Racismo e injúria racial: Um debate atual e pertinente

17/06/2020 às 20:22
Leia nesta página:

A pertinência do debate sobre o racismo, a injúria racial e a violência policial ganha destaque mundial no pós ocorrido em Minneapolis/Minnesota/EUA. Pretende-se discutir aqui a situação do racismo e da injúria racial no Brasil e os meios de seu combate.

Em 25 de maio de 2020, ocorreu o homicídio de um negro norte-americano chamado George Floyd na cidade de Minneapolis, Minnessota nos EUA. A partir daí ganha destaque o debate sobre o racismo e a violência policial, ligada ao fato, em várias cidades mundo afora, protestos se proliferaram pelas ruas. Neste contexto, entende-se pertinente debater, novamente e sempre, sobre o racismo e a injúria racial no Brasil.

O texto a seguir irá levantar questões concernentes à situação do racismo e da injúria racial no Brasil, bem como os meios de combate adotados pela legislação vigente a fim de erradicá-los. Sobre o racismo, será feita uma análise frente aos fatores históricos relativos ao mesmo no Brasil, apontando a vinda os escravos ao país e a forma de tratamento destes pela sociedade da época, trazendo à análise a situação atual do problema no Brasil.

A conceituação doutrinária do termo racismo também é importante, bem como a citação de princípios constitucionais relevantes ao tema, tais como o princípio da igualdade, que impede o tratamento diferenciado do indivíduo, já que não há distinção entre os brasileiros em função de sua cor, raça, religião. Importante ainda se faz a diferenciação entre preconceito e discriminação, pois esses não são iguais e também não podem ser confundidos, já que o preconceito é uma situação que leva aos atos discriminatórios combatidos pelas normas vigentes, como será demonstrado à frente.

A questão da injúria racial é outro problema, vinculado ao racismo, a ser discutido, estando esse presente na Lei 9.459/97 e no CP, pela Lei nº 10.741, de 2003, o qual possui distinções importantes se comparado ao racismo, não devendo os mesmos serem confundidos já que possuem peculiaridades distintas que devem ser identificadas para a aplicação das sanções legais quando da ocorrência do crime de racismo ou injúria racial.

Deste modo, realizar-se-á uma análise comparativa entre a doutrina, a lei e o entendimento dos tribunais frente ao problema. Após dedicar-se ao debate sobre a injúria racial, segue-se para o crime de racismo, que pode ocorrer, pessoalmente ou por meio da internet, como será demonstrado.

Almeja-se que o conteúdo apresentado contribua no combate ao triste problema que persiste no Brasil e  no mundo, que promova esclarecimentos e gere uma maior conscientização sobre o tema.

1 RACISMO

1.1 ORIGEM NO BRASIL

Araújo, ao analisar, historicamente, a raça e a cor da pele diz que uma das principais questões debatidas acerca de estereótipos e relações sociais, gira em torno do ideal da cor, debates sobre as questões raciais se intensificam na segunda metade do século XIX, principalmente em estudos que pretendem compreender quem é o negro brasileiro, esse motivo incentiva o intercâmbio de teóricos brasileiros para a Europa e América do Norte, em uma tentativa de compreender como a miscigenação se torna diferenciada no Brasil e adquire facetas designadas como multirraciais, diferente, por exemplo, dos Estados Unidos onde a separação do que é determinado socialmente branco e o determinado socialmente negro, eram bem distintas, formando uma sociedade reconhecida como bi-racial. Com isso a ciência passava a estudar como poderia ser definido o negro e o branco no Brasil. (ARAÚJO, 2017, p. 206/207)

Segundo a autora, o exemplo é a experiência de Gilberto Freyre na Universidade de Colúmbia em Nova Iorque, que desenvolve um dos estudos usados como referência para a reflexão dos debates acerca da cor no Brasil, citando a importância dos estudos de Antropologia na Universidade para o desenvolvimento de suas teorias, ele atribuiu a cor a uma questão cultural e envolvida com movimentos econômicos presentes no século XIX. (ARAÚJO, 2017, p. 206/207) Observância essa que embasa a concepção da sociedade nacional frente a questão debatida, deixando evidente a influência de fatores como cultura e economia para a concepção atual. Araújo complementa ainda que naquele momento estudado, a antropologia subdividia as categorias de entendimento de cor de pele. Em 1872, o censo brasileiro identificava quatro grupos básicos, o branco, o caboclo, o negro e o pardo. (ARAÚJO, 2017, p. 206/207)

Oliveira Vianna define as características determinantes para a compreensão da cor do indivíduo entre o (I) branco como sendo puro e contendo fenótipos de branco, (II) o caboclo e o negro, fazem parte do mesmo grupo de entendimento do negro, (III) o pardo, entendido como mestiço estaria entre as categorias, só que em um lugar abstrato. (ARAÚJO, 2017, p. 206/207)

Desse modo, é preciso compreender que os estudos de Freyre e Vianna passam pelo ideal de uma suposta consequência de “branqueamento” para a sociedade brasileira, no pensamento de ambos os autores, é possível perceber que mesmo todos os grupos, negros e o mestiço, considerados inferiores ao ideal de “branqueamento”, mas dentro da organização negra havia uma hierarquização onde quanto mais claro for o tom de pele, mais “próximo” estaria desse ideal, a mestiçagem seria um problema que demonstrava um ponto frágil em uma sociedade que buscava os padrões dos países chamados desenvolvidos, mas ela supostamente, denunciava a proximidade com o clareamento da população, para isso estes e outros teóricos incentivavam a migração Europeia para o Brasil, a fim de, acelerar o processo de chegada ao ideal de “pureza”. (ARAÚJO, 2017, p. 206/207)

Com o surgimento de outros estudos sobre a temática, os teóricos refutaram esses pensamentos renovando o entendimento de cor e raça para distinguir os grupos sociais, e passou a compreender a divisão como raças. Na interpretação de Araújo o mesmo se deu da seguinte forma:

