Ondas de acesso à justiça
A compreensão do acesso à justiça pela perspectiva das ondas renovatórias é apresentada por Mauro Cappelletti, da Universidade de Florença - Itália e por Bryant Garth, da Universidade de Stanford – EUA.
O referencial teórico está no livro Acesso à Justiça, que, ao tratar das soluções práticas para os problemas de acesso à justiça, apresenta três ondas renovatórias desse acesso. A primeira onda se refere à assistência judiciária aos pobres; a segunda onda diz respeito à representação dos interesses difusos; e a terceira onda cuida do acesso à representação em juízo, numa concepção mais ampla de acesso à justiça.[3]
As ondas representam fases de ampliação do acesso à justiça, marcadas, preponderantemente, por alguns fatores.
A primeira onda é salientada pela existência de esforços voltados à concessão de acesso à justiça aos pobres, pessoas que não possuíam recursos suficientes para pagar todas as despesas necessárias à defesa de seus direitos no âmbito judicial. É nessa primeira fase que se desenvolvem as normas que asseguram o benefício da gratuidade da justiça aos que não podem pagar custas do processo sem prejuízo do próprio sustento, que são criadas unidades judiciárias menos formais, com acesso gratuito, como é o caso dos tribunais de pequenas causas, além de normas que garantem o patrocínio gratuito de causas por advogados dativos e defensores públicos.[4]
A segunda onda é marcada pela tendência de coletivização do processo judicial para tutela dos direitos e interesses metaindividuais. Nessa onda há uma tendência de se garantir permanente representação jurídica dos interesses e direitos metaindividuais. Esse movimento ganha foça em meados da década de 1960, nos estados Unidos.[5] Nesse mesmo período, no Brasil, foi promulgada a lei nº 4.717/1965, regulando a ação popular.[6] Segundo essa lei, qualquer cidadão poderia pretender a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público. Outro marco importante dessa segunda onda foi a Lei nº 7.347/85, que disciplinou a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Depois viria, ainda, o Código de Defesa do Consumidor, que cuidaria dos direitos coletivos em sentido estrito, dos direitos difusos e dos direitos individuais homogêneos, além de outras normas da mesma natureza. O Ministério Público[7] e a Defensoria Pública[8] assumem papéis de relevante importância nessa segunda onda de acesso à justiça.
A terceira onda representa a ampliação do acesso à justiça pela efetivação do processo. Nessa onda se procura aperfeiçoar a prestação da atividade jurisdicional e o sistema de justiça como um todo, objetivando que o processo seja um instrumento eficiente de pacificação social e concretização dos direitos. As normas que tratam de vinculação de precedentes, da efetivação dos meios executivos e da superação consensual de controvérsias no âmbito judicial são exemplos de tendências dessa terceira onda de acesso à justiça.
Dignidade da pessoa humana e acesso à justiça
A gratuidade da justiça é uma das maneiras de garantir o acesso à justiça que, de sua parte, se fundamenta no princípio da dignidade da pessoa humana.
Ao reconhecer que a dignidade humana é concretizada na garantia do acesso gratuito à justiça o Supremo Tribunal Federal se manifestou nos seguintes termos: “[...] Na situação dos autos, a genitora do autor não possuía, à época, condições financeiras para custear exame de DNA. Reconheceu -se a repercussão geral da questão discutida, haja vista o conflito entre o princípio da segurança jurídica, consubstanciado na coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI), de um lado; e a dignidade humana, concretizada no direito à assistência jurídica gratuita (CF, art. 5º, LXXIV) e no dever de paternidade responsável (CF, art. 226, § 7º), de outro. O Min. Luiz Fux salientou o aspecto de carência material da parte – para produção da prova extraída a partir do exame de DNA – como intrínseco à repercussão geral da matéria, tendo em vista a possibilidade, em determinados casos, de o proponente optar por não satisfazer o ônus da prova, independentemente de sua condição socioeconômica, considerado entendimento jurisprudencial no sentido de se presumir a paternidade do réu nas hipóteses de não realização da prova pericial[9].”
