Considerações sobre o conceito de segurança jurídica no ordenamento jurídico brasileiro.

Segurança jurídica no ordenamento jurídico brasileiro.

Exibindo página 2 de 2
07/06/2020 às 21:07
Leia nesta página:

[1] Com a ampliação desse princípio veio com as leis infraconstitucionais e com a sua concretização. No que concerne às leis infraconstitucionais federais, apenas três delas fazem menção direta ao princípio da segurança jurídica: a Lei 9.784, que regula o processo administrativo, a Lei 9.868 e a Lei 9.882, que estabelecem diretrizes para o processo e julgamento de ações perante o Supremo Tribunal Federal, todas de 1999. O conteúdo novo que essas leis trazem, principalmente as duas últimas, é a centelha da nova perspectiva da segurança jurídica no ordenamento brasileiro. A segurança jurídica, ainda que de modo incipiente, ganha outro significado para o legislador, restando ao julgador, hoje em dia, a tarefa árdua de aproximar definitivamente a ideia da proteção à confiança do cidadão e à sua expectativa de realização do direito.

[2] Na era contemporânea a figura do Estado não mais contrasta com a da sociedade, antes até com esta se identifica. E, nesse sentido, o Código Civil brasileiro de 2002,  sendo a constituição do homem comum e, também ,a própria Constituição da República. Esta é a única Carta do Cidadão, não havendo espaço para o cidadão civil, o cidadão consumidor, o cidadão trabalhista, ou qualquer outro, pois o sistema jurídico é uno e não fracionado. Não se trata de uma soma aritmética de suas partes, e sim, de uma unidade na qual as partes se integram, conforme ensinou Santi Romano.

[3] Em sede do HC 152.752, em que o STF julgou se o ex-presidente Lula poderia ou não ter iniciado o cumprimento da pena em face de decisão condenatória pelo Tribunal Regional  Federal da 4ª Região, sem trânsito em julgado, embora ainda seja precipitada a análise das diversas repercussões constitucionais de que se reveste, mostrou a imensa dificuldade do STF de exercer a primordial função estatal da jurisdição, precisamente a de promover a pacificação (social, política e jurídica). Ainda que tenha proferido decisão no HC 152.752, denegando a concessão da ordem requerida pelo impetrante, com base em decisões anteriores do próprio STF, a decisão parece poder ser a qualquer momento modificável sem a observação e quaisquer condicionantes temporais ou mesmo procedimentais. O que depois fora confirmado pelo colegiado do TRF 4ª Região, por mais de uma vez.

[4] Atualmente, quando se pretende estabelecer todo o conteúdo social da vigente Carta Constitucional,

imperativo compreender o sujeito de direito inserido no contexto social, como aliás, para encarar a configuração da autonomia privada, oportuno lembrar de Habermas, ao versar sobre a temática, aludindo aos direitos subjetivos: Direitos subjetivos não estão referidos, de acordo com seu conteúdo, a indivíduos atomizados e alienados, que se entesam possessivamente uns contra os outros. Como elementos da ordem jurídica, eles pressupõem a colaboração de sujeitos, que se reconhecem reciprocamente em seus direitos e deveres, reciprocamente referidos uns aos outros, como membros livres e iguais do direito. Nesse sentido, os direitos subjetivos são co-originários com o direito objetivo; pois este resulta dos direitos que os sujeitos se atribuem reciprocamente.

[5] Mesmo no Anteprojeto de CPC de 2010 elaborado sob a presidência do Ministro Luiz Fux já havia a preocupação da segurança jurídica propiciadora ou reveladora das decisões judiciais, ou seja, a segurança jurídica que acarreta uma certeza na decisão, porque esta tem diretriz, ou esta consagrará a segurança jurídica, porque ratifica o conhecido, o exposto, o revelado por decisões judiciais. E, isto se insere na efetividade tão apregoada ou querida por juízes e jurisdicionados, mas somente será realizado mediante maturidade de juízes e advogados, no respeito à jurisprudência, ao decidido pelos tribunais, e o juízes que respeitem o consolidado, não divergindo, ou construindo novas teses sem apoio em legislação nova, fatos novos ou circunstâncias novas.

