Superior Tribunal de Justiça reconhece o direito ao usucapião especial urbano para os imóveis de utilização mista

07/06/2020 às 21:28
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Artigo visa analisar recente decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre a possibilidade de reconhecimento da usucapião urbana para imóveis com finalidade comercial e residencial

Superior Tribunal de Justiça reconhece o direito ao usucapião especial urbano para os imóveis de utilização mista

De uma forma geral, a usucapião é tratada como o modo de aquisição originária da propriedade móvel ou imóvel, após a posse prolongada da coisa, com o animo de dono. Cuida-se de prescrição aquisitiva, diferente da extintiva, uma vez que, na primeira, o elemento tempo influi na aquisição de direito, ao tempo que, na segunda, este fato fulmina a pretensão de alguém.

É um instituto de utilidade social, haja vista que homenageia a pessoa que dá destinação econômica para o bem, em contraposição aquele que não utiliza da coisa como instrumento de geração de bem estar social. Aqui se revela a aplicação prática do princípio da função social da propriedade, prevista no inciso XXIII do artigo 5º da Constituição Federal.

Nestes casos, como instrumento de defesa, é comum o proprietário que figura no registro de imóveis argumentar o caráter perpétuo da propriedade, porém, quando não confere utilidade ao bem, verifica-se uma espécie de renúncia ao direito em questão, já que este bonifica aquele que prima pela geração de riqueza dos bens.

Dentre os objetivos da usucapião, a regularização jurídica dos imóveis visa conferir segurança e estabilidade para os proprietários de fato da coisa, além de propiciar a prova do domínio. Daí, as transmissões futuras da propriedade do bem se sucederão de forma regular e estável para os novos proprietários.

No direito brasileiro, identificam-se três espécies de usucapião de bem imóvel, quais sejam, a extraordinária, a ordinária e a especial. No tocante ao primeiro, este está regulado no artigo 1.238 do Código Civil, e exige o exercício da posse por si, pelo lapso de tempo de quinze anos, sem descontinuidade, ou impugnação. Neste caso, não há exigência de título ou boa-fé na aquisição e exercício da posse ao longo do tempo.

Admite-se a redução do prazo do usucapião extraordinário na hipótese do proprietário de fato ter estabelecido sua moradia habitual, ou empreendido atividades de caráter produtivo, em observância ao parágrafo único do artigo 1.238 do Código Civil.

Em relação ao usucapião ordinário, sua previsão está assentada no artigo 1.242 do Código Civil, tendo como exigências o prazo de dez anos, de forma contínua e sem resistência, e o justo título, bem como a boa-fé.

Nesta mesma hipótese, o prazo pode ser reduzido para cinco anos caso o imóvel tenha sido adquirido, onerosamente, nos termos do parágrafo único do artigo 1.242 do Código Civil, “com base no registro constante do respectivo cartório, cancelado posteriormente, desde que os moradores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico. Em resumo, a usucapião é possível, com prazo reduzido, havendo a estudada posse qualificada pelo cumprimento de uma função social, em um sentido positivo” (TARTUCE, 2019, p. 298).

Quanto ao usucapião especial urbano, também conhecido como constitucional, aqui se apresentam os seguintes requisitos, quais sejam, o imóvel estar situado em área urbana, ter no máximo 250 m2, o exercício da posse de forma mansa, pacífica e incontestada por cinco anos, com a finalidade de moradia, associado ao fato de não ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural, e não ter sido beneficiado anteriormente com esta mesma espécie de usucapião.

Nota-se que os artigos 9º da Lei nº 10.257/2001, 183 da Constituição Federal, e 1.240 do Código Civil elegeram como condição que o imóvel esteja sendo utilizado para a moradia do proprietário de fato ou de sua família, entretanto, em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça adotou esta possibilidade legal para a conjuntura de utilização mista do imóvel, isto é, se ocorrer o uso concomitante residencial e comercial do bem.

A leitura do acórdão do Superior Tribunal de Justiça indica que a ação tinha por objetivo o reconhecimento do domínio em relação a área residencial e a comercial, uma vez que ambas não ultrapassavam o limite de 250 m2, e o recorrente estava na posse há cinco anos de forma contínua. Tal pedido teve como fundamento jurídico o artigo 183 da Constituição Federal.

Registre-se que a maior parte do imóvel era utilizado para fins comerciais, por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o Código Civil não exige a exclusividade da utilização residencial do bem para que seja declarado o domínio.

Para tanto, do mesmo modo, empregou o entendimento do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a legislação municipal de parcelamento e uso do solo urbano que fixa tamanho mínimo do lote urbano não impede o reconhecimento do usucapião especial urbano, mesmo que a área a ser usucapida seja inferior ao lote previsto na legislação.

Esta circunstância de uso combinado - residencial e comercial - ocorre com frequência. Considerando o grave quadro econômico e social que atinge o país, é comum que as pessoas utilizem uma parte do espaço não usado para fins de moradia para o levantamento de uma edificação, que servirá de base para o desenvolvimento de uma atividade comercial, e que sustentará tanto o proprietário ou proprietária quanto sua família.

Prestigiar os usucapientes que usam o imóvel de forma mista, para fins comerciais e residenciais, é prestigiar a função social da propriedade. É reconhecer a realidade econômica e social de um país onde o “empreender” de forma individual ou em família é a única alternativa de sobrevivência para fazer frente as altas taxas de desemprego.

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Outro argumento poderia ser acrescido ao acórdão em sede de Recurso Especial nº 1.777.404 - TO, seria o cenário normativo no qual os prazos são reduzidos para o usucapião ordinário quando há “investimentos de interesse social e econômico”, e para o usucapião extraordinário em que são realizadas “obras ou serviços de caráter produtivo”. Infere-se que o legislador ordinário sempre respeitou os cidadãos e cidadãs que acrescem um diferencial aos imóveis com um prazo mínimo para o usucapião.

Há uma clara intenção do legislador de valorizar o uso dos bens para atingir uma finalidade social e/ou econômica, em detrimento daquelas situações em que os bens servem apenas para acumulação de capital. Percebe-se que não se pode tolher o direito do cidadão de gerar recursos para sua subsistência, posto que a valorização da moradia deve estar em sintonia com o reconhecimento da importância do trabalho.

Assim, acertou o Superior Tribunal de Justiça ao interpretar o artigo 1.240 do Código Civil de forma ampliada, abarcando os imóveis de utilização mista, porquanto esta é a realidade das moradias de parcela significativa da sociedade brasileira.

Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 7 junho 2020.

BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acesso em: 7 de junho 2020.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 7 de junho 2020.

BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105. Acesso em: 7 de junho 2020.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro - Direito das Coisas. 13ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil - Direito das Coisas. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3ª turma). Recurso Especial 1.777.404/TO. RECURSO ESPECIAL. CIVIL. USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA. REQUISITOS PREENCHIDOS. UTILIZAÇÃO MISTA, RESIDENCIAL E COMERCIAL. OBJEÇÃO NÃO EXISTENTE NA LEGISLAÇÃO DE REGÊNCIA. ANÁLISE PROBATÓRIA. DESNECESSIDADE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. Ação ajuizada em 20/01/2003, recurso especial interposto em 28/06/2018, atribuído a este gabinete em 27/11/2018. 2. O propósito recursal consiste em determinar se, a área de imóvel objeto de usucapião extraordinária, nos termos do art. 1.240 do CC/2002 e art. 183 da CF/1988, deve ser usada somente para fins residenciais ou, ao contrário, se é possível usucapir imóvel que, apenas em parte, é destinado para fins comerciais. 3. A usucapião especial urbana apresenta como requisitos a posse ininterrupta e pacífica, exercida como dono, o decurso do prazo de cinco anos, a dimensão da área (250 m² para a modalidade individual e área superior a esta, na forma coletiva), a moradia e o fato de não ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural. 4. O art. 1.240 do CC/2002 não direciona para a necessidade de destinação exclusiva residencial do bem a ser usucapido. Assim, o exercício simultâneo de pequena atividade comercial pela família domiciliada no imóvel objeto do pleito não inviabiliza a prescrição aquisitiva buscada. 5. Recurso especial provido. Relator: Ministra Nancy Andrighi. Data do julgamento: 05/05/2020.

Sobre o autor
Gil Braga de Castro Silva

Defensor Público do Estado da Bahia.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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