Em sentido amplo, os Direitos Humanos são o conjunto de direitos e garantias da dignidade da pessoa humana. Eles representam as faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade humana, que devem ser positivamente reconhecidas pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional. (LUÑO, 1995, p. 48)[10] É possível dizer que, em linhas gerais, os Direitos Humanos são dirigidos à tutela da dignidade da pessoa humana. A dignidade da pessoa se expressa na garantia de ser respeitada, pelo mero fato de ser humana. (COMPARATO, 2010, p. 13)[11]
Na literatura encontramos inúmeras expressões que, guardadas algumas peculiaridades, equivalem a locução Direitos Humanos, como direitos do homem e do cidadão, direitos fundamentais, liberdades públicas, direitos públicos subjetivos etc. Usualmente denominam-se direitos fundamentais as normas que dão concretude jurídica à dignidade da pessoa humana numa ordem jurídica de determinado Estado, ou seja, numa ordem jurídica interna. Já os direitos humanos correspondem às normas que dão densidade jurídica à dignidade da pessoa humana no plano internacional. São os direitos que tutelam a dignidade da pessoa humana no plano internacional, fora do âmbito restrito de uma determinada ordem jurídica Estatal. Substancialmente, direitos humanos e direitos fundamentais se equivalem. A diferença entre eles radica-se apenas no plano de positivação normativa. (SARLET, 2004, p. 110)[12] Adverte-se que a locução direitos humanos seria redundante, considerando que só todos os direitos seriam relacionados ao homem. Não obstante essa ressalva, é recomendável que a locução direitos humanos, continue sendo utilizada, pois, além de já ter se tornado consagrada, expressa, com vigor, o objeto que representa.
Em síntese, o acesso gratuito à justiça pelos necessitados é uma garantia fundamental, diretamente relacionada à dignidade da pessoa humana.
Regime jurídico da insolvência
Como regra, somente os empresários estão submetidos ao regime jurídico da insolvência, disciplinado principalmente pela lei nº 11.101/2005 (Lei de Falência e Recuperação de Empresas – LFRE). Naturalmente, quem não for empresário estará excluído mencionado regime jurídico, a exemplo das cooperativas dos praticantes de atividades rurais, sem registro na Junta Comercial[13]
Apesar da regra geral, contudo, nem todos os empresários estão submetidos ao regime jurídico da insolvência.[14] Logo, determinados empresários, de acordo com a lei, serão parcialmente ou totalmente do sistema falimentar e recuperacional da LFRE.
Os empresários que estiverem totalmente excluídos do regime jurídico da lei n. 11.105/05 não poderão falir nem pedir recuperação judicial. É o que se passa com as empresas públicas e as sociedades de economia mista, conforme indicado no art. 2º da LFRE, com as câmaras ou prestadoras de serviços de compensação e de liquidação financeira, de acordo com o art. 193 da LFRE, e com as entidades fechadas de previdência complementar, segundo o art. 47 da LC 109/2001.
De modo diverso, os empresários parcialmente excluídos do regime falimentar e recuperacional, quando em situação de insolvência, são submetidos a procedimentos específicos para tentativa de superação de crise, diversos dos meios previstos na LFRE. Somente na hipótese em que os procedimentos específicos não se revelarem eficientes para a resolução da crise empresarial é que poderão ser utilizados os processos previstos na LFRE. Em resumo, os empresários parcialmente excluídos da incidência da LFRE, são aqueles que só poderão falir após a realização de procedimentos específicos, diversos do processo falimentar. É o que se passa com os seguintes agentes econômicos: i) instituição financeira pública ou privada[15]; ii) cooperativa de crédito; iii) consórcios; iv) entidades abertas de previdência complementa; v) sociedade operadora de plano de assistência à saúde; vi) sociedade seguradora; e vii) sociedade de capitalização.
Todos os empresários, estejam ou não excluídos do regime jurídico da insolvência, tem direito à gratuidade processual, se presentes os pressupostos legais.
Acesso à justiça e superação consensual de conflitos
No âmbito dos procedimentos de insolvência, o acesso à justiça pode se concretizar pelas vias tradicionais da jurisdição ou pelos meios alternativos de solução de controvérsias, antes ou durante o processo judicial.
Ivan Aparecido Ruiz, reconhece que o acesso à Justiça pode se efetivar pelos meios alternativos de solução de conflitos de interesses, ou pela via jurisdicional, “de forma tempestiva, adequada e eficiente, realizando uma ordem de valores fundamentais e essenciais que interessam a toda e qualquer pessoa. É a pacificação social com a realização do escopo da justiça.”[16]
A Recomendação nº 58/2019 do Conselho Nacional de Justiça sugere que todos os magistrados responsáveis pelos processos de recuperação empresarial e falências, de varas especializadas ou não, promovam, sempre que possível, nos termos da Lei nº 13.105/2015 e da Lei nº 13.140/2015, a composição consensual, pela utilização de métodos consensuais de solução de conflito, dentro e fora do processo. A utilização dos referidos métodos deverá servir para a resolução de todo e qualquer conflito que envolva o empresário em recuperação ou falido. O estímulo à consensualidade também será importante para facilitar resolução de conflitos extraconcursais, que envolvam créditos não submetidos à recuperação, conforme indicado no art. 49, §3º, da Lei 11.101/2005.
Em síntese, a utilização dos métodos consensuais de superação de controvérsias, de modo geral, contribuirá para celeridade e eficiência da prestação jurisdicional, desde que respeitados os parâmetros legais e principiológicos correspondentes.
Direito à gratuidade da justiça da pessoa jurídica em regime de liquidação extrajudicial ou de falência
Diante de todo o exposto, é preciso reconhecer que a empresário, pessoa física ou jurídica, em situação de crise econômico-financeira, deve ser favorecido com os benefícios da justiça gratuida, tanto no âmbito pré-processual (nos procedimentos autocompositivos, por exemplo) quanto no plano processual (nos processos de recuperação judicial ou falência).
Naturalmente, a pessoa jurídica em regime de liquidação extrajudicial ou de falência deve ter direito à gratuidade da justiça, desde que demonstração a impossibilidade de suportar os encargos processuais. Nesse sentido decidiu o Superior Tribunal de Justiça[1].
Esse entendimento foi adotado no seguinte julgado: “ PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DECISÃO DA PRESIDÊNCIA DO STJ QUE NÃO CONHECEU DO RECURSO ESPECIAL DIANTE DA AUSÊNCIA DE JUNTADA DAS GUIAS DE PREPARO E DOS RESPECTIVOS COMPROVANTES DE PAGAMENTO. MASSA FALIDA. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DA HIPOSSUFICIÊNCIA FINANCEIRA. DESERÇÃO CONFIGURADA NA ESPÉCIE. AGRAVO INTERNO DA EMPRESA A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. A jurisprudência desta Corte já manifestou entendimento de que o estado falimentar não presume a hipossuficiência financeira para fins de concessão da gratuidade da justiça, devendo a empresa comprovar tal condição. Precedentes: AgInt no AREsp. 1.014.793/SP, Rel. Min. REGINA HELENA COSTA, DJe 20.4.2017; REsp. 1.648.861/SP, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, DJe 10.4.2017. 2. Agravo Interno da Empresa a que se nega provimento. [...].[2]”
*A assistência jurídica integral e gratuita, prevista no art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal é gênero que compreende as espécies assistência judiciária e justiça gratuita. A assistência judiciária gratuita corresponde ao direito de representação em juízo por procurador com capacidade postulatória, integrante ou não dos quadros da Defensoria Pública. A justiça gratuita (ou gratuidade judicial), por outro lado, corresponde à dispensa do pagamento de todas as despesas, em sentido amplo, do processo. Não obstante essa classificação, neste texto as expressões assistência judiciária, assistência jurídica, gratuidade da justiça etc. são utilizadas de maneira metonímica, sem a correspondente precisão semântica.
[1] Jurisprudência em Teses – Edição nº 148.
[2] (AgInt no AREsp 1069805/SP, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/03/2020, DJe 11/03/2020)
[3] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 31 e seguintes.
[4] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 39.
[5] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 49.
[6] Art. 1º Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista (Constituição, art. 141, § 38), de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos.
[7] Constituição Federal: Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia; III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição; V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas [...].
[8] Constituição Federal: Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados,
[9] RE 363.889, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento 7-4-2011, Plenário, Informativo 622, com repercussão geral.
[10] PERES LUÑO, Antônio. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución. 5. edição. Madrid: Editora Tecnos, 1995, p. 48.
[11] COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7ª edição, rev., ampl. e atual., São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 13.
[12] SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos Diretos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 110.
[13] Enunciado das Jornadas de Direito Comercial do CJF número 97 – O produtor rural, pessoa natural ou jurídica, na ocasião do pedido de recuperação judicial, não precisa estar inscrito há mais de dois anos no Registro Público de Empresas Mercantis, bastando a demonstração de exercício de atividade rural por esse período e a comprovação da inscrição anterior ao pedido. Enunciado das Jornadas de Direito Comercial do CJF número 96 – A recuperação judicial do empresário rural, pessoa natural ou jurídica, sujeita todos os créditos existentes na data do pedido, inclusive os anteriores à data da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis.
[14] Para o estudo do sujeito passivo da falência recomendamos: FERREIRA, Waldemar Martins. Instituições de Direito Comercial. 4ª Volume – A Falência. São Paulo: Livraria Editora Freitas Bastos, 1946, p. 70 e seguintes.
[15] Enunciado das Jornadas de Direito Comercial do CJF número 81. Aplica-se à recuperação judicial, no que couber, o princípio par condicio creditorum.
[16] RUIZ, Ivan Aparecido. Princípio do acesso justiça. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Processo Civil. Cassio Scarpinella Bueno, Olavo de Oliveira Neto (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/201/edicao-1/principio-do-acesso-justica