A NÃO APLICAÇÃO DO ARTIGO 80 DO CPP
Rogério Tadeu Romano
I – O FATO
O procurador-geral da República, Augusto Aras, quer fatiar o inquérito das fake news e abrir uma investigação específica sobre a afirmação do ministro da Educação, Abraham Weintraub, de que, por ele, prenderia todo mundo, “começando pelo STF”.
O pedido vai ser encaminhado ao Supremo Tribunal Federal antes da sessão que julgará, no dia 10 de junho do corrente ano, a legalidade das apurações que visam identificar responsáveis pela disseminação em massa de notícias falsas e ameaças a integrantes da corte.
Na visão do PGR, o desmembramento seria uma solução para que haja uma delimitação mais precisa do objeto da investigação em curso no Supremo.
II – O ARTIGO 80 DO CPP
Observe-se o artigo 80 do CPP:
Art. 80. Será facultativa a separação dos processos quando as infrações tiverem sido praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar diferentes, ou, quando pelo excessivo número de acusados e para não Ihes prolongar a prisão provisória, ou por outro motivo relevante, o juiz reputar conveniente a separação
Um motivo relevante cuida a chamada “competência por prerrogativa de função”, ou seja, de uma jurisdição especial, exercida ratione personae, a qual, muito embora criticada por alguns, não objetiva beneficiar ou privilegiar certas pessoas colocando-as acima dos cidadãos comuns.
Ao revés, essa previsão constitucional visa a permitir que determinados cargos e funções públicas de maior relevo na estrutura do Estado possam ser exercidos com a necessária independência. Diz José Frederico Marques sobre o assunto: :“Não se trata de privilégio de foro, porque a competência, no caso, não se estabelece ‘por amor dos indivíduos’, e sim em razão ‘do caráter, cargos ou funções que eles exercem’, como ensinava J. A. Pimenta Bueno.
Ela está baseada na ‘utilidade pública e no princípio da ordem e da subordinação e na maior independência do Tribunal Superior’ – como o disse, em 1874, o Supremo Tribunal de Justiça (Paula Pessoa, Código de Processo Criminal, p. 195, nota 1.905), conjuga-se o citado artigo 80 do CPP com as regras da conexão estabelecidas no artigo 76, III, do CPP, em especial, no que concerne à conexão probatória.
A chamada conexão probatória ou instrumental do artigo 76, III, do Código de Processo Penal, não dispensa um liame substancial entre os fatos. Não basta um eventual juízo de conveniência de reunir no mesmo processo fatos similares, mas paralelos, sem nenhuma conexão substancial entre si.
Em havendo necessidade de separação de processos, em especial por conveniência da instrução criminal, preserva-se a prerrogativa de foro do investigado que dela faz jus, remetendo-se ao juízo comum os procedimentos envolvendo outros coinvestigados sem o mencionado privilégio. Sabe-se que, por conexão ou continência, havendo foro privilegiado a um dos coinvestigados, todos os demais serão julgados por Corte Superior. Porém, a regra da conexão ou continência é prevista no Código de Processo Penal e não na Constituição Federal, motivo pelo qual pode ceder às exceções enumeradas na própria legislação infraconstitucional, nos moldes do artigo 80 do Código de Processo Penal, como ensinou Guilherme de Souza Nucci (Código de Processo Penal Comentado, 10º edição, pág. 256). Daí porque se torna viável a separação dos processos, levando os réus com foro privilegiado a serem julgados em instâncias diversas dos outros não possuidores de tal prerrogativa, como se lê de julgamento do Supremo Tribunal Federal, no QO no Inq. 2.443 – SP, Pleno Relator Ministro Joaquim Barbosa, 1º de julho de 2008.
Com o devido respeito, a determinação de separação de processos prevista no artigo 80 é facultativa.
Ora, tendo em vista que a conexão e a continência tem finalidade de garantir a união de processos para uma melhor apreciação da prova pelo juiz, evitando decisões conflituosas, pode ocorrer a inconveniência dessa junção, seja porque traria dificuldades para a faze probatória, seja pelo fato de envolver muitos réus e até por razões outras.