[6] A segurança jurídica, apesar de constar raras vezes explicitada no ordenamento jurídico brasileiro e não possuir uma precisa e completa definição legal, é princípio constitucional. Isso pode ser evidenciado tanto pelo caput do artigo 5º da Constituição Federal, como pelo inciso XXXVI do mesmo artigo, assegurando que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". Vale acrescentar também que de acordo com o inciso XXXIX – “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Trata-se de importante exemplo sobre como a segurança jurídica é tratada, em um primeiro momento, em âmbito constitucional.

[7] O princípio da segurança jurídica se encontra difundido nas sociedades muito antes de receber tal denominação e, desta maneira, encontrar um marco preciso e claro de seu surgimento não é uma tarefa fácil. Seguindo o pensamento de J. J. Canotilho, a ideia de segurança jurídica surgiu da necessidade humana de alguma certeza, sem variações ou mudanças no decorrer do tempo, de forma a coordenar e organizar a vida social.  Tal desejo remonta ao período em que o ser humano começou a dar origem ao que hoje chamamos de sociedade, em busca de um ambiente diverso da natureza, e em que pudesse desenvolver-se juntamente com seus iguais. Nesse novo espaço humano, social, estabelecer certezas e garantias tornou-se um desejo comum e objeto de procura dos diversos grupos sociais fruto dessas interações.

[8] O Estado Social alberga a superação da função garantidora da divisão dos poderes e, pois, da identificação do Estado com a sociedade. O Estado de Direito pressupõe, ao invés, a superação entre Estado e sociedade civil. A fórmula do Estado de Direito Social pretende exprimir a reconciliação entre estas duas exigências, isto é, entre a exigência de superar o diafragma entre o Estado e sociedade civil e a exigência de manter uma função garantidora.

 

[9] Estes dois princípios - segurança jurídica e protecção da confiança – andam estreitamente associados a ponto de alguns autores considerarem o princípio da protecção de confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica - garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito - enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos. A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante ‘qualquer acto’ de ‘qualquer poder’ - legislativo, executivo e judicial (CANOTILHO, 2002, p.257).

[10] No contexto  do Estado Social: "Tão importante quanto o reconhecimento ético e político de tais posições jurídicas privadas é a introdução do indivíduo, também através do direito, nos contextos de ação regulados por estruturas de ordem, os quais o envolvem e ligam com outros; isso equivale, pois, a formar e garantir os institutos do direito, nos quais o indivíduo assume uma posição de membro"

[11] O aspecto subjetivo da segurança jurídica, mistura-se com o princípio da proteção à confiança. Há divergências doutrinárias quanto ao grau dessa relação – corolários, sinônimos ou distintos –, mas não há dúvidas de que existe. Diferentemente do aspecto objetivo, este envolve as possibilidades de previsão das ações estatais, bem como a expectativa do indivíduo sobre essas ações.  É o que se espera que aconteça, conforme a crença que se tem depositada na ordem jurídica.  Importa também uma questão de legitimidade, configurada na confiança de que nada será feito em prejuízo do povo, pelos seus representantes. É desta que vem a legitimidade, mesmo que indiretamente, dos atos públicos.

[12] Para a doutrina, o princípio da segurança jurídica é em geral apresentado como uno. Os dois aspectos

encontram-se unidos, mas a diferenciação apontada demonstra a complexidade do princípio, a justificar estudo mais aprofundado. O aspecto objetivo, de limite à atuação do Poder Público é ressaltado pela doutrina, restringindo seu alcance e compreensão. A percepção do seu aspecto subjetivo vem ampliar o entendimento do princípio, trazendo uma nova perspectiva a ser explorada no estudo do direito.

[13] Quanto aos teóricos do direito, Hans Kelsen expressa sua postura fielmente positivista ao relacionar o princípio da segurança jurídica com o ato de conhecer e interpretar a norma, afirmando que o grau de segurança é inversamente proporcional à quantidade de significados possíveis.  Em sua concepção, uma norma que se constituísse de apenas um significado é a materialização da segurança jurídica de maneira plena e um dos papéis da Teoria do Direito consistia justamente em limitar os sentidos da norma.

