A aplicação da norma disciplinar, embora de enorme importância para o servidor público, ou ainda, para aqueles que militam na área de processo disciplinar, pouco é estudada se comparada aos estudos que envolvem a aplicação da pena no campo das ciências criminais. Esta, muito pesquisada, tem bases sólidas e observação diária pelo Poder Judiciário, por advogados, e aplicadores do direito em geral, o que só colabora para uma compreensão mais adequada, e, porque não, mais justa, sobre o tema. Deveríamos estar nesse caminho no processo administrativo disciplinar, mas ainda não estamos.
Não obstante, é certo que, tanto numa perspectiva de correção de atitudes do servidor faltoso quanto numa perspectiva eminentemente jurídica e dogmática, a aplicação da sanção disciplinar se apresenta ao aplicador do direito com inúmeros tratamentos legais – diversificados em cada ente ou órgão público de nosso país, e que se relacionam diretamente com o exercício do poder disciplinar por parte da Administração Pública.
A pretensão desse artigo não é apresentar a matéria a ponto de esgotá-la, mas, sim, iniciar um estudo sobre a aplicação da sanção disciplinar com base em dois enfoques: a dosimetria da pena e a motivação do ato administrativo. Talvez, os dois pontos de maior importância para esse momento do processo disciplinar.
De início, deve ser considerado que se a lei concede à Autoridade Sancionadora poderes discricionários quando da verificação do merecimento da punição, a pretexto de fomento à realização da norma in concreto, em contrapartida, deve ela também exigir, dessa mesma autoridade, um maior rigor na motivação de eventual penalidade imposta ao administrado.
É que a motivação é elemento essencial do ato punitivo. Sem ela não se verifica o exercício legítimo do poder disciplinar, que irá apenas “capengar até se deparar com o Poder Judiciário”, que, se acionado, fará o necessário controle.
Hely Lopes Meirelles[1] ensina que “denomina-se motivação a exposição ou a indicação por escrito dos fatos e dos fundamentos jurídicos do ato”. Assim, motivar significa apresentar e explicar, de maneira clara e congruente, os elementos fáticos e jurídicos que ensejaram o convencimento da autoridade, e que foram considerados para a formulação do ato.
Por sua vez, Maria Sylvia Zanella Di Pietro[2] explica que:
[...] a motivação é, em regra, necessária, seja para os atos vinculados, seja para os atos discricionários, pois constitui garantia de legalidade que tanto diz respeito ao interessado como à própria Administração Pública; a motivação é que permite a verificação, a qualquer momento, da legalidade do ato, até mesmo pelos demais Poderes do Estado. Note-se que o artigo 111 da Constituição Paulista de 1989 inclui a motivação entre os princípios da Administração Pública; do mesmo modo, o artigo 2º da Lei nº 9.784, de 29-1-99, que disciplina o processo administrativo federal, prevê a observância desse princípio, e o artigo 50 indica as hipóteses em que a motivação é obrigatória.
A motivação do ato administrativo, desta maneira, tanto se apresenta como direito de defesa do administrado contra o arbítrio da administração quanto como garantia para este, eis que a aposição da motivação tem como efeito sumário o afastamento da suspeita de arbitrariedade, de parcialidade ou de perseguição, que, sem ela, seriam quase que evidentes.
Não é demais observar que o dever de motivação está intimamente ligado aos princípios da publicidade, moralidade, e finalidade, valendo dizer que nosso sistema jurídico dá a ele especial importância, positivando-o em vários diplomas.
No caso do Estado de Minas Gerais, verifica-se que o dever de motivação é garantia fundamental do servidor quando submetido a processo punitivo:
Art. 4º – O Estado assegura, no seu território e nos limites de sua competência, os direitos e garantias fundamentais que a Constituição da República confere aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País.
[...]
§ 4º – Nos processos administrativos, qualquer que seja o objeto e o procedimento, observar-se-ão, entre outros requisitos de validade, a publicidade, o contraditório, a defesa ampla e o despacho ou a decisão motivados. (grifei)
A Lei nº 14.184/2002, aplicável ao processo administrativo disciplinar do servidor público civil mineiro, prescreve que:
Art. 2º – A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, finalidade, motivação, razoabilidade, eficiência, ampla defesa, do contraditório e da transparência. (grifei)
Quanto ao processo disciplinar do servidor militar do Estado de Minas Gerais, a Resolução Conjunta nº 4.220/2012 estabelece o seguinte:
Art. 2º O Processo Disciplinar apresenta os seguintes princípios norteadores:
[...]
XI – motivação: a autoridade militar deve apresentar as razões que a levaram a tomar a sua decisão. A motivação é uma exigência do Estado de Direito, ao qual é inerente, entre outros direitos dos administrados, o direito a uma decisão fundada, motivada, com explicitação dos motivos.