O artigo 76 do CPP envolve os casos de conexão:
Estudemos as formas de conexão:
1) Conexão intersubjetiva(artigo 76, I, Código de Processo Penal), onde há infrações penais interligadas que devem ser praticadas por 2(duas) ou mais pessoas:
1.1. Conexão intersubjetiva por simultaneidade: na hipótese, ocorrem várias infrações praticadas ao mesmo tempo por várias pessoas reunidas que não estão de forma prévia acordadas;
1.2Conexão intersubjetiva concursal: ocorre quando várias pessoas, previamente acordadas, praticam várias infrações embora diverso o tempo e o lugar;
1.3 Conexão intersubjetiva por reciprocidade: ocorre quando várias infrações são praticadas, por diversas pessoas, umas contra as outras, havendo o que se chama de reciprocidade na violação de vínculo jurídico, algo que se distancia do crime de rixa, crime único.
{ 2) Conexão objetiva, material, teleológica ou finalística(artigo 76, II, do Código de Processo Penal): ocorre quando uma infração é praticada para facilitar ou ocultar outra, ou para conseguir impunidade ou vantagem;
3) Conexão instrumental ou probatória(artigo 76, III, do Código de Processo Penal): ocorre quando a prova de uma infração ou de suas elementares influir na prova de outra infração;
III – CASOS EM QUE O STF DECIDIU PELO DESMEMBRAMENTO DA INVESTIGAÇÃO
No Inq 517-QO/DF, Rel. Min.Octávio Gallotti, julgado em 8/10/1992, o Plenário decidiu, à unanimidade,que o fato isolado atribuído a certo deputado federal não apresentava vínculo de conexão com os demais indiciados, o que permitiria o desmembramento do feito. O acórdão de julgamento foi assim ementado:“FATO ISOLADO, ATRIBUÍDO A DEPUTADO FEDERAL, SEM VÍNCULO DE CONEXÃO COM OS IMPUTADOS AOS DEMAIS FIGURANTES DO INQUÉRITO POLICIAL (ART. 76 DO COD. PROC. PENAL). DESMEMBRAMENTO DEFERIDO EM QUESTÃO DE ORDEM, A REQUERIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL”.
A Suprema Corte também decidiu pelo desmembramento nos feitos a seguir destacados: Inq 542-QO/DF, redator para o acórdão Min. Néri da Silveira; Inq 242-QO/DFe Inq 736-QO/MS, Rel. Min. Celso de Mello; Inq 675-QO/PB, Rel. Min. Néri da Silveira; Inq 212/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão: Inq 1720-Qo/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence.
No Inq 1871-QO/GO, Rel. Min. Ellen Gracie, por sua vez, o Supremo optou pelo desmembramento do processo por entender que a apuração de crimes que exteriorizam tipos penais distintos, sem qualquer liame, envolvendo magistrados de tribunais diversos e pessoas não detentoras de foro privativo, exigiria inexoravelmente tal solução. O acórdão foi assim ementado: “INQUÉRITO. Investigação sobre tráfico de influência e suposto esquema de venda de habeas corpus. Apuração de crimes que exteriorizam tipos penais distintos, sem qualquer liame, envolvendo magistrados de tribunais diversos e pessoas não detentoras de foro privativo. Questão de Ordem resolvida no sentido do desmembramento do inquérito, preservando-se a competência constitucional de órgãos judiciários distintos”.
Outro exemplo em que o desmembramento foi ordenado pelo Plenário,,tendo como fundamento preponderante a presença de apenas um indiciado com prerrogativa de foro,é o Inq 2.443-QO/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, cujo acórdão recebeu a ementa abaixo:“AÇÃO PENAL. QUESTÃO DE ORDEM. DESMEMBRAMENTO DO FEITO. ART. 80 DO CPP. APLICABILIDADE, NA HIPÓTESE. PRECEDENTES. QUESTÃO DE ORDEM ACOLHIDA, PARA QUE SEJAM APURADOS NESSA CORTE SOMENTE OS FATOS IMPUTADOS AO ACUSADO COM PRERROGATIVA DE FORO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.1. O presente caso conta com 10 (dez) denunciados e, na data de hoje, com 78 (setenta e oito) volumes e mais 15 (quinze) apensos, o que demonstra a inviabilidade do processo e julgamento de tantos acusados por essa Corte e constitui razão mais do que suficiente para autorizar o desmembramento do feito, pois apenas um dos acusados detém a prerrogativa de foro prevista no artigo 102, inciso I, alínea ‘b’, da Constituição Federal.2. A doutrina e a jurisprudência são uníssonas no sentido de aplicar o art. 80 do Código de Processo Penal nos processos criminais em que apenas um ou alguns dos acusados detêm a prerrogativa de foro.3. Não há, no caso, qualquer excepcionalidade que impeça a aplicação do artigo 80 do CPP.4. Questão de ordem acolhida, para que sejam apurados nessa Corte somente os fatos imputados ao Deputado Federal envolvido, extraindo-se cópias dos elementos a ele relacionados para autuação de um novo inquérito. Baixa dos autos quanto aos demais acusados”.
