênio fatos novos que agravam a conduta imputada a ponto de caracterizar tipo penal complexo, mas o membro do Parquet, apesar de intimado, não adita a denúncia.

                        Exemplificando: O MP denuncia o réu por furto. No decorrer do processo, apura-se que a subtração da coisa alheia móvel se deu mediante grave ameaça. Ou seja, foi roubo e, não, furto. O juiz intima o órgão ministerial para aditar a denúncia, conforme exigência do art. 384, caput, do Código de Processo Penal (CPP), a fim de promover a devida mutatio libelli. Todavia, o promotor não adita a denúncia.

                        Nesse caso, o que fazer? Deve o magistrado de primeiro grau obrigatoriamente absolver o réu ou poderia, em caso de restarem comprovadas a materialidade e a autoria, condenar o réu no furto, visto que se trata de crime complexo o roubo, composto in casu por um delito de furto (art. 155 do Código Penal) mais um de ameaça (art. 147 do Código Penal) – presumindo-se, portanto, as elementares e as circunstâncias do furto inteiramente abrangidas pelo crime de roubo (art. 157 do Código Penal) e, consequentemente, já exaustivamente discutidas no processo -?

                        De antemão, vislumbra-se não só possível, mas, mais ainda, compulsório, que, nesses casos, ou seja, em caso de necessária mutatio libelli por se haver verificado em instrução ter havido crime complexo, porém não aditada pelo Ministério Público, só resta ao juiz, em respeito ao princípio da correlação entre acusação e sentença, desconsiderar as elementares não aditadas e, pelo mesmo motivo, condenar o réu pela conduta imputada e provada.

 

DA CORRELAÇÃO ENTRE ACUSAÇÃO E SENTENÇA

                        O princípio da correlação, também chamado de princípio da congruência, impõe que a sentença (penal) não poderá condenar o acusado por fatos não narrados na peça inicial acusatória (denúncia ou queixa) sob pena de se incorrer em decisão ultra ou extra petita.

                        Tratando do tema, o Código de Processo Penal traz no Título DA SENTENÇA, em seus artigos 383 e 384, respectivamente, os institutos da emendatio libelli e da mutatio libelli. In verbis:

Art. 383. O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave.

§ 1o Se, em conseqüência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei.

§ 2o Tratando-se de infração da competência de outro juízo, a este serão encaminhados os autos.

Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente.

1o Não procedendo o órgão do Ministério Público ao aditamento, aplica-se o art. 28 deste Código.

§ 2o Ouvido o defensor do acusado no prazo de 5 (cinco) dias e admitido o aditamento, o juiz, a requerimento de qualquer das partes, designará dia e hora para continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado, realização de debates e julgamento.

§ 3o Aplicam-se as disposições dos §§ 1  e 2o do art. 383 ao caput deste artigo.

§ 4o Havendo aditamento, cada parte poderá arrolar até 3 (três) testemunhas, no prazo de 5 (cinco) dias, ficando o juiz, na sentença, adstrito aos termos do aditamento.

§ 5o Não recebido o aditamento, o processo prosseguirá.

 

                        Tanto a emendatio libelli (art. 383, CPP) quanto a mutatio libelli (art. 384, CPP) constituem, nas palavras de Pacelli, providências peculiares do processo penal direcionadas à adequação do fato imputado – ou imputável - ao direito aplicável (PACELLI, 2009, p. 525, in fine). É da dogmática do processo penal que o juiz decidirá conforme os fatos imputados e provados: da mihi factum, dabo tibi ius (Dá-me os fatos, que te darei o direito).

                        Nessa senda, como bem esclarece Gustavo Badaró, o juiz penal não é chamado a decidir sobre uma demanda, mas a estabelecer a verdade a respeito de um fato (BADARO, 2019). Para tanto, faz-se mister a adoção de um sistema acusatório de persecução penal que, ao mesmo tempo em que respeite a ampla defesa e o efetivo contraditório, seja capaz de, conforme Ada Pellegrini Grinover, prestar a melhor tutela jurisdicional possível sem ofender a inércia da jurisdição (GRINOVER, 2014, p. 32).

                        Nesse sentido, apesar de não se confundir com o acusador, como no sistema inquisitório, o órgão julgador permanece com a margem de manobra necessária para decidir o mais próximo possível da verdade real. Aqui impende frisar que a busca do Estado pela verdade real ocorrida no fato criminoso em apuração é atualmente criticada pela doutrina mais garantista, mas, induz-se, erroneamente, a uma, talvez influenciada por magistrados de fato parciais, e, a outra, talvez por pensar a verdade real como um fim jamais atingível e não como realmente o é: um caminho a ser seguido para se chegar o mais próximo possível da verdade real, a fim de se evitar a dúvida no momento da decisão. Se, ainda assim, após toda a instrução, restar dúvida, não será por desídia do juiz, e, até por isso, deverá ser decidida em favor do réu (in dubio pro reo).