[14] Zagrebelsky deixa expressas suas restrições em relação às chamadas “sentenças-lei” e ao poder normativo do Judiciário, mas isso é muito pouco para se impedir a arbitrariedade judicial; isso basta apenas para reservar e preservar a função do legislador ordinário, que fica, de qualquer forma, relegada a um plano extremamente subalterno e colateral. Poderíamos afirmar, ainda, que Zagrebelsky ensaia uma postura pós-estruturalista frente aos direitos, mas o faz apenas pela metade, pois não faz caso de uma crítica à razão moderna, que, em última análise, é a geradora de toda a concepção de direito do século XIX por ele criticada.

[15] A pluralidade de princípios e de valores objetivados na Constituição justifica o tratamento não formalista ou não-hierárquico dos fenômenos jurídicos. Jogam, aqui, de maneira importante, as ideias de ponderação, proporcionalidade e de otimização. Uma relatividade ética que não significa não se ter, do mundo, uma concepção de forma objetiva, mas sim que a superveniência do mundo é condição necessária para a realização do próprio projeto ético.

[16] Em nova perspectiva a respeito do entendimento sobre segurança jurídica – englobando a ideia de proteção à confiança – surgiu e solidificou quando o Estado liberal burguês deu lugar ao Estado social ou Estado-providência. A maior dependência da população em relação aos atos estatais e, por consequência, a maior ingerência do estado sobre a vida dos cidadãos fez com que a expectativa depositada pelas pessoas também precisasse ser protegida. Então, diante das mudanças estruturais e conjunturais que atravessaram a sociedade capitalista, as garantias instituídas não poderiam limitar-se a defesa do indivíduo contra o poder estatal, mas necessitavam abarcar a defesa do indivíduo – seus anseios, necessidades e expectativas – a partir da ação do poder estatal, sob pena de os ordenamentos jurídicos não servirem às sociedades que buscavam conformar.

[17] Para Zagrebelsky, a atual concepção constitucional europeia é uma mescla das duas concepções, a saber, a pré-estalinista, subjetivista e jurisdicional dos (i) Estados Unidos e a (ii) francesa, legislativa, estatal e objetiva. Com isso, se consegue um equilíbrio importante, sem perder de vista a divisão fundamental que elas devem manter. Esse equilíbrio é, na atualidade, o que possibilita as bases para o controle de constitucionalidade das leis.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

[18] Ainda no início do século passado, surgiram duas escolas fundamentais na Alemanha, com base na Teoria Geral do Direito e da Metodologia Jurídica Geral. Da primeira (Teoria Geral do Direito) emergiu a assim chamada Escola do Direito Livre (R. Stammler), postulando pela existência de um “juiz régio”, o qual poderia mesmo ignorai' a lei, em alguns casos, quando esta correspondesse às novas ideias sociais.

A segunda, encabeçada por Gustav Radbrusch, pregava o “método de interpretação objetiva”: o “teor da literal, a gênese, a sistemática e, sobretudo, a telos, a ratio, a finalidade da lei, deveria (sic) ser os critérios por meio dos quais o sentido da lei precisava ser identificado.”.

[19] O presidente nacional da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, saudou a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que decidiu que a partir de agora o Congresso Nacional não pode mais incluir, em medidas provisórias (MPs) editadas pelo Poder Executivo, emendas parlamentares que não tenham pertinência temática com a norma, o chamado “jabuti”. “Trata-se de um grande avanço, que prestigia e valoriza o trabalho do Poder Legislativo, ao evitar que temas importantes sejam aprovados sem que tenham passado por um amplo debate”, destacou Marcos Vinicius. A decisão foi tomada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5127, por meio da qual a Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL) questionava alterações feitas na MP 472/2009, convertida na Lei 12.249/2010, que resultaram na extinção da profissão de técnico em contabilidade. A MP em questão tratava de temas diversos, que não guarda  relação com a profissão de contador. Por maioria, o Plenário julgou improcedente a ação, mantendo a validade da norma questionada em razão do princípio da segurança jurídica.  Contudo, o Tribunal decidiu cientificar o Congresso Nacional de que a prática é incompatível com a Constituição Federal.