[...] segundo Donald Pierson, a cor era muito mais que pigmentação, agrupando assim outras características como o tipo de cabelo e traço fisionômico, teorias como a de Pierson incentivaram um pensamento de que cor seria apenas relativo e ela era designada pela posição econômica do indivíduo, em alguns pontos concorda com Gilberto Freyre, atribuindo-o assim a chamada “democracia racial”, só que Pierson identifica um chamado sistema de classes, onde o indivíduo pode ascender socialmente através da posse. Para Freyre isso se torna impossível, devido à inferioridade do negro e do mestiço perante o sistema, mesmo que este ascendesse socialmente, sua condição de cor não o permitiria ocupar lugares que os brancos ocupavam. (ARAÚJO, 2017, p. 206/207)

Azevedo, em sua obra “As Regras do namoro à antiga”, ao estudar o ideal de cor no Brasil compreendia o processo de embranquecimento como, na verdade, a adoção de práticas sociais Europeias, ele completava a tese de Pierson, mas incluía os hábitos e vestimentas, como ato de embranquecer-se, ele analisou em seu estudo, que o status se torna fundamental na construção após a abolição da escravatura, onde a relação entre branco e negro, antes senhor e escravo, se dilui formando três classes, alta, média e baixa. Então, é possível perceber através de teorias de alguns estudiosos, que a sociedade se modificava, e de alguma forma, certos pensamentos alteram a experiência em relação ao tempo estudado. (AZEVEDO, 1996, S.D). Já Freyre, estabelece as relações entre negros e brancos, a partir de um estudo de “vencedor e vencido”, um domínio da “raça adiantada, sobre a raça atrasada”, uma ideia afim de cumprir um ideal de civilidade. (FREYRE, 2013, S.D) No entanto, lamentavelmente, levaram cerca de 20 anos para as teorias de Freyre serem contestadas e Florestan Fernandes, por exemplo, publicou que essas relações na verdade, contribuíram para a designação do negro como sub-cidadão e garantiu a manutenção de privilégios e supremacia branca. (FERNANDES, 1978, S.D)

A partir dessa resumida interpretação das obras de alguns reconhecidos autores, iniciadas na 2ª metade do século XIX, é possível perceber a forte influência do debate acadêmico na construção, ou melhor, manutenção e fortalecimento de teorias racistas no Brasil. Porém, para Chagas o surgimento do racismo no Brasil iniciou-se no período colonial, ou seja, antes mesmo daquelas publicações e debates, mas sim com a chegada dos portugueses que consigo traziam os negros vindos geralmente da Nigéria e Angola. (CHAGAS, 2011, p. 09). O mesmo autor ainda afirma que a pretensão inicial dos portugueses era utilizar-se, como mão de obra, dos habitantes da região; porém, tal pretensão não surtiu o efeito esperado, obrigando-os a trazer consigo seus próprios escravos, como se denota de trecho abaixo:

[...] Eles tinham dificuldades em escravizar os primeiros habitantes que habitavam a nossa região, então usaram os negros para servirem de escravos nos engenhos de cana-de-açúcar. Ninguém interviu contra isso e daí pra frente o preconceito só aumentou. A Igreja Católica que nesse tempo detinha muito poder, nada fez também contra a escravidão, pelo contrário, acreditava que os trazendo da África para o Brasil seria mais fácil cristianizá-los. A ideia do "sangue-puro" também provém desses tempos, em que os nobres de pele pálida com as veias à mostra, se achavam superiores aos de pele escura. Eles acreditavam que existiam seres somente para o trabalho e que eles não tinham alma nem sentimentos. Várias associações aos negros foram surgindo, e alguns negros acabaram aceitando e se conformando com o destino que supostamente Deus tinha dado a eles. Essa era a concepção que muitos tinham, pelo fato da Igreja e os brancos viverem afirmando isso. Sabe-se que a abolição foi um processo lento e que passou por várias etapas antes da sua concretização. E quando finalmente foi decretada a abolição, não se realizaram projetos de assistência ou leis para a facilitação da inclusão dos negros à sociedade. Então, podemos dizer também que o racismo está bastante ligado ao social humano. (CHAGAS, 2011, p.9).

Percebe-se do destacado entendimento, a concepção humana da época quanto aos negros, notando-se que as entidades e pessoas influentes naquele período, não se importavam com os acontecimentos, já que acreditavam que os negros tinham o papel exclusivo de servir aos seus superiores brancos.

Betoni (2014, p. 02) acompanha o raciocínio de Chagas, fazendo ainda algumas considerações acerca do assunto: “O Brasil é um país marcado pelo racismo como sistema, uma forma de organização social que privilegia um grupo em detrimento de outro. O genocídio dos povos indígenas e o sequestro, escravização e desumanização dos africanos – e seus descendentes nascidos aqui – ocupam boa parte da história do país. São fatos que deixaram consequências profundas tanto na forma coletiva de pensar, quanto nas condições materiais dos descendentes desses povos. Apesar de negros e pardos constituírem a maioria da população, sua presença é minoritária nas classes sociais mais abastadas, nos espaços acadêmicos, nos postos de chefia e nas profissões bem remuneradas.”

Assim, Betoni trata a questão como uma desumanização dos escravos africanos, bem como genocídio dos povos indígenas, também utilizados pelos brancos como mão-de-obra escrava, com o intuito de privilegiar grupos considerados na época superiores. Frisa-se ainda que os negros trazidos como escravos ao Brasil eram submetidos às mais severas punições, além de serem deixados em situações precárias. Situações essas que, em muitos casos os obrigavam a fugir e se abrigarem em locais seguros a fim de se verem livres de seus proprietários, como relata Tilstcher (2013, p. 67):

“No período da escravidão no Brasil (séculos XVII e XVIII), negros conseguiam fugir com outros em igual situação, em locais bem escondidos e fortificados, no meio das matas. Estes locais eram conhecidos como quilombos. Nestas comunidades, eles viviam de acordo com suas culturas africanas, plantando e produzindo em comunidades.”

 Quanto ao desenvolvimento do racismo no correr dos séculos, cita-se aqui as palavras de Souza (2017, p.01):

“No século XX, o racismo ganhou novos desdobramentos e teorias cada vez mais incoerentes. O cientista italiano Cesare Lombroso, por exemplo, fundou a fisiognomonia, teoria em que julgava ser possível deduzir o comportamento do indivíduo por meio da simples observância de suas características físicas. Paralelamente, outras teorias defendiam o aprimoramento moral dos homens pela manutenção de uma raça pura e a aversão às misturas raciais. Certamente, foi nesse contexto de ideias que as teorias raciais de Adolf Hitler e do nazismo buscaram toda a sua justificação. O ideário nazista considerava que os judeus, negros e ciganos deveriam ser isolados do território alemão para que a “raça ariana” pudesse manter sua hegemonia. Além disso, o apartheid entre negros e brancos, ocorrido na África do Sul, poderia também ser considerado como um fruto direto das teorias racistas.”

Esses fatos relatam uma situação claramente absurda e vergonhosa, pois nenhum ser humano deveria passar pelas privações e humilhações que eles sofreram. Logo, observando o exposto acima temos muito que aprender com eles, pois mesmo sofrendo tudo isso eles ainda conseguiram forças para lutar e buscar seus direitos diante de uma sociedade racista. Infelizmente, o resultado de tais fatos é percebido nos dias atuais, com a presença insistente de pessoas que ainda acreditam em uma hegemonia dos brancos, e na ilusória superioridade se comparada às pessoas negras. Situação essa que coloca, inclusive, dificuldades a serem enfrentadas pelos educadores, que, devem tratar da questão com cuidado nas escolas já que as crianças se encontram na fase de desenvolvimento da personalidade.

Assim, devem os educadores adotarem uma proposta inclusiva, utilizando-se de métodos que permitam a todos os alunos sentirem-se iguais. É o que relata Diniz (2006, p. 09):

“Na educação, a proposta inclusiva tem-se tornado bandeira de muitos movimentos sociais que constantemente colocam, publicamente, situações educacionais marcadas pela dificuldade em se lidar, no universo da escola, com as diferenças. São situações de discriminação racial, de gênero, de condição social, de sexualidade, de diferenças físicas, mentais e tantas outras, que são absorvidas pela cultura escolar e transformadas em cenas corriqueiras, sem que a presença de um estranhamento e de desconforto frente a tais discriminações possibilitem mudanças nessa realidade.”

Para tanto, faz-se indispensável ainda a doção de materiais didáticos que não façam alusão a exclusão em razão da cor. Medidas essas, importantes, já que constantemente se vê na mídia denúncias concernentes à questão, onde crianças são induzidas por meio de mensagens subliminares contidas em livros escolares a atos racistas. Como por exemplo, no caso de uma mãe brasileira, nordestina, que, ao analisar o livro escolar de sua filha de 03 anos, estudante de uma escola privada, detectou em algumas atividades atos que induziam ao racismo. A título exemplificativo, uma das atividades pedia para que as crianças circulassem pessoas felizes e na imagem havia a figura de uma família de cor branca feliz e outra família negra triste. Em atividade diversa, solicitavam às crianças que levassem as pessoas as suas respectivas funções, dentre elas, havia a imagem de um homem negro com uma vassoura na mão e as demais pessoas de cor branca a funções mais elevadas. (O ESSENCIAL, 2017)

Assim, percebe-se que o problema do racismo, originário do período colonial, ainda é uma constante nos dias atuais, assola a população,  e deve ser combatido com o devido rigor pelas normas vigentes.

1.2 CONCEITO No que tange a sua conceituação, o racismo é compreendido por Souza (2017, p. 01) como sendo:

“O racismo consiste numa teoria que defende a existência de características que podem diferenciar os homens por meio da detecção dessas. A origem do termo vem do latim ratio, que significa categoria, sorte ou espécie. A partir do século XVII essa palavra foi empregada com o sentido de assinalar as diferenças físicas existentes entre os diferentes tipos humanos. Foi a partir desse momento que a procura e identificação das diferenças entre os homens deixou de ser um simples exercício de classificação e identificação. A partir de então, a distinção racial serviu para que certos cientistas defendessem a ideia de que existiam raças “melhores” e “piores”. No século XVIII, as distinções raciais se limitavam à cor da pele, dividindo os grupos humanos entre as raças negra, branca e amarela.’

Já Masson (2011, p. 185) considera o racismo como sendo:

“Racismo é a divisão dos seres humanos em raças, superiores ou inferiores, resultante de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se essa prática nefasta que, por sua vez, gera discriminação e preconceito segregacionista. O racismo não pode ser tolerado, em hipótese alguma, pois a ciência já demonstrou, com a definição e o mapeamento do genoma humano, que não existem distinções entre os seres humanos, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura ou quaisquer outras características físicas. Não há diferença biológica entre os seres humanos, que na essência, biológica ou constitucional (art. 5º, caput) são todos iguais.”

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Frente ao disposto, percebe-se que o destacado doutrinador é enfático ao afirmar que a distinção a qual o racismo busca alcançar não possui qualquer embasamento que possa justificá-lo.

Betoni (2014, p. 01) faz também sua colocação:

“O racismo e as teorias racistas não surgiram do nada, elas possuem uma história própria. Os primeiros discursos racistas derivam de uma visão teológica, são baseados na leitura de uma série de episódios bíblicos, como aquele no qual Noé amaldiçoa seu único filho negro, afirmando que seus descendentes seriam escravizados pelos descendentes de seus irmãos. Essas interpretações serviram para justificar e naturalizar relações de exploração, como a escravização do povo africano pelos europeus. Já no século XVIII surgem as primeiras teorias racistas de cunho científico. Da mesma forma como já fazia com as plantas e os animais, a ciência passa a classificar a diversidade humana e, para tal, usa como critério central a pigmentação da pele. O problema central dessa classificação é que ela conecta a essas características físicas atributos morais e comportamentais depreciativos ou valorativos, a depender de que “raça” se está tratando.”

Munanga (2006, p. 179) destaca ainda que o racismo gera em seus simpatizantes sentimentos de ódio e aversão aos negros, como se vislumbra abaixo:

“O racismo é um comportamento, uma ação resultante da aversão, por vezes de ódio, em relação a pessoas que possuem um pertencimento racial observável por meio de sinais, tais como cor de pele, tipo de cabelo, formato de olho etc. Ele é resultado de crença de que existem raças ou tipos humanos superiores e inferiores, a qual se tenta impor como única e verdadeira. Exemplo disso são as teorias raciais que serviam para justificar a escravidão no século XIX, a exclusão dos negros e a discriminação racial.”

Assim, percebe-se que o racismo é proveniente de um conjunto de fatores históricos, culturais e sociológicos que, unidos, geram posturas comportamentais de determinados grupos que fazem apologia ao mesmo, gerando as consequências aqui debatidas.

1.3 PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO Para uma melhor compreensão da questão discutida, importante se faz o entendimento da concepção dos termos preconceito e discriminação. Assim, o preconceito é considerado por Santos (2010, p. 43) como sendo:

“[...] preconceito é a formulação de ideia ou ideias (que por vezes alicerçam atitudes concretas), calcadas em concepções prévias que não foram objeto de reflexão devida ou que foram elaboradas a partir de ideias deturpadas. É em suma, um “preconceito”, algo intelectualmente não maturado ou objeto de falsa racionalização.”

Silva (2010, p. 135) define o termo da seguinte maneira:

“Preconceituar é anteceder algum juízo de valoração a respeito de algo que estabelecido sobre determinado assunto, coisa ou pessoa antes mesmo de conhecê-los ou, conhecendo-os superficialmente.”

Dessa forma, o preconceito é algo subjetivo, o qual alguém carrega consigo, uma vez que se origina da consciência do próprio sujeito, que o leva a tomar atitudes antissociais e questionáveis devido a certos entendimentos precipitados sobre algo. De tal modo, ocorrendo algum ato preconceituoso, cada pessoa terá opinião sobre um determinado assunto, pois o caso será visto de diversas maneiras cabendo a cada um interpretar de sua melhor forma, gerando com isso diversas contradições. Ressaltando que, quando alguém expõe uma ideia preconcebida baseada em questões raciais, religiosas, sexuais ou qualquer outra forma que afronte a moral e os bons costumes, estará diante de uma atitude preconceituosa negativa, sendo essa conduta considerada reprovável, devendo o indivíduo ser repreendido e punido conforme preceitua a lei vigente. (MORAES, 2013) Lembrando ainda que, a partir do momento em que o preconceito, nega acesso a algum direito, o mesmo se transforma em discriminação, atitude não recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro, sendo perfeitamente punível. (MORAES, 2013) Tratando especificamente do preconceito racial, esse é considerado como um juízo prévio sobre determinado grupo, no qual é levado em conta apenas os fatores raciais ou de origem, levando-se a crer que esse é um julgamento prévio de opiniões já formadas sobre determinada questão.

Quanto à discriminação, essa é considerada como a exteriorização, a materialização do preconceito, envolvendo uma desigualdade de tratamento por razões diversas, dentre essas o racismo. Frente à questão, importante se faz a análise do § 1º, do artigo I, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965, realizada pela ONU (Organização das Nações das Nações Unidas) e, posteriormente ratificada pelo Brasil no ano de 1968:

“§ 1º Na presente convenção, a expressão “discriminação racial” significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência fundadas na raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por fim ou efeito anular ou comprometer o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos domínios políticos, econômicos, sociais, culturais ou em qualquer outro domínio da vida pública.”

Logo, na discriminação racial o que é levado em conta são os critérios raciais, utilizados de forma negativa para segregar um determinado grupo ou pessoa, devido sua raça, cor, idade, sexo, entres outras razões que levam a situações injustas.

Gomes complementa os estudos fazendo uma junção entre discriminação e preconceito:

“Discriminação racial pode ser considerada como a prática do racismo e a efetivação do preconceito. Enquanto o racismo e o preconceito encontram-se no âmbito das doutrinas e dos julgamentos, das concepções de mundo e das crenças, a discriminação é a adoção de práticas que os efetivam. Devemos tomar cuidado para não considerar a discriminação como produto direto do preconceito.” (GOMES, 2005, p. 55)

Frisa-se ainda a colocação de Pereira apud Assis (2013, p. 13) que faz menção ao princípio da igualdade contido na Carta Magna de 1988 e o combate à discriminação, sendo tal afirmação pertinente já que o princípio da igualdade visa impedir a distinção de pessoas por sua cor:

“[...] O princípio fundamental da igualdade e da não-discriminação é parte do Direito Internacional Geral, sendo este aplicável a todos os Estados, independentemente de que sejam partes ou não de determinado tratado. Na atual etapa de evolução do direito internacional, o princípio da igualdade e da não discriminação ingressou definitivamente no domínio do jus cogens. “

Nesse sentido, importante também destacar o princípio da dignidade da pessoa humana que conjuntamente com o princípio da igualdade busca o resguardo dos direitos individuais do cidadão. Senão, veja-se o contido no artigo 3º, inciso IV da CFB/88: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

 Assim, faz-se evidente o intuito do destacado artigo, qual seja, colocar como objetivo fundamental a não discriminação e o preconceito em função da raça.

Quanto ao seu combate, além das leis contidas no ordenamento jurídico nacional, os quais serão apontadas no decorrer dos estudos, medidas como a criação do Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, pela Organização das Nações Unidas (ONU), celebrando este no dia 21 de março em referência ao “Massacre de Sharpeville”, que ocorreu em Sharpeville, na África do Sul, em 1960.  Esta medida ajuda a chamar a atenção quanto a seriedade do problema, conscientizando a sociedade frente à importância do papel de cada um para erradicá-lo.

Portanto, frente aos pontos aqui levantados, constata-se que a discriminação racial é proveniente do preconceito existente quanto a cor, situação essa que atinge diretamente princípios constitucionais como o da igualdade, princípio este que repudia qualquer prática relativa ao problema.

1.4 DO COMBATE AOS CRIMES RACIAIS

A CFB/88 em seu artigo 5º, inciso XLII, tipificou o crime de racismo como inafiançável e imprescritível, com o claro intuito de garantir a dignidade da pessoa humana, igualdade substancial, proibição de comportamento degradante e não-segregação.

Observe que segundo o Art. 5º:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à prosperidade, nos termos seguintes: (...) XLII: A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. (...)”

Em seguida, foi implantada a Lei nº 7.716/89, alterada pela Lei 9459/97, passando a definir os crimes resultantes do preconceito frente à raça ou cor, destacando em seu artigo 20 o seguinte: “Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa. (...)”

Destacando que a apontada lei também pune quem, de modo discriminatório, em função de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, recusa o acesso de pessoas a estabelecimentos comerciais; recusa, nega ou impede a inscrição ou ingresso de aluno a ensino público ou privado de qualquer grau, além de quem impedir cidadãos negros entrem em restaurantes, bares, casas de diversões, clubes sociais abertos ao público, salões de cabeleireiros, barbearias, casas de massagem ou edifícios públicos ou impedir a utilização de qualquer transporte público, ou então impedir ou obstar ao cesso de alguém ao serviço das Forças Armadas. É punível também pela mesma lei o impedimento, por qualquer meio ou forma, do casamento ou convivência familiar e social de pessoas em função dos aspectos apontados acima.

Os funcionários públicos, de acordo com a lei em seu artigo 16, que cometerem racismo, podem perder o cargo. Logo, entende-se que no racismo, diferentemente do que ocorre na injúria racial, não se ataca uma pessoa em específico, mas sim de forma generalizada, ou seja, contra todas as pessoas em função de sua cor ou demais fatores, sendo o mesmo, como determina o artigo 5º da CF/88, imprescritível e inafiançável.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio do Programa Justiça Presente, juntamente com o PNUD(Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento) vêm desenvolvendo ações com recorte racial para contribuir para a elaboração, monitoramento, fiscalização e execução de políticas penais e socioeducativas mais inclusivas. Tais ações, apoiadas pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, objetivam enfrentar o racismo nas relações de controle e responsabilização, fomentando o mesmo tratamento a todas e todos os cidadãos sob custódia do Estado. Entende-se que a questão racial é estruturante em discussões que envolvem privação de liberdade e segurança pública, pois há evidências. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, publicado pelo Ministério da Justiça em 2019 (referente a dados de junho de 2017), a proporção de negros e pardos no sistema prisional é de 63,64%, enquanto na sociedade em geral é de 55,4%. Segundo o Atlas da Violência, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), em 2019, 75,5% das vítimas de homicídio no Brasil em 2017 eram negras.

O crime de racismo é mais amplo do que o de injúria qualificada, pois visa atingir uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça. No caso, o conjunto probatório ampara a condenação do acusado por racismo.

Confirma-se mais uma vez a diferenciação existente entre o racismo e a injúria racial, evidenciando que no racismo o problema abrange sempre um maior número de pessoas, diferentemente da injúria direcionada sempre a uma pessoa em específico, como será aclarado adiante. O fato de uma pessoa, por exemplo, se negar a ser atendida por uma profissional em uma loja, alegando não se sentir bem com ela por causa da sua cor.  Se o fato ocorre de maneira isolada Trata-se de injúria racial ou de forma reincidente, atingindo um número maior de pessoas, ocorre o racismo.

Apesar de todas as tentativas do legislador de erradicar o problema, a questão nos dias atuais é uma constante, principalmente com a internet e as redes sociais, presenças diárias na vida do cidadão. No entanto, utilizada por muitos de forma questionável, com o intuito de promover o racismo, como já ocorrido em diversos casos conhecidos e divulgados pela mídia, com artistas como Thais Araújo ou com a jornalista Maju Coutinho, que já sofreram ataques racistas pelas redes sociais.

Cita-se ainda a decisão do STJ em análise do Habeas Corpus de nº. 388051 RJ 2017/0028552-0 motivado pelo autor do crime, preso pela prática de racismo motivado pela religião da vítima, o qual foi negado pelos ministros sob a argumentação de que o ocorrido encontrava-se evidenciado nos autos, estando comprovado o constrangimento ilegal praticado pelo réu. Veja trechos da decisão:

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. IMPOSSIBILIDADE. ART. 2, § 2º, LEI N. 7.716/89. DISCRIMINAÇÃO RELIGIOSA. RACISMO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO. INOCORRÊNCIA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. AUSÊNCIA DE DOLO DE DISCRIMINAÇÃO. REVISÃO DE CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. EXERCÍCIO DOS DIREITOS DE LIBERDADE DE CULTO E DE RELIGIÃO. LIMITES EXCEDIDOS. SUBSUNÇÃO DA CONDUTA AO TIPO PENAL EM COMENTO. CASO QUE DIVERGE DO PRECEDENTE INVOCADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. (...) 4. Pela simples leitura da sentença condenatória, percebe-se que as condutas atribuídas ao paciente e ao corréu eram direcionadas contra várias religiões (católica, judaica, espírita, satânica, wicca, islâmica, umbandista e, até mesmo, contra outras denominações da religião evangélica), pregando, inclusive o fim de algumas delas e imputando fatos criminosos e ofensivos aos seus devotos e sacerdotes, como assassinato, homossexualismo, prostituição, roubo, furto, manipulação, et cetera. 5. Maiores incursões no sentido de aferir se as palavras proferidas pelo réu, em textos e em vídeos, publicados na internet, possuíam ou não caráter discriminatório, bem como o dolo de incitar a discriminação religiosa, demandaria a aprofundada incursão probatória, providência incompatível com os estreitos limites do habeas corpus. Habeas corpus não conhecido. (grifei). Processo: HC 388051 RJ 2017/0028552-0. Relator: Ministro JOEL ILAN PACIORNIK. Julgamento: 04/05/2017.

Chama a atenção também um caso ocorrido em junho de 2017 de um pai que denunciou uma segurança de um shopping de São Paulo que abordou o pai perguntando se a criança que encontrava-se do seu lado o estava incomodando. Razão dessa atipicidade foi o fato do pai ser branco e a criança de 07 anos ser de cor negra. O pai, que é jornalista questionou de imediato a abordagem, tendo como resposta da segurança que “tinha ordens expressas de impedir que crianças pedintes incomodassem os clientes do shopping”. (G1 SÃO PAULO, 2017) Observe o caso relatado. Na concepção da funcionária, a criança por ser negra, era um pedinte, mesmo estando vestida de forma adequada e acompanhada por um adulto. Aqui não se trata de seguir ordens, mas sim de já haver um entendimento preestabelecido frente aos negros, pois, se no lugar da criança negra, estivesse uma criança branca nas mesmas condições, a abordagem provavelmente nunca teria ocorrido. Assim, pelos exemplos citados, percebe-se que o racismo infelizmente ainda é uma constante no dia a dia da população brasileira, mesmo com as pessoas cientes de que tal prática é crime punível com prisão.

2 INJÚRIA RACIAL

No que se refere a injúria racial, essa foi incluída no artigo 140 do Código Penal brasileiro (CP) em 1997 por meio da Lei 9.459/97, alterada pela Lei 10.741 de 2003 quando incluiu em sua redação a mesma punição se a injúria ocorre em relação às pessoas idosas e portadoras de deficiência. Tal artigo dispõe o seguinte:

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: (...)

§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: Pena - reclusão de um a três anos e multa.

Seu intuito é resguardar a honra subjetiva e a imagem da pessoa, já que o agressor quando comete injúria racial, tem o intuito de rebaixar o ofendido, levando-o a condição de inferioridade frente aos demais, individualizando a vítima como diferentemente ocorre no caso de racismo, como sabiamente aponta Cahali (2005, p. 371):

“Pode ser que o ofendido seja efetivamente da raça negra, mas o objetivo maior do ofensor é mesmo humilhar, rebaixar, conduzir o ofendido à condição de pessoa inferior (...)”

Porém, diferentemente do racismo, o crime de injúria racial é inafiançável, sendo considerado também prescritível até o ano de 2015 quando o entendimento foi modificado, passando a ser considerado imprescritível, como será discutido no decorrer dos estudos.

Frente a essa diferenciação, cita-se a colocação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apontando a distinção entre injúria racial e racismo:

“[...] Embora impliquem possibilidade de incidência da responsabilidade penal, os conceitos jurídicos de injúria racial e racismo são diferentes. O primeiro está contido no Código Penal brasileiro e o segundo, previsto na Lei n. 7.716/1989. Enquanto a injúria racial consiste em ofender a honra de alguém se valendo de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, o crime de racismo atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça. Ao contrário da injúria racial, o crime de racismo é inafiançável e imprescritível. A injúria racial está prevista no artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal, que estabelece a pena de reclusão de um a três anos e multa, além da pena correspondente à violência, para quem cometê-la. De acordo com o dispositivo, injuriar seria ofender a dignidade ou o decoro utilizando elementos de raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.”

Em geral, o crime de injúria está associado ao uso de palavras depreciativas referentes à raça ou cor com a intenção de ofender a honra da vítima. Um exemplo recente de injúria racial já ocorreu em episódio em que torcedores de determinado time de futebol, insultaram um goleiro de raça negra chamando-o de “macaco” durante o jogo. No caso, o Ministério Público entrou com uma ação no Tribunal de Justiça do Estado, que aceitou a denúncia por injúria racial, aplicando, na ocasião, medidas cautelares como o impedimento dos acusados de frequentar estádios. Porém, naquele caso após um acordo realizado, a ação por injúria foi suspensa.

Frisa-se ainda que, conforme análise do artigo 140 do CP, a injúria atinge diretamente a dignidade da pessoa, a qual está diretamente ligada à honra e o seu valor moral. Assim, tal crime possibilita a reparação moral do ofendido como aponta o Código Civil (CC) em seu artigo 953: Art. 953: A indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido. Parágrafo único. Se o ofendido não puder provar prejuízo material, caberá ao juiz fixar, equitativamente, o valor da indenização, na conformidade das circunstâncias do caso. Confirmando a afirmativa, observe o entendimento jurisprudencial vigente que confirma a necessidade de reparação moral quando detectada a injúria, bem como a desnecessidade da vítima provar o abalo sofrido em função do ato, bastando apenas a comprovação do ocorrido:

“INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. INJÚRIA RACIAL. DANOS MORAIS "IN RE IPSA". AUSÊNCIA DE NECESSIDADE DE PROVA DE A VÍTIMA TER SOFRIDO ABALO MORAL. Os danos morais são "in re ipsa", prescindindo de prova, pela vítima de injúria racial, crime previsto no art. 140, § 3º, do CP, de ter sofrido efetivo abalo moral, bastando a demonstração da ocorrência do ato danoso. Processo: RO 00020639220145120019 SC 0002063-92.2014.5.12.0019. Relator: Jose Ernesto Manzi. Julgamento: 08/03/2017.”

Sabe-se que o intuito dessa sanção é, além de coibir tais práticas, educar afim de que o ofensor se conscientize quanto a ilegalidade do ato, desestimulando a repetição do dano. Porém, qual seria o valor adequado a ser determinado? A fim de responder o questionamento, cita-se a apelação cível nº. 1.490.974-1 analisada em 2017 pelo Tribunal de Justiça do Paraná, contra sentença condenatória que determinou o pagamento de R$30.000,00 (trinta mil reais) a título de danos morais em razão da constatação de injúria racial, porém, na Apelação, a quantia foi reduzida a R$ 15.000,00 (quinze mil reais) por considerarem os julgadores que o valor condenatório não poderia gerar enriquecimento sem causa. Observe abaixo:

“ACORDAM os integrantes da Décima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em conhecer e dar parcial provimento à Apelação Cível, nos termos da fundamentação. EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL. INJÚRIA RACIAL PRATICADA CONTRA ATENDENTE DE CAIXA DE RESTAURANTE QUE RECUSOU O RECEBIMENTO DE CHEQUE, CONFORME NORMA DO ESTABELECIMENTO. OFENSAS IRROGADAS À AUTORA NO SEU AMBIENTE DE TRABALHO. DANO MORAL CARACTERIZADO. VIOLAÇÃO DA HONRA SUBJETIVA. DEVER DE INDENIZAR. ARBITRAMENTO DO VALOR DA INDENIZAÇÃO. PEDIDO DE DIMINUIÇÃO ACOLHIDO. VALOR QUE DEVE SER RAZOÁVEL, A FIM DE EVITAR QUE O DANO MORAL CONVERTA-SE EM SANÇÃO PREMIAL EM FAVOR DO OFENDIDO. HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA MANTIDOS. APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDA E PARCIALMENTE PROVIDA. (Apelação nº. 1490974-1. Relator: Guilherme Freire de Barros Teixeira. Julgamento: 23/02/2017).“

Acredita-se que a razão para a inexistência de um patamar predefinido para as quantias indenizatórias, no caso de injúria racial, é a necessidade, para o lançamento da sentença, da análise de cada caso de maneira distinta, seguindo ainda os preceitos contidos no princípio da razoabilidade e proporcionalidade a fim de que a condenação atinja o seu real objetivo, qual seja reparar a vítima, punir e reeducar seu autor.

Importante ainda a menção ao posicionamento do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) em Recurso especial nº. 686.965/DF que tratava do caso ocorrido em 2009 onde um blogueiro praticou injúria racial contra um jornalista, porém, na primeira instância, houve decadência, porque o jornalista apresentou a representação seis meses e 12 dias depois da publicação, teria ultrapassado 12 dias do prazo legal, obrigando-o a levar a questão ao STJ. (VECCHIATTI; CRUZ, 2016). Após análise do caso, os ministros reverteram a decisão, por considerar a injúria racial crime imprescritível, sob a fundamentação de que a questão da imprescritibilidade do delito de injúria racial pelo fato do crime também traduzir preconceito de cor, atitude que conspira no sentido da segregação, vindo a somar-se àqueles outros, definidos na Lei 7.716/89, cujo rol não é taxativo. (VECCHIATTI; CRUZ, 2016, p. 01)

Decisão essa motivadora de interpretações diversas da doutrina, como Nucci que acompanha a fundamentação dos nobres ministros como se percebe de sua colocação que, inclusive, faz duras críticas aos pensadores contrários a tese, argumentando que os mesmos seguem a teoria do achismo, não se atentando à fundamentação e aos fatores motivadores da decisão em tela:

“A minha posição, no sentido de que a injúria racial é racismo (“prática do racismo, na redação da Constituição), como qualquer outro tipo penal descrito na Lei 7.716/89, é antiga, exposta, pela primeira vez, quando foi criado o tipo penal da referida injúria racial (artigo 140, parágrafo 3º, Código Penal) nas minhas obras Código Penal comentado e Manual de Direito Penal. (...) Segundo me parece, pelos comentários publicados, a maioria nem leu o que eu escrevi na nota ao artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal. E muito menos leu o que escrevi e como defini o racismo nos meus comentários à Lei 7.716/89 no meu livro “Leis Penais e Processuais Penais comentadas”. Tem-se tornado habitual, infelizmente, no Brasil, a crítica por “ouvi dizer”. Arrisco dizer que 99% dos que comentaram a decisão respeitável do STJ, que envolveu vários ministros em decisão unânime, limitaram-se a ler o acórdão (se muito). Mas não os meus escritos. Então, começaram a surgir as incongruências e o elevado grau de achismo, algo inaceitável no campo científico. (NUCCI, 2015, p. 01)”

Vecchiatti et al (2016, p. 01) apoia a decisão do STJ alegando que o problema em debate foi, na realidade causado pelos próprios tribunais que diferenciaram o racismo da injúria racial, gerando os questionamentos hoje levantados:

[...] Porém, o que os tribunais fizeram? Ilegitimamente, “legislaram” quando criaram a suposta “diferença” entre “racismo”, enquanto ofensa à coletividade de pessoas por causa de sua “raça”, e “injúria racial”, enquanto uma ofensa motivada por “elementos raciais” que deveria ser considerada não como racismo, mas como uma “injúria racial”. Isso ocasionava a desclassificação do crime, de “racismo” para “injúria simples”, ou, pior, a declaração de atipicidade da conduta. Foi nesse contexto, de verdadeira “tentativa de homicídio” da Lei de Racismo pelos tribunais, que o legislador aprovou a Lei 9.459/97, que incluiu no artigo 140 do Código Penal um parágrafo 3º, que trouxe a qualificadora hoje conhecida como “injúria racial” ao impor a pena de 1 a 3 anos (a mesma do crime de racismo do artigo 20 da Lei 7.716/89) — “se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem”. [...]

Importante mencionar um caso ocorrido em novembro de 2017 onde um ator chamado Diogo Cintra, conta ter sido “segurado com força e violência” por seguranças de um terminal de ônibus, no centro de São Paulo, estes o teriam confundido com um criminoso, após o mesmo sofrer uma tentativa de assalto e buscar auxílio no destacado terminal. O resultado foi que o cidadão foi confundido com um criminoso. (ROCHA, 2017, p. 01). Por consequência, após Diogo comparecer à delegacia de polícia e relatar o ocorrido, o delegado considerou que no caso não houve racismo. Situação totalmente questionável, como se vislumbra do entendimento da advogada e pesquisadora Júlia Drumont:

“[...] A tendência, tanto dos delegados quanto dos juízes, é de desqualificar, ou seja, entender que é somente injúria, por falta do elemento racial, ou ainda, decidir que sequer existiu o crime em alguns casos. Mas precisamos entender que o racismo não acontece apenas quando chamamos alguém de macaco [...]. (DRUMONT apud ROCHA, 2017, p. 01)”

Logo, há uma preocupação frente a essa questão, devendo tanto os órgãos competentes quanto a sociedade darem a devida atenção ao mesmo, para que o país não regrida com atitudes e posicionamentos como os acima apontados.

Frente a todo o exposto, nota-se que, apesar de posicionamentos contrários, persiste a ideia de que a injúria racial se difere do racismo, tanto na esfera civil onde a injúria implica no cabimento de danos morais, quanto no meio criminal, onde, apesar de atualmente ser considerado como um crime imprescritível, ainda é cabível fiança para seus autores.

Reafirma-se que na AREsp 686.965/DF, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a injúria racial deve ser considerada imprescritível.

Percebe-se ainda que a questão, em função da grande repercussão é passível de discussão.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O debate levantou o problema do racismo enfrentado pelo Brasil, o qual, apesar de anos de combate e da existência de leis impostas a fim de punir e desestimular a prática de tal crime, ainda é uma constante na sociedade brasileira. Conjuntamente, tem-se o problema da injúria racial, a qual, apesar de assemelhar-se com o racismo, possui peculiaridades distintas que diferenciam ambos, sendo o intuito do trabalho em tela apontá-los. Assim, concluiu-se que o racismo é um ato praticado por um indivíduo ou conjunto de pessoas com a finalidade de atingir a coletividade que possuam cor, religião, entre outros fatores distintos de seus agressores.

Como demonstrado, tal crime encontrava-se previsto Lei n. 7.716/1989, sendo esse inafiançável e imprescritível, cabendo ao Ministério Público a legitimidade para processar os ofensores, por ser uma ação incondicionada a representação.

Já a injúria racial visa atingir uma pessoa específica por razões diversas como cor, origem, idade e religião, a fim de inferiorizá-la frente à sociedade, ofendendo diretamente sua honra, implicando em punições tanto na esfera civil quanto criminal a qual é condicionada a representação do ofendido. Lembrando que, como relatado, a injúria racial encontra embasamento no artigo 140, § 3º do CP brasileiro, sendo esse um crime afiançável, porém imprescritível.

Ao final, acredita-se que, além de severas punições legais que atinjam diretamente seus praticantes, deve haver uma conscientização quanto à questão no meio social, para que as pessoas passem a ver seu semelhante com os olhos do coração, sem rancor, raiva, preconceito ou discriminação. Para que a descendência dessa sociedade atual tenha atitudes mais igualitárias, sem distinções que minimizem ou discriminem seus semelhantes pelas razões aqui apontadas.

O papel do cidadão e das vítimas de tais atos criminosos é denunciar, seja diretamente nas delegacias competentes, seja ligando, já que há vários números telefônicos disponíveis com esse fim. O importante é não permitir que a impunidade prevaleça, devendo-se coibir severamente esses crimes que nos dias atuais é evidentemente um atraso evolutivo gritante.

Por fim, é importante citar o episódio fatal, que ocorreu em 25 de maio de 2020 nos Estados Unidos da América, e que perturbou a vida social e política daquele país, alimentando o debate sobre o racismo nos EUA e no mundo e levantando novos questionamentos sobre a atuação das forças policiais contra a comunidade negra. George Floyd era um homem negro que foi morto asfixiado após Chauvin, policial branco, ter pressionado o joelho sobre seu pescoço por mais de 8 minutos. A indignação com o caso fez pessoas de várias cidades do mundo irem às ruas protestar contra o racismo e a violência policial. Neste momento, o debate sobre o racismo ganha força em vários países e cidades pelo mundo afora.[2]

REFERÊNCIAS

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_______. Tribunal Regional do Trabalho. Processo: RO 00020639220145120019 SC 0002063-92.2014.5.12.0019. Relator: Jose Ernesto Manzi. Julgamento: 08/03/2017. Disponível em: < https://trt-12.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/437047456/recurso-ordinariotrabalhista-ro-20639220145120019-sc-0002063-9220145120019?ref=juris-tabs>. Acesso em: 12 jun. 2017.

_______. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação nº. 1490974-1. Relator: Guilherme Freire de Barros Teixeira. Julgamento: 23/02/2017.

_______. Supremo Tribunal de Justiça. Processo: HC 388051 RJ 2017/0028552-0. Relator: Ministro Joel Ilan Paciornik. Julgamento: 04/05/2017. Disponível em: < https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/465721495/habeas-corpus-hc-388051-rj-2017- 0028552-0>. Acesso em: 15 jun. 2017.

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BRANDÃO, Daniela da Rocha; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro; LOIS, Cecília Caballero. Direito Internacional Dos Direitos Humanos I. XXIV Congresso Nacional Do 24 CONPEDI - UFMG/FUMEC/Dom Helder Câmara. Disponível em: . Acesso em: 25 mar. 2017

CAHALI, Yussef Said. Dano moral. São Paulo: RT, 2005.

CHAGAS. Paulo Victor. Lei que define crimes de racismo completa 25 anos. Disponível em: . Acesso em: fevereiro de 2017.

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CRUZ, Alvaro Ricardo de Souza; VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Decisão do STJ que considera injúria racial imprescritível é correta. Revista Consultor Jurídico, 24 de janeiro de 2016. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2016-jan-24/decisao-stj-considerainjuria-racial-imprescritivel-correta>. Acesso em: 12 jun. 2017.

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TILSTCHER, Geovana Muniz. TILSTCHER, Mirna Brunato. Conhecendo a cultura africana.1 ed. São Paulo: PAE Editora, 2013.


[1] Texto atualizado, com alterações, baseado no artigo orientado pela professora Débora Maria Gomes Messias Amaral e apresentado pela acadêmica Célia Aparecida Mendes da Silva na Faculdade De Direito UNIPAC/Barbacena/MG.

[2] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/06/10/george-floyd-e-derek-chauvin-trabalharam-juntos-em-boate-segundo-colega.htm

Sobre a autora
Débora Messias Amaral

Adv e profa Universitária na FADI/UNIPAC e na FAME/FUNJOBE em Barbacena/MG.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Elaborado em função dos debates ocorridos no Brasil e no mundo nos últimos dias, em função da morte do norte-americano George Floyd.

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