A suspensão de operações policiais em comunidades do RJ durante a pandemia: uma análise do caso

07/06/2020 às 12:14
Leia nesta página:

Em recente decisão liminar, o Ministro Fachin suspendeu operações policiais no Estado do Rio de Janeiro, porém, é necessário avaliar a referida decisão.

INTRODUÇÃO

O Ministro Fachin determinou, em junho do corrente ano, a suspensão de operações policiais em comunidades do Estado do Rio de Janeiro durante a pandemia do coronavírus. Assim sendo, operações somente poderão ocorrem em casos excepcionais, necessitando serem justificadas pela autoridade competente e enviadas ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Em sua decisão, Fachin se referiu ao caso do menino João Pedro, que faleceu em decorrência de uma operação policial na cidade de São Gonçalo. Desse modo, a avaliação da determinação do ministro de torna imperiosa na sobreposição com a doutrina e jurisprudência atual.

1 - CASO DO MENINO JOÃO PEDRO

Em uma operação em conjunto das Polícias Civil e Federal, em maio do corrente ano, na Comunidade do Salgueiro, na cidade de São Gonçalo, estado do Rio de Janeiro, o jovem João Pedro Mattos Pinto foi morto [1], em seu domicílio, onde foram encontradas marcas de mais de setenta tiros. Após ser alvejado, o adolescente foi levado de helicóptero e permaneceu desaparecido, sem que qualquer pessoa pudesse acompanhá-lo, muito menos sem saber para aonde iria. A família do jovem foi saber de sua morte pouco tempo depois. Segundo a Polícia Civil, João Pedro Mattos Pinto foi atingido durante um confronto entre criminosos e policiais. Em nota, a Polícia Federal afirmou que:

"A Superintendência Regional da Polícia Federal no Rio de Janeiro informa que, na data de ontem, 18/05, durante operação da Polícia Federal com apoio da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo / RJ um adolescente foi ferido. A ação visava cumprir dois mandados de busca e apreensão contra lideranças de uma facção criminosa da região. Durante a ação, seguranças dos traficantes tentaram fugir pulando o muro de uma casa. Eles dispararam contra os policiais e arremessaram granadas na direção dos agentes. No local foram apreendidas granadas e uma pistola. O jovem ferido na ação foi socorrido de helicóptero. Médicos do Corpo de Bombeiros prestaram atendimento, mas ele não resistiu aos ferimentos. O corpo foi encaminhado para o IML de São Gonçalo. A Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí (DHNSGI) informou que já instaurou inquérito para a apurar as circunstâncias que levaram à morte do adolescente. A Polícia Federal acompanhará e prestará todas as informações e apoio necessário à elucidação dos fatos."

2 - DA TUTELA PROVISÓRIA NA ADPF 635/RJ

Diante do pedido de medida cautelar feito pelo Partido Socialista Brasileiro na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, o Ministro Edson Fachin, concedeu liminar para suspender operações policiais em comunidades do Estado do Rio de Janeiro, assim como a ordem para:

“(i) que não se realizem operações policiais em comunidades durante a epidemia do COVID-19, a não ser em hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com a comunicação imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – responsável pelo controle externo da atividade policial; e (ii) que, nos casos extraordinários de realização dessas operações durante a pandemia, sejam adotados cuidados excepcionais, devidamente identificados por escrito pela autoridade competente, para não colocar em risco ainda maior população, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária. “ [2]

No deferimento da liminar, Fachin citou o caso do menino João Pedro, ocorrido na Comunidade do Salgueiro, na cidade de São Gonçalo, Estado do Rio de Janeiro:

“Em 18 de maio de 2020, apenas três dias após a chacina do Alemão, uma operação da Polícia Federal com apoio das polícias fluminenses, especialmente da CORE (Coordenadoria de Recursos Especiais) da Polícia Civil, foi realizada na Praia da Luz, Ilha de Itaoca, na cidade de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. A operação, que contou com veículos blindados e aeronaves, resultou na morte de João Pedro Mattos Pinho, de apenas 14 anos de idade.

O menino estava na casa de sua tia, na companhia de seu primo da mesma idade e outros quatro adolescentes, quando a casa foi invadida por policiais com disparos de arma de fogo – foram contadas mais de 70 marcas de tiros – e explosivos, vindo a ser atingido por tiro de fuzil. Em seguida, dois jovens que estavam na casa levaram o corpo do menino até o helicóptero policial, que o conduziu a uma base de operações aéreas na zona sul do Rio de Janeiro, mas já chegou morto.

À família não foi permitido sequer acompanhar o traslado na aeronave, tendo permanecido por horas sem qualquer informação sobre o paradeiro do menino. A procura por João Pedro mobilizou uma campanha nas redes sociais, com a hashtag #procurasejoaopedro no Twitter, com mais de 140 mil postagens com a frase compartilhada. Somente à noite a família foi comunicada da morte e, na manhã do dia seguinte, foi localizado e reconhecido o corpo de João Pedro no Posto Regional de Polícia Técnica e Científica do Município de São Gonçalo. “ [3]

O Ministro Fachin destacou que o uso da força policial só é necessário quando for comprovada a necessidade de proteção de um bem relevante, conforme destacado o princípio da proporcionalidade, nos princípios básicos das Nações Unidas:

“Sempre que o uso legítimo da força e de armas de fogo for inevitável, os responsáveis pela aplicação da lei deverão: (a) Exercer moderação no uso de tais recursos e agir na proporção da gravidade da infração e do objetivo legítimo a ser alcançado; (b) Minimizar danos e ferimentos, e respeitar e preservar a vida humana; (c) Assegurar que qualquer indivíduo ferido ou afetado receba assistência e cuidados médicos o mais rápido possível; (d) Garantir que os familiares ou amigos íntimos da pessoa ferida ou afetada sejam notificados o mais depressa possível.” [4]