[20] As incertezas geradas pela recente reforma trabalhista no Brasil, aliás, lembrando que a referida Medida Provisória não fora transformada em lei, demonstram nitidamente como o setor produtivo fica fragilizado juridicamente, pois não existe segurança para a aplicação da dita legislação em razão de manifestações contundentes, em setores do Judiciário, repudiando expressamente a grande maioria das mudanças decretadas por ferir os direitos dos trabalhadores consolidados ao longo do tempo, seja na CLT, seja no texto constitucional vigente. E, mesmo as já alegadas inconstitucionalidades devem ser julgadas pelo STF, a quem incumbe ser guardião da Constituição Federal de 1988 e detentor da última palavra a respeito da validade e eficácia das referidas alterações legislativas.

[21] O princípio da segurança jurídica tem sido usado para a preservação de atos inválidos, que por vezes são impossibilitados de serem anulados para respeitar os princípios da boa-fé e da proteção à confiança. Nota-se, então, como afirma Couto e Silva, que os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança são elementos conservadores inseridos na ordem jurídica, e visam a manter o status quo e evitar surpresas quanto à conduta do Estado que atinjam interesses dos administrados ou frustram suas

expectativas, ainda que manifestada em atos ilegais.  Segundo Judith Martins-Costa sobre o princípio da segurança jurídica, trazendo-o como subprincípio do Estado de Direito e importante instrumento da Administração Pública para garantir mecanismos de realização de direitos fundamentais e das expectativas que gera na esfera política de particulares.

[22] Conclui-se, é preciso desfrutar do ambiente constitucional brasileiro para confirmar que a segurança jurídica contemporânea (se é que existe algum conceito uno de segurança jurídica ) transitou da figura da segurança na lei para a segurança no juiz, o que se apresenta, em meu entendimento, mais honesto, sob o aspecto da aplicação ideológica da lei (não neutra), e mais coerente com os anseios de uma sociedade que não é geral e, muito menos, abstrata (características essenciais da lei), mas sim, concreta e localizada, como de fato são concretos os sujeitos e localizados os problemas da vida.

[23] Oportuno esclarecer que o princípio da boa-fé é dotado de duas cargas distintas, uma subjetiva e outra objetiva. Tem sido destacado pela doutrina mais recente, após a edição do CC, o aspecto objetivo da boa-fé, sem que se dê devida importância ao seu plano subjetivo. Não parece correto “esquecer” do plano subjetivo da boa-fé, pois esta encena, sim, ainda hoje, destacado papel na contratação, notaram ente nas tratativas preliminares e na formação do contrato. Ao abordar aspectos posteriores à vigência do CC, sustenta Miguel Reale que a boa-fé objetiva resulta da intencionalidade ou do “[...] propósito de guardar fidelidade ou lealdade ao passado”.

[24] A expressão “ativismo judicial” foi empregada pela primeira vez nos Estados Unidos, ano de 1947, em um artigo de autoria de Arthur Schlesinger que classificava os membros da Suprema Corte, à época, em “ativistas” ou “campeões da autocontenção”. Para o doutrinador, os juízes ativistas estavam “voltados para a solução de casos particulares de acordo com suas próprias concepções sociais”, enquanto os autocontidos importavam-se com a “preservação do Judiciário na sua posição relevante, mas limitada dentro do sistema americano”. Sobre a classificação proposta por Schlesinger, Leal afirma tratar-se de “uma divisão muito singela”, que implica no reconhecimento de um grupo substancialista (praticantes do ativismo) e outro procedimentalista (praticantes do self restraint), embora tal dicotomia ainda não fosse utilizada.

[25] Dimitri Dimoulis, por outro lado, tem uma visão mais abrangente da ideia de segurança jurídica, relacionando-a a questão da previsibilidade. Para ele, “o indivíduo não só conhece aquilo que pode e não pode fazer e as consequências da eventual violação da norma, mas sabe também que o Estado nunca o surpreenderá”. Desta forma, o Estado resta limitado em seu próprio poder, e existindo o Direito como orientador das relações sociais, a previsibilidade das consequências jurídicas está assim garantida e a sensação de segurança também.

