A Lei do Agro e os impactos na Recuperação Judicial do produtor rural.

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Impactos da nova Lei do Agro sobre o crédito rural e processos de recuperação judicial

A Medida provisória nº 897/2019, conhecida como “MP do Agro”, foi convertida em Lei do Agro”, com a promulgação da Lei nº 13.986, de 7 de abril de 2020, sancionada com vetos do Presidente Jair Bolsonaro, trazendo diversas mudanças no cenário do agronegócio, especialmente com relação às instituições que operam no mercado privado no agronegócio, ao crédito rural em geral, bem como para empresas de capital estrangeiro.

Além disso, verifica-se a criação de diversos institutos, tais como o Fundo Garantidor Solidário (FGS), o patrimônio rural de afetação e a Cédula Imobiliária Rural (CIR).

Durante a tramitação do projeto de lei no Congresso Nacional, era nítida a preocupação com a adequação à realidade do mercado, e implementação de medidas que flexibilizassem o acesso ao crédito pelo produtor rural.

Contudo, há quem defenda que a nova lei é considerada “Lei dos Credores do Agro”, ao passo que autoriza a constituição de alienação fiduciária sobre imóvel rural quando da emissão da Cédula de Produto Rural (CPR), bem como a constituição do patrimônio rural de afetação para emissão de Cédula Imobiliária Rural (CIR), inclusive em favor de credores estrangeiros, trazendo maior garantia às instituições financeiras e as tradings, que se utilizam destes instrumentos para concessão de crédito, e, também pelas mudanças relacionadas à recuperação judicial.

A recuperação judicial, por sua vez, é um mecanismo jurídico que visa propiciar a reestruturação de uma empresa com problemas financeiros, evitando a falência, em primazia do princípio da preservação da empresa, esculpido no art. 47 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.

Cabe ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça admitiu a recuperação judicial do produtor rural, no julgamento do Recurso Especial nº 1800032 / MT, em novembro do ano passado, independentemente da inscrição na Junta Comercial pelo período de dois anos, uma vez comprovado o exercício da atividade por igual período.

Desta forma, a recuperação judicial dos produtores rurais passou a ser uma realidade, tendo implicado o aumento do número de pedidos de recuperação judicial por produtores de todo o país, acarretando um aumento do lobby em favor das tradings do agronegócio, no sentido de neutralizar os riscos eventualmente suportados em razão da medida.

Com isso, evidencia-se, no texto da recente Lei do Agro, a ampliação da constituição de mecanismos de garantia para permitir o acesso ao crédito, sendo eles a alienação fiduciária (opcional para emissão de CPR), que implica a exclusão do crédito dos efeitos da recuperação judicial por força do art. 49, § 3º, LFR), e a constituição de patrimônio rural de afetação (essencial à emissão de CIR), não sujeito a qualquer concurso de credores por força do artigo 10, §4º, I da Lei 13.986/2020.

A facilitação do acesso ao crédito vem como uma consequência da ampliação e simplificação dos mecanismos da garantia ao credor, contudo, a Lei do Agro deixou de trazer resposta para débitos já existentes suportados pelo produtor rural.

Isso porque, os vetos aplicados pelo Presidente da República Jair Bolsonaro vão na contramão do atual cenário de endividamento do setor agrário. A necessidade de edição de uma lei que trouxesse maior acesso ao crédito para o setor é inegável, entretanto não se podem deixar de lado as dívidas preexistentes e que não foram objeto de qualquer previsão no texto sancionado.

A Lei do Agro entrou em vigor sem dispor acerca das medidas que previam melhores condições para pagamento de dívidas já contraídas e afastou artigo que delimitava cobranças, por exemplo, de taxas notariais inerentes ao registro das garantias junto aos cartórios de registro de imóveis, previstas no artigo 56 da Medida Provisória.

Também foi vetado o artigo 59 que previa descontos para liquidação de dívidas contraídas até 31 de dezembro de 2019. A justificativa para os vetos foi a retirada do apoio da Fazenda Nacional caso tais dispositivos fossem sancionados, pois não haveria contrapartida para essa diminuição na arrecadação.

Com isso, verifica-se que a Lei 13.986/2020 trouxe instrumentos facilitadores de acesso a crédito futuro, porém nada dispõe ou altera para que os produtores rurais possam lidar com dívidas preexistentes. Em 2015 o endividamento do setor rural ultrapassava R$ 200 bilhões[1], ou seja, montante vultuoso que de alguma forma será cobrado do produtor rural.

Frente a esse endividamento, não é de surpreender a crescente recorrida, percebida nos últimos anos, ao mecanismo da recuperação judicial por parte de produtores rurais. O julgamento dos recursos REsp nº 10800032/MT e REsp nº 1623502/MT abriu precedentes para que o produtor rural pessoa física tivesse reconhecida a possibilidade de pedir recuperação judicial, conferindo maior proteção ao patrimônio que seria atingível por garantias, por vezes fidejussória, prestadas em função de dívidas decorrentes da atividade empresarial, bem como independente do seu tempo de inscrição na Junta Comercial.

A jurisprudência brasileira vem, ao longo dos anos, auxiliando na interpretação da Lei 11.101/2005, que trouxe muitas inovações em comparação com o diploma legal que a precedeu. Assim, por vezes, o que se observa é uma constante tentativa de adaptação, por um lado dos aplicadores do direito, para proteger a preservação da empresa e, por outro, dos atores financeiros de se esquivarem do concurso de credores.

Nesse sentido, as garantias previstas na Lei do Agro aumentam a exposição do patrimônio do produtor rural, pois são medidas agressivas que não deixam alternativas em caso de inadimplência, senão a perda do bem imóvel, ou de sua parcela garantidora, independente de caso fortuito ou força maior (frustrações de safra em decorrência de adversidades climáticas), sendo permitido ao credor realizar a transferência da propriedade diretamente em cartório.

Desta forma, será necessária maior cautela do produtor rural na tomada de crédito a fim de que não seja colocado nas mãos do credor todo o seu patrimônio, o que, a longo prazo, poderá acarretar um grave problema até mesmo à soberania nacional, com a transferência do agronegócio para as mãos de investidores estrangeiros.

De outro norte, a Lei do Agro, da forma como foi sancionada, tende a tornar o mercado de financiamento agrícola mais competitivo, atraindo novos investimentos, permitindo que os financiadores trabalhem com taxas de juros mais baixas, na medida em que sua exposição a risco é significativamente reduzida pela constituição da garantia fiduciária e patrimônio de afetação e sua não submissão a processo de recuperação judicial.

Nesse jogo de interesses, o que a princípio pode parecer muito favorável ao setor agrário, vendido apenas com a roupagem de trazer maior facilidade de acesso a linhas crédito, pode-se mostrar, mais adiante, um complicador para o próprio tomador de crédito, que não teve a oportunidade de renegociar o endividamento anterior e ainda dará a propriedade indireta da sua fonte produtora para bancos e financeiras que, na eventualidade de não serem pagos, tomarão para si a propriedade.

Assim, em uma análise perfunctória, pode parecer que a Lei n. 13.986/2020, trouxe apenas benefícios ao produtor rural, que passaria a contar com instrumentos aptos a ampliar as possibilidades de concessão do crédito não subvencionado bem como reduzir seus custos. Aliás foi, exaustivamente, divulgado pela imprensa que a nova lei “teria vindo ao encontro da pretensão de todo o setor produtivo” disseminando o ideário que os produtores rurais foram fortalecidos em suas relações jurídicas com bancos, tradings e financeiras.

Em uma análise pormenorizada como aqui realizada, ficou patente que essa afirmação é inválida. Primeiro: porque os instrumentos de acesso a crédito previstos foram “sofisticados” e encarecidos (vide a obrigação de registro de toda e qualquer CPR), não atendendo, assim, os anseios dos pequenos e médios produtores que, terão dificuldades para acessar tais mecanismos de financiamento. Na prática, estes não contemplados. Segundo: porque a pretensão de dar mais segurança aos fomentadores na recuperação de seus créditos é realizada há um custo elevadíssimo para o próprio produtor, pois corrói importante direito subjetivo reconhecido jurisprudencialmente: o de, ainda que não registrado na Junta Comercial, manter sua atividade através da recuperação judicial.

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A “super garantia” criada pela possibilidade de constituir patrimônio rural de afetação (ainda mais privilegiada que a alienação fiduciária), que poderá ser rapidamente acessado pelo credor em caso de inadimplemento da obrigação, termina por esterilizar o direito retro. Isso significa que, ainda que o produtor esteja em meio ao processo de RJ, aquele imóvel (bem de capital), que poderia ser usado para auferir receitas importantes ao soerguimento e portanto, é essencial à atividade econômica, será retirado, imediatamente, da sua propriedade e posse. Assim, por óbvio, as possibilidades de restruturação da atividade empresarial serão drasticamente reduzidas. E ainda: como se trata de uma “super garantia”, aliás como nunca dantes prevista, não há qualquer dúvida, que a partir de agora os já fortalecidos agentes econômicos exigirão essa nova espécie de garantia desequilibrando ainda mais a relação jurídica travada. 

Ressalte-se que não se trata de defender o encarecimento do crédito ou mesmo o uso irrestrito da recuperação judicial pelos produtores rurais. Muito pelo contrário. Tem-se ciência que são as recuperações judiciais fraudulentas que desestabilizam a cadeia e encarecem o crédito.  O que aqui se aduz é que a tentativa de “baratear” o preço do crédito prevendo uma “super garantia” terminará por retirar do produtor rural honesto um direito já reconhecido e, em hipótese alguma, pode ser classificado como benefício ao setor.

Nesse diapasão vale lembrar que o patrimônio de afetação da Lei Ordinária Federal n. 4.591/64, fora previsto para proteger o adquirente, hipossuficiente, em suas relações com as incorporadoras/construtoras, sendo que agora, o é como vimos para proteger justamente, o sujeito mais forte. Por fim, corroborando o aqui defendido, tem-se que o texto aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado Federal suprimiu a previsão originária da MP que atribuía natureza extraconcursal aos créditos provindos de CPRs, o que dificultava justamente a utilização da recuperação judicial, contudo, o texto de final trouxe previsão expressa de não sujeição desses créditos ao concurso de credores, de forma ampla.

Não obstante ter sido essa a escolha fundamental, estranhamente acabou sendo previsto no texto promulgado instituto diverso, mas com o mesmo alcance da previsão rechaçada como alhures defendido. Como dissemos acima: a Lei do Agro, deveria ser chamada de Lei das entidades financeiras.


[1] https://cocapec.com.br/noticias/endividamento-rural-chega-a-r-230-bilhoes-setor-cafeeiro-deve-r-111-bilhoes/ acessado em 23 de maio de 2020.

Sobre os autores
Centro de Mulheres na Reestruturação Empresarial

O Centro de Mulheres na Reestruturação Empresarial visa a promover eventos, discussões e conteúdo jurídico de qualidade vinculados à área de reestruturação de empresas.

Samantha Rondon Gahyva

Sócia no Gahyva e Maldonado Sociedade de Advogados

Jéssica Malucelli Barbosa

Advogada no Lollato Lopes Rangel Ribeiro Advogados

Giovana Harue Jojima Tavarnaro

Administradora Judicial e Advogada da Progresso Consultoria e Reestruturação Financeira

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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