Ao prever a motivação como princípio, tanto na Constituição do Estado quanto em leis e atos normativos, o legislador mineiro claramente a elevou ao status de garantia, fazendo com que não seja possível apenas o controle judicial sob parâmetros objetivos, como, também, à lógica do ato, ou seja, permitiu o legislador o controle judicial sobre parâmetros subjetivos, verificando se o ato é razoável e/ou proporcional ao fato que o baseia. Trata-se de controlar as fontes de convencimento da autoridade que pratica o ato, e, quiçá, o seu estado de ânimo.
Dúvidas não há: o dever de motivar o ato punitivo não pode ser afastado a nenhum pretexto, exigindo-se ele em atos vinculados ou discricionários.
Mas qual a relação que o dever de motivar tem com a dosimetria da pena, e estes, com a aplicação da sanção disciplinar? É Simples! Não haverá motivação do ato punitivo sem referência às características do servidor faltoso e aos elementos de prova relativos aos pontos fundamentais do fato, inclusive, àqueles apresentados pela defesa.
Como a sobredita lei que trata do processo disciplinar atinente ao servidor público civil, não apresenta disposições específicas acerca da dosimetria da pena, em flagrante omissão que prejudica diretamente a efetividade da garantia processual da motivação, tomemos como base o sistema de aplicação da pena previsto na norma que trata sobre o processo administrativo disciplinar militar.
Embora a Resolução Conjunta nº 4.220/2012 normatize os processos e procedimentos administrativos aos quais o servidor militar estará sujeito, a norma que estabelece parâmetros para a aplicação da pena é o Código de Ética e Disciplina, Lei nº 14.310/2002, que assim dispõe:
CAPÍTULO II
Julgamento da Transgressão
Art. 16 – O julgamento da transgressão será precedido de análise que considere:
I – os antecedentes do transgressor;
II – as causas que a determinaram;
III – a natureza dos fatos ou dos atos que a envolveram;
IV – as consequências que dela possam advir.
Art. 17 – No julgamento da transgressão, serão apuradas as causas que a justifiquem e as circunstâncias que a atenuem ou agravem.
Parágrafo único – A cada atenuante será atribuído um ponto positivo e a cada agravante, um ponto negativo.
Art. 18 – Para cada transgressão, a autoridade aplicadora da sanção atribuirá pontos negativos dentro dos seguintes parâmetros:
I – de um a dez pontos para infração de natureza leve;
II – de onze a vinte pontos para infração de natureza média;
III – de vinte e um a trinta pontos para infração de natureza grave.
§ 1º – Para cada transgressão, a autoridade aplicadora tomará por base a seguinte pontuação, sobre a qual incidirão, se existirem, as atenuantes e agravantes:
I – cinco pontos para transgressão de natureza leve;
II – quinze pontos para transgressão de natureza média;
III – vinte e cinco pontos para transgressão de natureza grave.
§ 2º – Com os pontos atribuídos, far-se-á a computação dos pontos correspondentes às atenuantes e às agravantes, bem como da pontuação prevista no art. 51, reclassificando-se a transgressão, se for o caso.
Art. 19 – São causas de justificação:
I – motivo de força maior ou caso fortuito, plenamente comprovado;
II – evitar mal maior, dano ao serviço ou à ordem pública;
III – ter sido cometida a transgressão:
a) na prática de ação meritória;
b) em estado de necessidade;
c) em legítima defesa própria ou de outrem;
d) em obediência a ordem superior, desde que manifestamente legal;
e) no estrito cumprimento do dever legal;
f) sob coação irresistível.
Parágrafo único – Não haverá punição, quando for reconhecida qualquer causa de justificação.
Art. 20 – São circunstâncias atenuantes:
I – estar classificado no conceito “A”;
II – ter prestado serviços relevantes;
III – ter o agente confessado espontaneamente a autoria da transgressão, quando esta for ignorada ou imputada a outrem;
IV – ter o transgressor procurado diminuir as consequências da transgressão, antes da sanção, reparando os danos;
V – ter sido cometida a transgressão:
a) para evitar consequências mais danosas que a própria transgressão disciplinar;
b) em defesa própria, de seus direitos ou de outrem, desde que isso não constitua causa de justificação;
c) por falta de experiência no serviço;
d) por motivo de relevante valor social ou moral.