                        O Direito deve servir à verdade e não o oposto. A busca pela verdade real é uma busca, ou seja, regra de instrução – mesmo sabendo-se que a verdade real jamais será alcançada, ela merece ser sempre buscada.

                        Por sua vez, o in dubio pro reo é princípio de julgamento – que, por vezes, a defesa alega erroneamente em instrução. Se dúvida sanável houver durante a instrução, ela deve ser sanada, porque ao Estado interessa tanto a condenação do culpado quanto a absolvição do inocente (PACELLI, 2009, p. 526). Afinal, para isso é o Direito: pacificação social com garantia individual.

                        Assim considerando, quando nos deparamos com a necessidade de uma emendatio libelli no processo (art. 383, CPP), muita discussão quanto ao direito material não há, visto que se trata de mera correção da inicial para adequar o fato narrado ao tipo penal previsto na lei (PACELLI, 2009, p. 526). O magistrado apenas “corrige” a tipificação feita pelo Parquet, sem que haja qualquer modificação dos fatos trazidos a julgamento. V. g., é dizer o fato narrado não constitui calúnia, mas, sim, difamação.

                        Todavia, o mesmo não se pode dizer da mutatio libelli. A mutatio perfaz alteração substancial da acusação em razão de fatos novos relevantes surgidos ao longo do processo. Ou seja, na mutatio libelli a nova definição será do próprio fato (PACELLI, 2009, p. 529). É o que ocorre quando, no curso da instrução de crime de furto vem à baila testemunhos de que, na verdade, a subtração da coisa se deu com grave ameaça à vítima, caracterizando, pois, não mais mero furto, mas, sim, roubo.

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                        Nesse caso, deverá o Ministério Público aditar a exordial acusatória a fim de adequar a imputação aos (novos) fatos em proscênio. Mas o que acontece se, apesar de intimado, o MP resta inerte e não adita a denúncia?

                        Especificamente em casos de crimes complexos (crimes que encerram dois ou mais tipos em uma única descrição legal (MIRABETE, 2001, p. 135)), como é o caso do roubo dado em exemplo, que é o somatório de furto (art. 155, CP) com ameaça (art. 147, CP), nada mais consentâneo com a função do Direito, como pincelada acima, do que, mantido o não aditamento mesmo após a aplicação do art. 28 do CPP, como obriga o parágrafo primeiro do art. 384 do CPP, o juiz, se for o caso de condenação, condene o réu pelo crime-parcela inicialmente imputado, no caso em exemplo, o furto, visto que o fato imputado e provado encontra-se INTEGRALMENTE contido no crime-soma (o crime complexo), no caso o roubo, que não poderá ser imputado ao réu em respeito à separação de funções imposta pelo sistema acusatório petrificado pela Constituição/88.

                        Capitaneando tal entendimento, BADARÓ admite até mesmo que, no caso de uma imputação de roubo, uma vez que não reste provada a violência, poderá o acusado ser condenado por furto (BADARÓ, 2019). E assim o faz porque o conceito de fato penal não se confunde com o conceito de fato para o processo penal.

                        O autor esclarece que o fato processual penal é fato naturalístico, efetivamente ocorrido, enquanto o fato penal, ou seja, a concepção do direito penal, é uma situação hipotética de um tipo penal. Dessarte, o fato penal não é fato concretamente realizado pelo autor, mas meramente introduzido no processo por meio da imputação gizada pelo órgão do Ministério Público.

                        Fazendo um paralelo com o Direito Tributário, o fato penal inicialmente visualizado pelo Parquet seria tão somente hipótese de incidência, enquanto o fato processual penal consubstanciaria o fato gerador efetivamente realizado pelo autor e introduzido no processo. Nessa toada, o juiz trabalha com o fato gerador e não com hipóteses.

 

CONCLUSÃO

                        Como bem expõe Gustavo Badaró:

O juiz não pode considerar um fato novo ou um fato diverso do fato imputado, mas também não pode deixar de julgar todo o fato imputado. A sentença não pode ser ultra ou extra petita, mas também não se admite a sentença citra petita (BADARÓ, 2019)

 

 

REFERÊNCIAS

BADARÓ, Gustavo. Correlação entre acusação e sentença. Capítulo 4: Correção entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

 

BRASIL. Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.

 

BRASIL. Decreto-Lei n° 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal.

 

GRINOVER, Ada P. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. In: NUCCI, G.; MOURA, M. T. Doutrinas essenciais: processo penal. São Paulo: RT, 2014.

 

MIRABETE, Julio F. Manual de Direito Penal. Vol. 1 – Parte Geral. 17 ed. São Paulo: Atlas, 2001.

 

PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 11 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

 

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 2 – Parte Especial. 2ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002.

 

 

Sobre o autor
Alexandre Barbosa

Delegado de Polícia. Bacharel em Comunicação Social pela PUC-RJ. Pós-graduado em Direito pela Escola da Magistratura do DF. Pós-graduando em Direito Penal pelo IDP. Oficial de ligação da Policia Federal em Miami (EUA) de 2011 a 2013.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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