O NOVO PARÁGRAFO QUINTO DO ARTIGO 171 DO CÓDIGO PENAL

10/06/2020 às 14:33
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O ARTIGO DISCUTE SOBRE A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO RETROATIVA DO NOVO PARÁGRAFO QUINTO DA LEI 13.964/19 ÀS HIPÓTESES DE AÇÃO PENAL POR CRIME DE ESTELIONATO.

O NOVO PARÁGRAFO QUINTO DO ARTIGO 171 DO CÓDIGO PENAL

Rogério Tadeu Romano

Ao interpretar uma mudança introduzida pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) não conheceu de habeas corpus que buscava a aplicação retroativa da regra do parágrafo 5º do artigo 171 do Código Penal para anular o processo que resultou na condenação de um vendedor pelo crime de estelionato.

Para o colegiado, a regra – que exige a representação da vítima como pré-requisito para a ação penal por estelionato – não pode ser aplicada retroativamente para beneficiar o réu nos processos em curso, pois isso não foi previsto pelo legislador ao alterar a redação do artigo 171 no Pacote Anticrime.

Segundo o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, relator, a Lei 13.964/2019 transformou a natureza da ação penal no crime de estelionato, de pública incondicionada para pública condicionada à representação do ofendido (salvo algumas exceções) – mudança que só pode afetar os processos ainda na fase policial.

De outro modo – ressaltou o relator, citando o jurista Rogério Sanches Cunha –, a representação passaria de condição de procedibilidade da ação penal (condição necessária ao início do processo) para condição de prosseguibilidade (condição que deve ser implementada para o processo já em andamento poder seguir seu curso).

Para o ministro, o entendimento mais acertado é o de que a representação da vítima possa ser exigida retroativamente nos casos que estão em fase de inquérito policial, mas não na hipótese de processo penal já instaurado.

A decisão se deu no bojo do HC 573.093.

No entendimento de Filipe Magliarelli e Victor Campos Fanti(O direito de representação do estelionato na lei anticrime e as consequências práticas para os ofendido - Migalhas), tal regra sobre a necessidade de representação se aplica também quanto às formas equiparadas de estelionato, como disposição de coisa alheia móvel, alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria, defraudação de penhor, fraude na entrega da coisa, fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro e fraude no pagamento por meio de cheque.

Entretanto, não será aplicável a outras fraudes, como duplicata simulada, abuso de incapazes, induzimento à especulação, fraude no comércio, fraudes e abusos na fundação ou administração de sociedade por ações e emissão irregular de conhecimento de depósito ou warrant. Para tais hipóteses, talvez pela existência de maior interesse público na tutela dessas condutas, os fatos serão processados mediante ação penal pública incondicionada.

Observe-se o que se dá em matéria de direito processual intertemporal.

O artigo 2º do Código de Processo Penal prescreve que a lei processual se aplicará imediatamente, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.

Tal dispositivo está em vigor, aplicando-se a todas as modificações introduzidas pelo Código de Processo Penal de 1941, no que se relaciona a tais matérias. Estamos diante do princípio da aplicação imediata da lei processual, pois passa a valer imediatamente, colhendo processos em pleno desenvolvimento embora não afete atos processuais efetuados sob o pálio da lei anterior. Não se trata de retroatividade.

Lembro, outrossim, o artigo 6

 da Lei de Introdução ao Código de Processo Penal), que pode ser aplicada pelo aplicador do direito, assim dita:  

Art. 6º As ações penais, em que já se tenha iniciado a produção de prova testemunhal, prosseguirão, até a sentença de primeira instância, com o rito estabelecido na lei anterior.

Ainda trago à colação o artigo 13 do mesmo diploma legal:

Art. 13. A aplicação da lei nova a fato julgado por sentença condenatória irrecorrivel, nos casos previstos no art. 2º e seu parágrafo, do Código Penal, far-se-á mediante despacho do juiz, de ofício, ou a requerimento do condenado ou do Ministério Público.

§ 1º Do despacho caberá recurso, em sentido estrito.

§ 2º O recurso interposto pelo Ministério Público terá efeito suspensivo, no caso de condenação por crime a que a lei anterior comine, no máximo, pena privativa de liberdade, por tempo igual ou superior a oito anos.

.A regra é que seja ela aplicada tão logo entre em vigor e, usualmente, quando é editada, nem mesmo vacatio legis possui. É pacífica a doutrina do direito intertemporal no sentido de que as normas sobre organização judiciária e jurisdição se aplicam de forma imediata aos processos em curso.

 No caso em tela, trata-se de norma mista.

Dito isto, trago a colação as reflexões de Taipa de Carvalho(Sucessão de leis penais, Coimbra, pág. 219 e 220) quando afirmou que ̈está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material –que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais formais ̈, advertindo que dentro de uma visão de ̈hermenêutica teológico-material determine-se que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável. ̈

Corrente mais extensiva, da qual faz parte Gustavo Henrique Badaró(Processo penal. 4. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 102-103) defende que são normas mistas todas as leis processuais que tenham por conteúdo matéria de direito ou relativa a garantia constitucional, o que engloba aquelas que dispõem sobre condições de procedibilidade, constituição e competência dos tribunais, meios de prova e eficácia probatória, graus de recurso, liberdade condicional, prisão preventiva, fiança, modalidade de execução da pena etc.

De acordo com Gustavo Badar(obra citada), “para tais institutos, a regra de direito intertemporal deverá ser a mesma aplicada a todas as normas penais de conteúdo material, qual seja a da anterioridade da lei, vedada a retroatividade da lex gravior. .

Quanto a ação penal, segue-se o princípio da lei mais favorável ao réu. Assim, se determinado delito, à época em que foi praticado, só poderia ser punido mediante ação privada, não poderá, após mudança da legislação, ser punido com ação pública; inversamente, se determinado delito, à época em que foi praticado, poderia ser punido com ação pública, não o poderá mais ser se nova lei exige a ação privada. Tal ilação tem origem em Paul Roubier(Les conflicts de lois dans le temps, tomo II, pág. 641).

Mas, se a ação penal foi recebida há um ato jurídico perfeito, razão pela qual não pode ser objeto de modificação o ato processual.

No passado, lembro o que ocorreu com a entrada em vigor do art. 88 da Lei nº. 9.099/95, estabelecendo-se que, “além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, passaria a depender de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas.” A própria lei, no art. 91, cuidou de dizer que, “nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência.” Àquela época, entendeu-se – doutrina e jurisprudência – que, relativamente aos processos em curso, seria necessária a juntada aos autos da representação, sendo necessária a notificação da vítima (ou do seu representante legal ou dos seus sucessores) para, no prazo de 30 dias, oferecer a representação, sob pena de decadência; muitas nem sequer foram encontradas, acarretando, em muitos casos, a prescrição, já que de decadência não se poderia falar, posto inexistente dies a quo para a contagem do prazo decadencial).

Por mais que consideremos que, em tese, a nova norma processual pudesse ser alcançada pela retroatividade da lei mais benéfica, é inegável que incontáveis processos seriam descartados pela ausência de representação que antes não era exigida. Abrir-se-ia um caos processual, sem que a nova lei penal levasse a isso. Seria afronto o princípio da razoabilidade.

Mas, a nova Lei do Pacote Anticrime não prescreveu nesse sentido.

Há o entendimento de que a transformação da ação penal nos crimes de estelionato contemplados no art. 171 do Cód. Penal, operada através da Lei n. 13.964/19, malgrado ostente natureza penal, porquanto tem potencial efeito extintivo da punibilidade, não atinge o ato jurídico perfeito e acabado. Distinta interpretação implica na indevida amplificação dos efeitos do novo comando legal, com a subversão da natureza jurídica da representação, convolada que restaria em condição de prosseguibilidade.

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O objetivo do réu, que teria cometido o crime de estelionato, previsto no artigo 171 do CP, seria, pelo princípio da causalidade, anular o processo desde o início por falta de condição objetiva de procedibilidade.

Ora, os atos constitutivos do processo subordinam-se à incidência imediata das novas leis, resguardados os efeitos dos atos anteriormente praticados, de maneira válida.

Sabe-se que a Lei 13.964/19 determina com relação ao artigo 171, do Código Penal:

......

§ 5º Somente se procede mediante representação, salvo se a vítima for: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) I - a Administração Pública, direta ou indireta; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) II - criança ou adolescente; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) III - pessoa com deficiência mental; ou (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) IV - maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) –

Percebe-se que, com a introdução do § 5º nesse dispositivo, a natureza da ação penal passou de pública incondicionada para pública condicionada à representação, salvo exceções descritas nos incisos acima destacados.

Sabe-se que, na matéria, Rogério Sanches Cunha escreveu sobre o tema: "se a inicial (denúncia) já foi ofertada, trata-se de ato jurídico perfeito, não sendo alcançado pela mudança. Não nos parece correto o entendimento de que a vítima deve ser chamada para manifestar seu interesse em ver prosseguir o processo. Essa lição transforma a natureza jurídica da representação de condição de procedibilidade em condição de prosseguibilidade. A lei nova não exigiu essa manifestação (como fez no art. 88 da Lei 9.099/1995)" (Pacote anticrime: Lei 13.964/2019 – Comentários às alterações do CP, CPP e LEP. Salvador: Editora JusPODIVM, 2020, p. 65).

Afasta-se, pois, o argumento com relação a retroatividade da lei em comento.

Tal entendimento levaria todas as ações penais em andamento e sem representação no prazo de 6 meses do conhecimento da autoria ao automático arquivamento, em razão da extinção da punibilidade pela decadência do direito de representação. Portanto, o tema posto em debate e sua solução jurídica merecem ser tratados com razoabilidade, para que não levem o tratamento ao crime de estelionato para a contramão do real intento do legislador da lei 13.964/19 – que não foi, por certo, o de impedir o prosseguimento de inquéritos e ações penais.

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca, naquele julgamento, afirmou que os tribunais superiores ainda não se manifestaram de forma definitiva sobre o assunto, em razão do pouco tempo de vigência da nova lei.

Ele destacou que, em tese, pelo fato de o instituto da representação criminal ser norma processual mista ou híbrida, a aplicação retroativa seria possível para beneficiar o réu, mas o Pacote Anticrime não trouxe nenhuma disposição expressa sobre essa possibilidade.

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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