Desse modo, foi enfatizado que são estabelecidos critérios totalmente rígidos para o uso da força policial, devendo os agentes do estado justificarem o uso da arma de fogo e verificar as circunstâncias da situação. Foi abordado o caso da condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso da Favela Nova Brasília, só por ter ocorrido violação às regras mínimas de uso da força, mas também pela inexistência de protocolos para o uso da força, seja para atestar a necessidade do emprego ou para fiscalizá-lo. Logo, os protocolos de uso da força policial já eram precários antes, ocorrendo nos dias de hoje, uma pandemia mundial, onde os moradores das comunidades passam a maior parte do tempo em casa, o que os torna um alvo do uso excessivo do poder de polícia. O Ministro Fachin então, deferiu a cautelar nos seguintes moldes:

“Ante o exposto, defiro a medida cautelar incidental pleiteada, ad referedum do Tribunal, para determinar: (i) que, sob pena de responsabilização civil e criminal, não se realizem operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a epidemia do COVID-19, salvo em hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com a comunicação imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – responsável pelo controle externo da atividade policial; e (ii) que, nos casos extraordinários de realização dessas operações durante a pandemia, sejam adotados cuidados excepcionais, devidamente identificados por escrito pela autoridade competente, para não colocar em risco ainda maior população, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária. “ [5]

3 - DOS PRINCÍPIOS BÁSICOS SOBRE O USO DA ARMA DE FOGO

No oitavo Congresso das Nações Unidas sobre a prevenção do crime e o tratamento a delinquentes, no ano de 1990, foram adotados os Princípios Básicos Sobre o Uso da Força e Armas de Fogo Pelos Funcionários Responsáveis Pela Aplicação da Lei. Assim, o referido Congresso adota diversas formas de preservação da vida humana e restrição do uso da força policial exagerada, como pode ser observado nas seguintes disposições:

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“5. Sempre que o uso legítimo da força e de armas de fogo for inevitável, os responsáveis pela aplicação da lei deverão:

(a) Exercer moderação no uso de tais recursos e agir na proporção da gravidade da infração e do objetivo legítimo a ser alcançado;

(b) Minimizar danos e ferimentos, e respeitar e preservar a vida humana;

(c) Assegurar que qualquer indivíduo ferido ou afetado receba assistência e cuidados médicos o mais rápido possível;

(d) Garantir que os familiares ou amigos íntimos da pessoa ferida ou afetada sejam notificados o mais depressa possível.

9. Os responsáveis pela aplicação da lei não usarão armas de fogo contra pessoas, exceto em casos de legítima defesa própria ou de outrem contra ameaça iminente de morte ou ferimento grave; para impedir a perpetração de crime particularmente grave que envolva séria ameaça à vida; para efetuar a prisão de alguém que represente tal risco e resista à autoridade; ou para impedir a fuga de tal indivíduo, e isso apenas nos casos em que outros meios menos extremados revelem-se insuficientes para atingir tais objetivos. Em qualquer caso, o uso letal intencional de armas de fogo só poderá ser feito quando estritamente inevitável à proteção da vida. ” [6]

Portanto, a Convenção norteia os Estados-membros da Organização das Nações Unidas, para a implementação de políticas de coibição do uso excessivo do emprego de armas de fogo, além de especificar a necessidade de notificação dos amigos íntimos e família no caso do ferimento por arma de fogo e da assistência médica.

4 - CONCLUSÃO

O uso da força policial de forma incorreta pode gerar mazelas à população, principalmente para aqueles que vivem em comunidades, onde ocorrem a maioria das operações policiais. Portanto, conforme é estabelecido pelo oitavo Congresso das Nações Unidas sobre a prevenção do crime e o tratamento a delinquentes, os atos praticados por policiais devem, excepcionalmente, utilizar armas de fogo, especificando inclusive apenas em casos de legítima defesa própria ou de outrem contra ameaça iminente de morte ou ferimento grave. Logo, tais normas devem prevalecer no ordenamento jurídico dos Estados-parte da Organização das Nações Unidas, onde o Brasil é membro.

É observado no Brasil, o não cumprimento das disposições adotadas pelas Nações Unidas, diante do uso exacerbado do emprego de armas de fogo por parte das polícias que realizaram a operação que culminou na morte do jovem João Pedro. A decisão do Ministro Fachin então, é amparada por diversas normas internacionais de proteção aos direitos humanos, conforme citado em decisão do próprio Ministro, além de estar amparada pelo referido Congresso da ONU, pois a realização de operações policiais na pandemia do coronavírus pode levar a mais casos do mau uso de armas de fogo por forças policiais.

REFERÊNCIAS

[1]https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/19/menino-de-14-anos-e-baleado-durante-operacao-no-complexo-do-salgueiro-rj.ghtml

[2]http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF635DECISaO5DEJUNHODE20202.pdf (Pág 1)

[3]http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF635DECISaO5DEJUNHODE20202.pdf (Pág 3)

[4]http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF635DECISaO5DEJUNHODE20202.pdf (Pág 4)

[5]http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF635DECISaO5DEJUNHODE20202.pdf (Pág 7)

[6]http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/segurancapublica/principios_basicos_arma_fogo_funcionarios_1990.pdf 

Sobre o autor
Pedro Vitor Serodio de Abreu

LL.M. em Direito Econômico Europeu, Comércio Exterior e Investimento pela Universität des Saarlandes. Legal Assistant na MarketVector Indexes.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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