Art. 21 – São circunstâncias agravantes:
I – estar classificado no conceito “C”;
II – prática simultânea ou conexão de duas ou mais transgressões;
III – reincidência de transgressões, ressalvado o disposto no art. 94;
IV – conluio de duas ou mais pessoas;
V – cometimento da transgressão:
a) durante a execução do serviço;
b) com abuso de autoridade hierárquica ou funcional;
c) estando fardado e em público;
d) com induzimento de outrem à prática de transgressões mediante concurso de pessoas;
e) com abuso de confiança inerente ao cargo ou função;
f) por motivo egoístico ou para satisfazer interesse pessoal ou de terceiros;
g) para acobertar erro próprio ou de outrem;
h) com o fim de obstruir ou dificultar apuração administrativa, policial ou judicial, ou o esclarecimento da verdade.
Art. 22 – Obtido o somatório de pontos, serão aplicadas as seguintes sanções disciplinares:
I – de um a quatro pontos, advertência;
II – de cinco a dez pontos, repreensão;
III – de onze vinte pontos, prestação de serviço;
IV – de vinte e um a trinta pontos, suspensão.
Ao que se verifica, o sistema de aplicação da sanção disciplinar adotado pela Polícia Militar mineira é objetivo, pois estabelece um claro método de pontuações que não deixa margem de escolha à Autoridade Sancionadora, que apenas irá fazer a contagem dentro dos parâmetros escolhidos pelo legislador.
Esse método de pontuações, aparentemente, tem como base um critério estanque de aplicação da pena, em que a lei fixa exatamente o montante da sanção, que, portanto, não pode ser escolhido pelo julgador, conforme os seus próprios critérios analíticos e jurídicos e com base nos elementos processuais.
Nas palavras de André Estefam e Victor Gonçalves[3], por meio desse sistema estanque, ao julgador “cabe exclusivamente dizer se o acusado é culpado ou inocente, pois o quantum da pena já está previamente estabelecido no texto legal”. Para os ilustres pensadores do direito penal, “este sistema não pode ser adotado em nosso país porque fere o princípio da individualização da pena”.
Perceba que a Autoridade Sancionadora, nos termos do Código de Ética, não tem quaisquer condições de modificar o quantum da pena. Os critérios são tão objetivos que, decidida a culpabilidade do servidor faltoso, a Autoridade passará a fazer cálculos de acordo com os parâmetros pré-estipulados pela lei. Não há espaço para uma fundamentação caso a caso por parte do aplicador da sanção, ele terá que adicionar e subtrair pontos até chegar à pena adequada (segundo o que quis a lei, não o julgador).
O art. 16 do Código de Ética, supratranscrito, é letra morta na prática, sem qualquer efetividade para a garantia de forma que tem o acusado quanto ao processo disciplinar. As soluções não apresentam fundamentação explicitando: (I) os antecedentes do transgressor; (II) as causas que a determinaram; (III) a natureza dos fatos ou dos atos que a envolveram,e ; (IV) as consequências que dela possam advir.
Apenas é feito um juízo de culpabilidade considerando os elementos constantes nos autos, até porque o “sistema de pontuações” tem aplicação prática após a decisão pela culpabilidade, em, como se disse, cálculo estritamente matemático.
A única disposição que vem a mitigar esse “sistema de pontuações” e aplicação objetiva da sanção disciplinar militar é a previsão do art. 10, que assim dispõe:
Art. 10 – Sempre que possível, a autoridade competente para aplicar a sanção disciplinar verificará a conveniência e a oportunidade de substituí-la por aconselhamento ou advertência verbal pessoal, ouvido o CEDMU.
Essa disposição mitiga, sim, o sistema de pontuações, na medida em que possibilita a autoridade competente a escolha da sanção em detrimento da sanção a que tenha chegado pelas tais pontuações, mas, ainda sim, terá pouco efetividade quanto às sanções de suspensão de até dez dias; reforma disciplinar compulsória; demissão; e perda do posto, patente ou graduação do militar da reserva (art. 24, CEDM).
Com todas as vênias a outros entendimentos, fato é que com a adoção desse sistema de pontuações pela PMMG nos processos disciplinares, não se verifica a explanação da motivação quanto a dosimetria da sanção. Repita-se, essa dosimetria tem sido feita após a solução.
Portanto, pensando em modernização do processo disciplinar, tem-se que o sistema de aplicação da sanção disciplinar adotado no Código de Ética e Disciplina da PMMG deve ser aprimorado, visando a sua adequação ao sistema de garantias previsto na Carta Política de 1988, mormente à individualização da pena, de modo que o julgador tenha maior discricionariedade na quantificação da sanção disciplinar, estabelecendo, obviamente, parâmetros, para que ele não aplique uma pena tão leve que não chegue a refletir a esperada preservação da disciplina na Tropa, mas, também, para que ele não aplique pena tão grave a ponto de esta não guardar peso com o ato praticado pelo servidor.
[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 29ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 151.
[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 200.
[3] ESTEFAM, André. Direito penal esquematizado: parte geral. André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves. – 2ª ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2013, p. 533.