Inicialmente, vale ilustrar um caso concreto para que, de maneira mais didática, possamos entender as diferenças e, sobretudo, o porquê da aplicação de um e não do outro.
Caso concreto ilustrativo: José encomenda a falsificação de documento e utiliza o documento falso para adquirir empréstimo na modalidade CDC junto ao Banco do Brasil. Por qual crime José deverá ser responsabilizado?
Antecipo-lhes, como o próprio título do artigo já induz, estamos diante de duas possibilidades, quais sejam:
Possibilidade 1.
Lei n. 7.492/86.
Art. 19. Obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira:
Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. A pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é cometido em detrimento de instituição financeira oficial ou por ela credenciada para o repasse de financiamento.
Possibilidade 2.
Código Penal.
Estelionato.
Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis. (Vide Lei nº 7.209, de 1984)
Não seria hipótese de imputar a José um dos crimes acima em concurso com o crime de uso de documento falso, capitulado no art. 304 do Código Penal?
A resposta é negativa! Pois, por estrita obediência ao princípio da consunção ou absorção, o crime de estelionato absorve o falso, tornando-se, pois, forçoso concluir que, o uso de documento falso é mera condição necessária para a prática do crime de estelionato. Logo, pratica um só delito.
Ademais, esta é a lição da súmula 17 do STJ, observa-se:
Súmula 17 do STJ: "QUANDO O FALSO SE EXAURE NO ESTELIONATO, SEM MAIS POTENCIALIDADE LESIVA, É POR ESTE ABSORVIDO."
Portanto, ainda que a imputação correta fosse o crime da lei n. 7.492/86, dever-se-ia, por analogia in bonam partem, aplicar o teor da súmula supracitada.
Passada esta visão preambular, adentra-se à análise de qual imputação é a correta.
Imperioso é discernirmos que, para imputar a José a prática do crime do art. 19 da lei n. 7.492/86, deve-se atentar à parte final do artigo - financiamento em instituição financeira.
Perceba, deve-se tratar de financiamento obtido em instituição financeira.
Maior esforço não se faz necessário para chegarmos à conclusão de que o Banco do Brasil é uma instituição financeira, basta fazer mera leitura do artigo 1º, da lei n. 7.492/86.
O cerne da questão reside na dúvida se CDC é financiamento ou não.
Os financiamentos são operações realizadas com destinação específica, em que, para a obtenção de crédito, existe alguma concessão por parte do Estado como incentivo, assim há vinculação entre a concessão do crédito e o patrimônio da União. Também se exige a comprovação da aplicação desses recursos, por exemplo: os financiamentos de parques industriais, máquinas e equipamentos, bens de consumo duráveis, rurais e imobiliários. O que difere, por óbvio, de empréstimo. (LIMA; p. 545, 2020).
Foi por esta razão que a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em caso semelhante fixou o entendimento de que, trata-se de crime de estelionato, vide STJ 3ª Seção, CC 107.100/RJ, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 26/05/2010.
Entendeu-se, ainda, que se não houve crime contra o sistema financeiro nacional, nem tampouco lesão ao patrimônio da União, de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, em situações em que o agente obtenha empréstimos na modalidade de crédito direto ao consumidor (CDC), estaremos diante de lesão exclusivamente à instituição financeira, justificando-se, nesse caso, a competência da justiça estadual, na medida em que o crime fora cometido contra sociedade de economia mista.
Portanto, a título conclusivo, trata-se de crime de estelionato e de competência da justiça estadual.
CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS:
Atentar-se ao fato de que, após as alterações produzidas pela Lei 13.964/19, alcunhada de Pacote Anticrime, o crime estelionato, via de regra, passou a ser de ação penal pública condicionada, vide § 5º, do art. 171 do Código Penal.
Porém, a mudança comporta exceções, constantes no próprio § 5º, do art. 171 do Código Penal:
§ 5º Somente se procede mediante representação, salvo se a vítima for:
I - a Administração Pública, direta ou indireta;
II - criança ou adolescente;
III - pessoa com deficiência mental; ou
IV - maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.
O caso em comento amolda-se a uma das exceções, a constante no inciso I, vez que o Banco do Brasil é sociedade de economia mista integrante da Administração Pública indireta. Logo, continua sob o manto da ação penal pública incondicionada, agora exceção para o crime de estelionato.
Um fraternal abraço! Bons estudos!
REFERÊNCIAS:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7492.htm;
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm ;
https://ww2.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2005_1_capSumula17.pdf
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único/Renato Brasileiro de Lima, pag. - 8ª. ed. rev., ampl. e atual. - Salvador: Ed. JusPodivm, 2020.