Diversos outros acórdãos do órgão colegiado do Supremo Tribunal Federal em que o desmembramento foi determinado pelos mais diversos motivos: Inq 2.548-ED-AgR/DF, Inq 2.706-AgR/BA e Inq 2.168-ED/RJ, todos de relatoria do Min. Menezes Direito; Inq 2.527-AgR/PB, Rel.Min. Ellen Gracie; Inq 2.578/PA, Inq 2.718-QO/GO e Inq 2.471-AgR-quinto/SP, de relatoria do ministro Lewandowiski.
É certo que o desmembramento do inquérito e de processos tornou-se uma prática corriqueira no STF: Eis aqui alguns exemplos: Inq 2.757/MG e Inq 2.601/RJ, Rel. Min. Celso de Mello; Inq 2.652/PR, Rel. Min. Dias Toffoli; Inq 2.280/MG, Rel. Min. Joaquim Barbosa; Inq 2.486/AC e Inq 2.091/RR, Rel. Min. Ayres Britto; Inq 2.239/PI e Inq 1.567/CD, Rel. Min. Sepúlveda Pertence.
Mas o STF também indeferiu a separação dos Inquéritos 2.462/RR, 2.555/RR e 2.455/RR, todos de relatoria do Min.Cezar Peluso, este último assim ementado:“1. INQUÉRITO POLICIAL. Desmembramento. Inadmissibilidade. Pluralidade reduzida de acusados, dos quais um goza de foro especial por prerrogativa de função, perante o Supremo. Delitos conexos. Impossibilidade de aplicação de critério objetivo para desmembramento. Inexistência de razão relevante. Preliminar rejeitada. Aplicação do art. 80 do CPP. Precedente. Quando o número de acusados e a conexidade dos fatos não constituam razão relevante nem conveniente, não se procede a desmembramento de inquérito policial ou de processo de ação penal.2. AÇÃO PENAL. Denúncia. Exposição clara e objetiva dos fatos. Possibilidade de plena defesa. Recebimento. Se a denúncia contém exposição clara e objetiva dos fatos delituosos, possibilitando plena defesa ao acusado, deve ser recebida”
IV – O CASO DA INVESTIGAÇÃO DOS FAKE NEWS E A NECESSIDADE DE NÃO APLICAÇÃO DO ARTIGO 80 DO CPP PARA O CASO
Ora, mesmo que se entenda que a conexão, matriz do artigo 80 do CPP, envolve união de processos, não existindo disciplina normativa com relação às investigações, inquéritos, entende-se que sendo útil ao esclarecimento e busca da verdade real, pode-se providenciar a união em um só foro.
Tal parece-se ser o caso dessa discussão.
A justifica de criação da investigação é fundamentada no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. O presidente do STF, Dias Toffoli aduz que a criação do inquérito por base do art. 43 é regimental, e que “ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição”.
Ora, com vivência de um mundo voltado para a comunicação aberta, via internet, as agressões podem vir virtualmente, via ameaças cibernéticas.
O objetivo do inquérito é: “velar pela intangibilidade das prerrogativas do STF”, e sua justificativa legal é o artigo 43 do RISTF.
Não se desconhece que há a formação de uma verdadeira organização criminosa, com diversos ramos, a que financia, a que possui tentáculos em blogs e outros veículos de comunicação a que possui milícia armada, todos voltados a combate à democracia, envolvendo empresários, que financiam essas atividades de apoio ao governo, e ainda o uso de prédios públicos para disseminação dessas informações ofensivas.
Observe-se a complexidade do fato apurado.
Assim essa decisão depende da análise das condutas imputadas a todos os investigado, dentro do conjunto da organização criminosa, visto dentro de uma concepção monista, tendo em vista a formação coletiva da vontade no sentido da prática, em tese, criminosa.
Ora, em sendo uma investigação que se volta por atos contra o Supremo Tribunal Federal, sustentáculo da democracia, nas relações de freios e contrapesos(artigo 2º da Constituição Federal) é fundamental que essa investigação desses fake, enganos, que objetivam denegrir o Supremo Tribunal Federal, sejam centralizados na Corte Suprema, em nome da verdade real, com o devido acompanhamento do Ministério Público, titular da ação penal pública incondicionada, em respeito ao sistema acusatório.
Daí a regularidade dessa investigação que deve continuar centralizada no Supremo Tribunal Federal.