[26] O Conselho Nacional de Justiça aprovou o Provimento 68, de 3 de maio de 2018, que certamente irá fornecer a todos os operadores do Direito e consulentes melhor efetividade jurisdicional. o CNJ relatou o Provimento 68, que dispõe sobre a uniformização dos procedimentos referentes ao levantamento de depósitos judiciais e bloqueio de valores, que diz em seu artigo 1º: “As decisões, monocráticas e colegiadas, que deferem pedido de levantamento de depósito condicionam-se necessariamente à intimação da parte contrária para, querendo, apresentar impugnação ou recurso. § 1º. O levantamento somente poderá ser efetivado 02 (dois) dias úteis após o esgotamento do prazo para recurso”. O intuito do CNJ não é de obstar qualquer levantamento judicial ou bloqueio de recursos monetários e afim, mas, sim, otimizar e parametrizar o modelo processual e administrativo do levantamento judicial em sentido amplo, o que é oportuno e traz praticidade e organização ao pleito judicial.

[27] Aliás, a prática ética ganhou relevância no nível de eficácia da própria lei, uma vez que a partir deste valore inerente à sociedade (trata-se, antes de tudo, de valor social do que propriamente jurídico) é o que se erigiu e foi sancionada a Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.Assim adentrou a eticidade dentro da regulação das relações civis.

[28] Há várias etapas do processo decisório judicial e a importante função dos julgados anteriores – que têm várias denominações, como acórdão, precedente, jurisprudência, súmula e direito sumular. Afinal, o que é acórdão? É a concentração de um julgado. É a forma material da expressão da decisão judicial. e, O que é o precedente? É uma decisão anterior persuasiva para decisões futuras. Não é compulsória; apenas norteará o futuro julgador a seguir aquela decisão. Serve de informação, de simplificação de trabalho.

 

[29] O relatório Conselho de Estado da França faz-se menção à desordenada proliferação dos textos a gerar uma sempre crescente complexidade (no caso europeu agravada pela multiplicação das fontes formais de produção legislativa) do Direito. Retomando o fluxo do raciocínio, pode-se definir: Leis claras - Por leis claras entendem-se as leis que evitam normas confusas ou dotadas de obscuridade em decorrência da utilização de termos equívocos. Leis inteligíveis - De seu turno, leis inteligíveis hão de ser entendidas por oposição a leis cuja complexidade, sem embargo da precisão de seus termos, faz com que se tornem incompreensíveis aos seus destinatários. Em outras palavras, as leis inteligíveis, além da clareza antes indicada, necessitam de precisão quanto a seus termos e de compreensibilidade não exatamente pelo homem médio, como se possa supor, mas pelo destinatário da regra, pelo sujeito de direito que caiba no âmbito de vigência pessoal da norma. Leis estáveis - São leis mais ou menos duráveis, que dão ao jurisdicionado a sensação de perenidade ou, ao menos, de continuidade. A admissão da necessidade de leis estáveis não quer e não pode implicar o engessamento do Direito. Quer expressar - isso sim - que a estabilidade das leis significa, como fator de segurança jurídica, a necessidade de maturação das leis que integram o ordenamento jurídico e o repúdio às leis de oportunidade. Leis acessíveis - Têm-se como tais aquelas postas à disposição do conhecimento do jurisdicionado. O velho brocardo ignorantia legis neminem excusat necessita de um mínimo de realidade na ficção que representa. O conhecimento do Direito é condição essencial para que o sujeito possa conduzir-se na forma exigida. É necessário, pois, para que seja atendido o requisito da acessibilidade que a publicidade da lei seja satisfeita permitindo, assim, o conhecimento material e intelectual (inteligibilidade) das normas jurídicas reitoras da conduta. Respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada - Escapa à perspectiva desta investigação o exame pontual de cada um desses conceitos, como manifestações do princípio da segurança jurídica. Seu exame se justifica no Direito francês que, por não possuir em sua tradição constitucional preceitos dessa ordem, teve a necessidade de realizar largos desenvolvimentos teóricos e jurisprudenciais de sorte a criar barreiras seguras à retroatividade das leis.

