PANDEMIA - Bloqueios municipais contra “turistas” – ilicitudes e equívocos
Em razão da pandemia, alguns municípios começaram a tentar obstruir o fluxo de pessoas de outras localidades durante os feriados e finais de semana, em regra, por lei ou decreto, porém, há casos de judicialização. O exemplo mais recente vem das cidades de Ubatuba, São Sebastião, Ilhabela, Bertioga, Caraguatatuba, Itanhém, Peruíbe, Itariri e Pedro de Toledo, as quais, com receio dos feriados antecipados na capital, mediante iniciativa do Ministério Público, foi ajuizada medida para o bloqueio do acesso de turistas “enquanto perdurar o estado de emergência decorrente da pandemia do COVID-19, ao fundamento de que o trânsito de pessoas advindas de outras regiões tem o potencial de disseminar a doença (altamente contagiosa)”. O juízo local, deferiu liminar restringindo o trânsito de não residentes. Acertadamente o Tribunal de Justiça de São Paulo no dia 20/05 mediante decisão do seu Presidente Desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco, suspendeu os efeitos mediante provocação da Procuradoria do Estado de São Paulo. [1] O equívoco de tais medidas restritivas a liberdade de locomoção, é evidente, onde o medo fala mais alto que a razão. Com a finalidade combater a pandemia de COVID-19, foi editada a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, a qual prevê que compete às autoridades administrativas, no âmbito de suas competências, adotar diversas providências para tanto (artigo 3º), entre as quais locomoção interestadual e intermunicipal, porém a norma ressalva que essas restrições terão caráter “excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária” (artigo 3º, VI). Pela simples leitura do texto, sem muito esforço hermenêutico, fica evidente que a adoção pelas autoridades administrativas, de tais medidas, deve ser antecedida de estudo técnico sanitário, supervisionado pela ANVISA. Mas não é só. Sobre tal vertente – locomoção intermunicipal - a norma estadual prevalece sobre aquela editada no contexto municipal, considerando o disposto nos artigos 24, inciso XII, e 30, inciso II, da Constituição Federal. A Carta Magna aponta que os temas ligados à proteção e à defesa da saúde, integram a competência legislativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal, excluído o Município, que recebe, no artigo 30, inciso II, do Codex, competência legislativa suplementar, "no que couber". Resta evidente, que no tocante ao tema, a norma estadual se coloca hierarquicamente acima da municipal, logo, desafeto a urbe, legislar nesse sentido. Tal questão já foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal, em voto do Ministro Alexandre de Moraes nos autos da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 672, no que se refere às competências legislativas dos entes federativos. No caso dos municípios praianos citados, a decisão de suspensão das liminares ainda fez severa advertência à indevida judicialização de matéria afeta à saúde pública: “A gravidade da pandemia recomenda seja a menor possível a judicialização da matéria, porque intervenção pontual nas políticas públicas compromete a organização dos atos da Administração. Nesse sentido, ao Poder Judiciário parece lícito intervir apenas e tão-somente em situações que evidenciem omissão das autoridades públicas competentes, capaz de colocar em risco grave e iminente os direitos dos jurisdicionados”. A advertência não poderia ser mais lúcida, pois questão de tamanha complexidade, tanto gerencial como sanitária, não pode ser decidida pelo Judiciário, a míngua de maiores estudos e impactos na vida dos jurisdicionados, como aduz o Presidente da Corte: “A esse acresço o fato de que o ato judicial em análise introduziu modificações nas políticas públicas, âmbito de atuação primordialmente reservado ao Poder Executivo, de forma a dificultar o adequado exercício das funções típicas da Administração e a comprometer a condução coordenada das ações necessárias à mitigação dos danos provocados pela COVID-19”. Os municípios que se aventuram nessa seara, alegam como principal razão da pretensão, a garantia da ordem pública, sem considerar que o cidadão não residente tem o direito de exercitar uma garantia fundamental (direito de ir e vir). Segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, no conceito de ordem pública, compreendem-se a normal execução dos serviços públicos, o regular andamento das obras públicas e o devido exercício das funções da Administração pelas autoridades constituídas, etc. [2] ou seja, situações diversas das que ocorrem em razão da pandemia. Enfim, os agentes públicos que buscam tal iniciativa, confundem ordem pública com segurança sanitária. Como alguns agentes públicos ignoram certas garantias da nossa Constituição Federal, saudável relembrar o artigo XIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos: Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado.[3]
Jose Antonio Gomes Ignácio Junior
Advogado, Professor de Direito na Faculdade Eduvale de Avaré, Mestre em Teoria do Direito e do Estado, Especialista em Direito Tributário, Eleitoral e Publico (lato sensu), Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa Luiz de Camões (Portugal), autor de artigos e livros jurídicos.
[1] Processo n. 2054679-18.2020.8.26.0000
[2] STF-AgRg 112, Rel.Min. Ellen Gracie, j. 27.02.08; Pet-AgRg-AgRg 1.890, Rel. Min. Marco Aurélio, red. ac. Min. Carlos Velloso, j. 01.08.02; SS-AgRg 846, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 29.05.96; e SS-AgRg 284, Rel. Min. Néri da Silveira, j.11.03.91).
[3]https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf