Em razão da pandemia de Coronavírus, foi editada a Lei nº 13.979/2020, regulamentada pela Portaria nº 356/2020 do Ministério da Saúde.
O art. 3º da Lei n. 13.979/20 traz um rol de medidas a serem adotadas para o enfrentamento da emergência de saúde pública, dentre as quais se encontram o isolamento, a quarentena, a realização de exames médicos, testes laboratoriais, vacinação, tratamentos médicos específicos, dentre outras.
Aqui em Mato Grosso do Sul, foi editado o Decreto Estadual nº 15.391/20 que, em seu art. 8º, estabeleceu que para o enfrentamento da emergência de saúde decorrente do Coronavírus, poderão ser adotadas as medidas de isolamento, quarentena, determinação de realização compulsória de vacinas, entre outras. O Decreto Estadual nº 15.396/20 também estampa diversas medidas de prevenção a serem adotadas no território sul-mato-grossense.
E assim, em cada município, os gestores municipais passaram também a editar atos, quase que em sua totalidade Decretos, com intuito de regrarem as medidas a serem adotadas em âmbito local, observando – ao menos é isso que se espera –as peculiaridades de seu município.
Fator a ser lembrado é que, conforme as últimas decisões do Supremo Tribunal Federal nas ADIs nºs 6341 e 6443, essas normativas devem ser precedidas de “recomendação técnica e fundamentada”.
Ainda, conforme se depreende da decisão plenária face as ADIs nºs 6421, 6422, 6424, 6425, 6427 e 6428 (ajuizadas contra a Medida Provisória 966/2020), os gestores devem agir com observância de “normas e critérios científicos e técnicos”.
Tanto é assim que em diversas localidades do país, o Poder Judiciário está a suspender os efeitos de Decretos que não atendam referidos critérios.
Se é certo que muito se está a acionar o Poder Judiciário frente a Decretos que tratam da flexibilização das medidas, também é certo que para imposição de medidas restritivas, também há de haver necessária e prévia análise técnica para sua fundamentação e exigência, conforme também está a ocorrer em muitas comarcas do país.
Assim, antes de adentrar na análise propriamente dita do imperativo penal, é importante que haja essa compreensão.
Dispõe o art. 268 do Código Penal:
“Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.
Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.”
Conforme se observa, a norma visa a tutelar a saúde da coletividade (incolumidade pública).
O tipo destaca “determinação do poder público”, ou seja, trata-se de norma penal em branco, que demanda a existência de um ato legalmente emanado do poder público, e que tenha por finalidade específica impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa.
Conforme vasta normativa sanitária, o Coronavírus enquadra-se como doença contagiosa e que pode ser introduzida ou propagada em determinada localidade.
O delito em tela é de natureza dolosa, não havendo previsão de modalidade culposa, ou seja, é necessário demonstrar que o sujeito, tendo conhecimento da vedação de determinada conduta pelo poder público, de forma consciente, exteriorize conduta para seu descumprimento.
Para a configuração do crime não é necessário que o descumprimento da norma realmente introduza ou propague o Coronavírus, tratando-se de crime de mera conduta e de perigo abstrato, que se consuma com a violação do mandamento de obediência à norma do poder público para o fim específico mencionado.
Pode haver configuração de sua forma tentada, a depender da característica da vedação prevista pelo poder público e, ainda, caso seja possível fragmentação de atos para sua consumação, com eventual percurso do iter criminis.
O delito é de ação pública incondicionada e, tratando-se de norma de pequeno potencial ofensivo (Lei nº 9.099/90, art. 61), a competência para seu processamento e julgamento será do Juizado Especial Criminal.
Qualquer pessoa pode ser autor do crime e, a depender de sua condição, pode ter sua pena aumentada (vide parágrafo único).
Deste modo, em um momento de pandemia como o atual, havendo embasamento técnico e científico para que o gestor estampe medidas restritivas à população, a qual deve levar em consideração os aspectos e circunstâncias próprios de sua localidade, caso haja o descumprimento, há o poder-dever das autoridades locais em agirem, com vistas à preservação da saúde da coletividade.
Contudo, é preciso muita responsabilidade, análise e, conforme destacado, fundamentação técnica e científica, para que o gestor imponha ao cidadão medidas que restrinjam seus direitos e garantias, elementos esses essenciais à vida humana e previstos como cláusulas pétreas na Constituição Federal, os quais somente em formatação temporária e excepcional podem ser momentaneamente mitigados ou tolhidos.
Quem acompanha o panorama nacional está a constatar a balbúrdia legislativa sobre a questão, já que União, Estados e Municípios, ao mesmo tempo, estão a editar regramentos sobre a conduta do cidadão frente ao Coronavírus.
Essa situação se intensificou após a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 6341, onde se consignou que União, Estados e Municípios podem legislar sobre medidas frente à pandemia de Coronavírus, confirmando os ditames do art. 23, II, da Constituição Federal.
Em meio a enxurrada de normas e até mesmo contradições entre elas, há uma pluralidade de entendimentos ditos técnicos e científicos que, somados as fakenews e discussões tomadas de ideologias e bases políticas, colocam o cidadão em estado de aflição, pressão e confusão.
Nessa esteira, seria demasiado falar que em alguns casos ocorrerão os chamados erros de tipo (Código Penal, art. 20) ou erro de proibição (Código Penal, art. 21)? A discussão, frente a cada caso apresentado, tomará seus rumos.
Veja que a junção do art. 268 do Código Penal com uma norma do poder público para enfrentamento ao Coronavirus, traz ao mesmo tempo a confluência de uma norma penal em branco com uma (ou várias) normas de caráter temporário e excepcional, o que formam base para acender uma luz de alerta ao aplicador da lei, por ocasião da análise do caso prático posto.
Normas com expressa previsão de poder de polícia e sanções de caráter administrativo talvez fossem mais interessantes aos gestores municipais, lembrando-se da tutela criminal como ultima ratio e o caráter subsidiário e fragmentário do direito penal.
Eventual entendimento de insuficiência das demais normas de tutela não deve ser prontamente e indiscutivelmente aceita, já que a busca do pálio da legislação criminal enseja maior rigor e seriedade.
Caso a norma complementar do tipo penal em branco do art. 268 do Código Penal, como por exemplo, um Decreto Municipal (norma penal em branco heterogênea), seja eivado de vício de fundamentação técnica e/ou científica (ou sua ausência), nada obstante as discussões jurídicas existentes, é de se aquilatar até onde deve haver a incidência da norma penal em lume, em face ao que foi exposto acima.
A exoneração de responsabilidade poderia ser aferida, diante de possível aniquilação da norma do poder público, a qual se figura como complementar ao tipo penal (acessoriedade administrativa), ante sua flagrante inconstitucionalidade, nos termos das ADIs nºs 6341, 6443, 6421, 6422, 6424, 6425, 6427 e 6428, julgadas recentemente pelo Supremo Tribunal Federal.
Ademais, é preciso lembrar que a norma do poder público municipal também não pode violar as regras de competência insculpidas na Constituição Federal.
Assim, ainda que a pretexto de disciplinar a conduta dos cidadãos frente ao Coronavírus, o Poder Executivo Municipal não pode usurpar as competências privativas da União e do Estado.
Caso ocorra referida violação, também não há que se falar em validade da norma administrativa municipal e, assim, também não haverá o aperfeiçoamento da norma penal em branco, por falta de sua complementariedade necessária.
Ante o exposto, o momento é de mobilização frente a pandemia de Coronavírus e o imperativo contido no art. 268 do Código Penal está à disposição das autoridades para referida finalidade.
Contudo, sua aplicabilidade deve obedecer ao regramento do ordenamento jurídico pátrio e ditames hermenêuticos estampados recentemente pelo Supremo Tribunal Federal nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade supramencionadas.