[30] A jurisprudencialização do direito é um problema, primeiramente, enquanto fenômeno, pois surge da necessidade de uniformização do direito, com viés à segurança jurídica. Contudo, levado a efeito tal fenômeno, a primeira base a sofrer abalo será a manutenção da segurança jurídica, pois a lei, que é geral, abstrata e impessoal, terá sua aplicação modulada, ou até relativizada pela jurisprudência. Não há maior fonte de insegurança jurídica que a ilegalidade, e não há pior ilegalidade que aquela praticada pelo Estado-juiz. A jurisprudencialização do direito é, igualmente, um problema jurídico-institucional, primeiro por inconstitucionalidade, pois não há sequer um traço de previsão no texto constitucional de relativização do princípio da legalidade quando a lei contrariar a jurisprudência. Depois, por contrariedade à formação do ordenamento (dentro do conceito do binômio de produção-execução, de Kelsen), pois a lei de introdução à norma do Direito brasileiro (antiga Lei de Introdução ao Código Civil) não estabelece que a Jurisprudência seja fonte do direito em caso de omissão da lei,  pois prevê que, quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito,  logo tal inserção no CPC não decorre da lei geral (e, como dito acima, não decorre da CF, decorrendo, senão, da – vil – vontade do legislador  em inovar sem solucionar) sendo, assim, ilegal, pois não respeitou o processo de construção do ordenamento na forma de produção-execução  (o que aqui arrisco dizer seja o único aceitável num sistema de pirâmide normativa como o nosso).

[31] O efeito vinculante já foi consagrado na Emenda Constitucional n. 3/1993, ao estabelecê-lo, quanto às decisões definitivas de mérito, nas ações declaratórias de constitucionalidade (redação do art. 102 da CF, acrescentando o § 2º). Destaque-se, ainda, o disposto na Emenda Constitucional no 45/04, no § 2º do art. 102: “As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direita e indireta, nas esferas, estadual e municipal”.

[32] Partindo dessas ideias, André Ramos Tavares, em seu livro “Curso de Direito Constitucional”, faz menção a três elementos essenciais da segurança jurídica: a) a necessidade de certeza, de conhecimento do Direito vigente e de acesso ao conteúdo desse Direito; b) a possibilidade de conhecer, de antemão, as consequências pelas atividades e pelos atos adotados; e c) a estabilidade da ordem jurídica. A estabilidade mínima da ordem jurídica consiste em cláusulas pétreas, decorrente da dificuldade de alteração das normas constitucionais; e em limitações materiais impostas ao legislador e às demais fontes do Direito. Pode-se dizer assim, que a segurança jurídica se projeta tanto para o passado (irretroatividade das leis e das emendas à constituição) quanto para o futuro (com a pretensão de estabilidade mínima do Direito e com seus institutos destinados a alcançar esta finalidade, como as cláusulas pétreas, por exemplo).

[33] A independência do julgador não é afetada porque pode não aplicar a Súmula, caso o texto for inaplicável à espécie. O juiz está adstrito à lei, e sua liberdade tem esses parâmetros. A jurisprudência não sofrerá com a súmula, porque sua evolução ocorrerá com os cancelamentos, alterações e até adequação de entendimento (Súmula 346 – nulidades dos atos administrativos, entendida pela Súmula 473).

[34] Zagrebelsky, entretanto, não nos diz como manejar essa enorme complexidade “dúctil” dos direitos, porquanto se detém em uma linguagem extremamente metafórica e abstrata. Se, por um lado, o pluralismo é um valor ético quase consensual, por outro, o problema a ser resolvido é justamente como operar as questões intrincadas que surgem na prática da convivência humana multicultural, essencialmente conflituosa. Ponderação, proporcionalidade ou otimização são conceitos extremamente abertos. O artifício de transferir a rigidez para a lei ordinária, com o objetivo de justificar a “ductilidade” da Constituição, pode ser eficaz em termos de segurança jurídica formal, mas é contraproducente no que diz respeito à segurança jurídica material, e pode identificar-se, muito bem, com as concepções autoritárias de Estado

[35] Os postulados da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da proteção da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de direito público, em ordem a viabilizar a incidência desses mesmos princípios sobre comportamentos de qualquer dos poderes ou órgãos do Estado (os Tribunais de Contas, inclusive), para que se preservem, desse modo, situações administrativas já consolidadas no passado”, escreveu Ministro Celso de Mello.

[36] A Lei 1.1417, de 19/12/2006, estabelece regras sobre a edição da súmula vinculante. O Supremo Tribunal Federal, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, pode editar enunciada de súmula, que terá efeito vinculante.

[37] A função criativa do juiz, que se realiza em uma organização originariamente concebida para uma ideia burocrática do magistrado, não significa nunca que os juízes sejam os senhores do direito, mas que o legislador deva se acostumar a ver suas leis tratadas como parte do direito, e não como todo o direito. Isso significa, ainda, que se deve guardar fortes reservas em relação às chamadas sentenças-lei - em uso, todavia, em alguns ordenamentos jurídicos, como no caso brasileiro, no âmbito dos direitos coletivos do trabalho. Zagrebelsky termina sua obra enfatizando que os juízes são, simplesmente, os guardiões da complexidade estrutural do direito, no marco da necessária e dúctil coexistência entre lei, direitos e justiça.

[38] A posição contemporânea do magistrado não mais pode ser encarada com desconfiança e, muito menos, com surpresa, até porque, tanto em sistemas estrangeiros como também no brasileiro, se observa uma aperfeiçoada evolução no papel do magistrado diante da construção do sistema jurídico. É verdade que inicialmente, na Europa existiu a rígida divisão dos Poderes do Estado, conforme apregoado por Montesquieu, figurando o juiz como mera "boca do legislador", situação que perdurou até meados do século IX. Em sequência, a partir do início do século XX, e apesar da retrógada posição codicista (do CC de 2002), o magistrado passou a ser intérprete da lei.

 

[39] A mudança de jurisprudência é perfeitamente possível, porém, não se pode ignorar que esta pode prejudicar a confiabilidade e a previsibilidade do Direito, além de pôr em risco a atuação da jurisprudência como parâmetro para definição da conduta dos jurisdicionados. Pois a atuação dos tribunais deve ocorrer de forma que os jurisdicionados possam planejar seu futuro com base nos entendimentos por estes mesmos firmado, que possam definir a conduta que adotarão considerado um desenvolvimento refletivo e sistemático da jurisprudência.

[40] A ideia de ductilidade constitucional é muito atraente. Faz-nos recordar, por exemplo, de um conceito da filosofia pós-estruturalista francesa, “rizoma”, que é um modelo imaginado por Deleuze y Guattari para a realização das multiplicidades – no plural. Segundo Deleuze, as multiplicidades seriam a própria realidade. Para esses autores a filosofia é a própria teoria das multiplicidades. Este paradigma, “rizoma”, funciona a partir de características aproximativas completamente heterodoxas11: conexão ampla entre seus elementos, heterogeneidade, multiplicidade, ruptura a-significante, cartografia e decalcomania (decalcomanie). É concebido como um instrumento epistemológico pós-estruturalista, para uma das possibilidades de condução da razão e do conhecimento contemporâneos.

[41] A nova abordagem dada à segurança jurídica, a visão intimamente ligada ao aspecto subjetivo, à proteção à confiança depositada pelo cidadão, que traz consigo um método inovador de analisar as situações apresentadas. Talvez fruto do ativismo judicial do qual o Supremo Tribunal Federal é constantemente acusado de praticar, talvez fruto da irradiação dos princípios entre as diferentes áreas do direito – partindo, principalmente, do Direito Constitucional –, o aspecto subjetivo da segurança jurídica, ainda que não expressamente nomeado desta maneira, a não ser em excetos da doutrina, está certamente presente no pensamento da Corte Constitucional brasileira atualmente.

[42] O neoconstitucionalismo surge na Alemanha do pós-guerra, marcada pelas arbitrariedades do conflito. Promove o deslocamento da Constituição para o centro do ordenamento jurídico e consolida a supremacia constitucional, ou seja, a prevalência das disposições constitucionais sobre as demais leis. Passou a Constituição a ter caráter normativo e superior. Destarte, os direitos fundamentais outrora negligenciados agora impõem absoluto respeito e condicionam a atividade dos Poderes do Estado, podendo ser invocados diante das mais diversas situações. Inova também o neoconstitucionalismo em atribuir o resguardo dos direitos fundamentais ao Poder Judiciário e instaurar uma nova forma de interpretação jurídica – a interpretação constitucional – que decorre da normatividade da Constituição e está calcada na incorporação de princípios ao seu texto. Tais princípios, segundo Barroso, diferem das regras propriamente ditas por não serem enunciados descritivos de condutas específicas, mas sim normas que consagram valores ou indicam fins públicos. Daí advém o método resolutivo da ponderação, consubstanciado no sopesamento de princípios constitucionais conflitantes.

[43] Desta forma, surge o pós-positivismo que, como afirma o Ministro do STF, Barroso, busca ir além da legalidade estrita, porém sem superar o direito posto e, embora procure empreender uma leitura moral do Direito, não se vale de categorias metafísicas para realizá-la. O marco teórico do neoconstitucionalismo está pautado em três grandes transformações ou rupturas paradigmáticas: força normativa da Constituição, expansão da jurisdição constitucional e nova interpretação constitucional. O processo de redemocratização do pós-guerra formulou na Europa um novo conceito de Constituição, pela atribuição de normatividade à Carta Magna, antes tida como documento fundante do Estado, de valor jurídico ínfimo. Deixa, portanto, a Constituição de ser um documento meramente político, portador de românticas promessas, para nortear as relações jurídicas que ocorrem sob sua égide, afirmando direitos dos cidadãos, deveres do Estado e atribuições de cada poder que o compõe.

[44] O juiz não é o novo senhor do direito e, mais do que isso, aduz que há uma radical incompatibilidade entre a ideia de Estado e qualquer noção apropriadora do fenômeno jurídico. Para que isso se viabilize, contudo, é necessário bem mais do que uma abstrata crença nas virtualidades emancipatórias de uma aberta exegese dos princípios jurídicos.

[45] Em sentido diverso, Luigi Ferrajoli entende que o constitucionalismo rígido não é uma superação, mas sim um reforço do positivismo jurídico, por ele alargado em razão de suas próprias escolhas – os direitos fundamentais estipulados nas normas constitucionais – que devem orientar a produção do direito positivo.  Para o autor, o neoconstitucionalismo (expressão não defendida em sua obra) representa um complemento tanto do positivismo quanto do Estado de Direito: do positivismo porque positiva não apenas o “ser”, mas também o “dever ser” do direito; e do Estado de Direito porque comporta a submissão, inclusive da atividade legislativa, ao direito e ao controle de constitucionalidade. A esse respeito, coerentemente pontua Albert Calsamiglia apud Oliveira Meneses:  Pienso que el postpositivismo es herdero del positivismo y desplaza su centro de atención hacia problemas que sugieren uma retificación o matización de  algunas de sus teses más importantes: la indeterminación del derecho y la conexion entre derecho y la moral están en la agenda prioritária de la reflexión actual. In: OLIVEIRA MENESES, Natália Juliana. Do Estado-Juiz ao Juiz-Estado: neoconstitucionalismo, ativismo judicial e segurança jurídica no Direito brasileiro. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44112/do-estado-juiz-ao-juiz-estado-neoconstitucionalismo-ativismo-judicial-e-seguranca-juridica-no-direito-brasileiro Acesso em 8.7.2018.

[46] Ao relacionar a segurança jurídica ao exercício jurisdicional implica em considerar a independência do magistrado, na medida em que projeta a adoção de mecanismos limitadores da atividade jurisdicional, ainda que em situações especiais. Afinal, a independência do magistrado no exercício da jurisdição, no âmbito do Estado Democrático de Direito, é essencial, particularmente ao resguardo de direitos fundamentais individuais e coletivos. A observância da independência jurisdicional, entretanto, não se esgota em tais prerrogativas, pois pode restar comprometida a partir de limitações impostas ao seu exercício na busca de simetria, com o propósito de conferir eficácia ao mandamento constitucional da segurança jurídica.

 

[47] Anne-Laure Valembois, indica que a segurança jurídica foi teorizada no séc. XII, quando foram elaborados os primeiros princípios da dialética. Com efeito, continua, foi naquela época que a primeira reflexão universitária, fundada sobre a pesquisa e sobre a resolução de contradições repercute no Direito e conduz, em Bolonha, por exemplo, à redação, em 1139, do Decreto de Graciano que tem por objetivo conciliar os cânones contraditórios editados até então, conferindo, assim, uma coerência ao Direito Canônico. In: Valembois, Anne-Laure La constitutionnalisation de l'exigence de sécurité juridique en droit français, p. 10.

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos