A PENHORA SOBRE OS VALORES DO CRÉDITO CONSIGNADO
Rogério Tadeu Romano
Os valores de empréstimo consignado em folha de pagamento, depositados na conta bancária do devedor, só recebem a proteção de impenhorabilidade atribuída a salários, proventos e pensões, nos termos do artigo 833, inciso IV, do Código de Processo Civil, quando forem comprovadamente destinados à manutenção da pessoa ou de sua família. Fora dessa situação, o crédito consignado pode ser normalmente penhorado por ordem do juiz.
O entendimento foi fixado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao determinar que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) analise se os valores decorrentes de um empréstimo com desconto em folha de pagamento são necessários à subsistência do devedor e de sua família, ou se poderiam ter sido efetivamente penhorados no processo.
O recurso teve origem em execução de título extrajudicial na qual o juiz determinou a penhora de quantia depositada em conta bancária também destinada ao recebimento de salário. Segundo o magistrado, como o saldo decorreu de empréstimo, não haveria impedimento ao bloqueio judicial dos valores. Com fundamentos semelhantes, a decisão foi mantida pelo TJDFT.
O relator afirmou que, como regra, os valores decorrentes de empréstimo consignado não são protegidos pela impenhorabilidade.
"Todavia, se o mutuário (devedor) comprovar que os recursos oriundos do empréstimo consignado são necessários à sua manutenção e à da sua família, tais valores recebem o manto da impenhorabilidade", esclareceu, ressaltando que tal interpretação decorre da expressão "destinadas ao sustento do devedor e de sua família", constante do inciso IV do artigo 833 do CPC/2015.
Ao dar parcial provimento ao recurso especial, o ministro Villas Bôas Cueva concluiu que o TJDFT não analisou a necessidade do valor discutido para a manutenção do devedor e de sua família, pois entendeu apenas que era possível a penhora do dinheiro de empréstimo depositado em conta bancária. Assim, a turma determinou o retorno dos autos ao tribunal de origem para nova análise.
A matéria foi objeto do REsp 1820477.
O Crédito consignado (também conhecido como empréstimo consignado) é um empréstimo com pagamento indireto, cujas parcelas são deduzidas diretamente da folha de pagamento da pessoa física. Ele pode ser obtido em bancos ou financeiras, cuja duração não deve ser superior a 72 meses.
Fala-se que, no crédito consignado, há a livre disposição contratual e a boa-fé que deve se unir a todas as relações contratuais, como as de mútuo mediante o pagamento de juros.
A legislação que instituiu a concessão de crédito consignado (Lei nº 10.820/03) foi uma forma camuflada das instituições financeiras burlarem a restrição de impenhorabilidade de salários e pensões, prevista no artigo 649, inciso IV, do Código de Processo Civil.
Mas o princípio da proteção do caráter alimentar da remuneração do trabalho deve prevalecer sobre os descontos em folha de pagamento. Daí porque têm limite os descontos que devem ser feitos no contracheque do devedor. Se não respeitada tal prática, será o empréstimo consignado uma prática abusiva, análoga à penhorabilidade de vencimentos e que caracterizava a invasão da “privacidade econômico-financeira” do tomador de crédito, uma ofensa ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Nessa espécie de mútuo a parte passiva é o consignante.
Por sua vez, a penhora é um ato executivo(ato do processo de execução), cuja finalidade é a individualização e preservação dos bens a serem submetidos ao processo de execução, como bem salientado por Francesco Carnelutti (Instituzioni del processo civile italiano, 5ª edição, 1956).
É um meio de fixar a responsabilidade executiva sobre determinados bens do devedor.
É o patrimônio do devedor, ou de alguém que tenha assumido responsabilidade pelo pagamento da dívida, que deve ser atingido pela penhora.
Enumera Arnaldo Marmitt(A penhora – doutrina e jurisprudência, Rio de Janeiro, Ed. Aide, 1986, pág. 15) os princípios da penhora:
- Princípio da humanização: para o cumprimento de suas obrigações, o executado responde com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições legais(artigo 591, Código de Processo Civil), pois a restrição tem origem humanitária;
- Princípio da especificidade: através do qual se destacam os bens destinados a satisfazer o débito exequendo, especificando os bens que são tirados do patrimônio do devedor, para servirem com exclusividade à expropriação, ressalvada a hipótese da penhora em dinheiro;
- Princípio da suficiência: a penhora deverá ser levada a termo somente quando buscar para a satisfação do crédito exequendo;
- Princípio da utilidade: a penhora deve ser útil à execução e idônea para alcançar suas finalidades, sem maiores percalços;
- De toda sorte, como bem explicita Cláudio Viana de Lima( Processo de execução, 1ª edição, 1973), não pode a execução ser utilizada como instrumento para causar a ruína, a fome e o desabrigo do devedor, gerando situações incompatíveis com a sobrevivência do devedor.
- É conhecida a posição que se tem no sentido de garantir um mínimo indispensável ao devedor e de que a pessoa não fique privada de uma existência decente, como lecionou Cândido Rangel Dinamarco(Execução civil, 6ª edição, São Paulo, Malheiros, pág. 300).
Colho daquele julgamento do STJ, que a quantia decorrente de empréstimo consignado, embora seja descontada diretamente da folha de pagamento do mutuário, não tem caráter salarial, sendo, em regra, passível de penhora.
A proteção da impenhorabilidade ocorre somente se o mutuário (devedor) comprovar que os recursos oriundos do empréstimo consignado são necessários à sua manutenção e à da sua família.
O Superior Tribunal de Justiça concluiu que o salário, o soldo ou a remuneração são impenhoráveis, sendo tal regra excepcionada quando se tratar unicamente de constrição para pagamento de prestação alimentícia.
Nesse sentido:
"PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. ENUNCIADO ADMINISTRATIVO N. 3/STJ. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. MILITAR. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. CONTRATO DE MÚTUO. INADIMPLEMENTO. CONSIGNAÇÃO EM FOLHA DE PAGAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. IMPENHORABILIDADE DO SOLDO. ART. 649, IV, DO CPC/1973. PRECEDENTES. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.1. A parte ora agravante pretende que o valor das prestações inadimplidas relativas ao contrato de mútuo firmado entre as partes seja objeto de penhora sobre os proventos mensais da agravada, com o consequente restabelecimento da relação de consignação em folha prevista no contrato, até o pagamento integral do débito.2. O entendimento do STJ é de que o salário, soldo ou remuneração são impenhoráveis, nos termos do art. 649, IV, do CPC/1973, sendo essa regra excepcionada unicamente quando se tratar de penhora para pagamento de prestação alimentícia.3. Agravo interno não provido."(AgInt no REsp 1.579.345/RJ, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/6/2017, DJe 30/6/2017).
Mas, de outro modo, tem-se:
"PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PENHORA DE PROVENTOS DE APOSENTADORIA. RELATIVIZAÇÃO DA REGRA DA IMPENHORABILIDADE. (...) 2. O propósito recursal é decidir sobre a possibilidade de penhora de 30% (trinta por cento) de verba recebida a título de aposentadoria para o pagamento de dívida de natureza não alimentar.3. Quanto à interpretação do art. 649, IV, do CPC/73, tem-se que a regra da impenhorabilidade pode ser relativizada quando a hipótese concreta dos autos permitir que se bloqueie parte da verba remuneratória, preservando-se o suficiente para garantir a subsistência digna do devedor e de sua família. Precedentes.4. Ausência no acórdão recorrido de elementos concretos suficientes que permitam afastar, neste momento, a impenhorabilidade de parte dos proventos de aposentadoria do recorrente.5. Recurso especial conhecido e parcialmente provido."(REsp 1.394.985/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/6/2017, DJe 22/6/2017).
Diante da divergência instaurada, conforme demonstrado acima, a Corte Especial do STJ, no final do ano de 2018, assentou a impenhorabilidade só se aplica à parte do patrimônio do devedor que seja efetivamente necessária à manutenção de seu mínimo existencial, à manutenção de sua dignidade e da de seus dependentes e, com isso, permitiu a penhora de parte do salário para o pagamento de dívida de natureza não alimentar. Eis, por oportuno, a ementa do referido julgado:
“PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. IMPENHORABILIDADE DE VENCIMENTOS. CPC/73, ART. 649, IV. DÍVIDA NÃO ALIMENTAR. CPC/73, ART. 649, PARÁGRAFO 2º. EXCEÇÃO IMPLÍCITA À REGRA DE IMPENHORABILIDADE. PENHORABILIDADE DE PERCENTUAL DOS VENCIMENTOS. BOA-FÉ. MÍNIMO EXISTENCIAL. DIGNIDADE DO DEVEDOR E DE SUA FAMÍLIA.1. Hipótese em que se questiona se a regra geral de impenhorabilidade dos vencimentos do devedor está sujeita apenas à exceção explícita prevista no parágrafo 2º do art. 649, IV, do CPC/73 ou se, para além desta exceção explícita, é possível a formulação de exceção não prevista expressamente em lei.2. Caso em que o executado aufere renda mensal no valor de R$ 33.153,04, havendo sido deferida a penhora de 30% da quantia.3. A interpretação dos preceitos legais deve ser feita a partir da Constituição da República, que veda a supressão injustificada de qualquer direito fundamental. A impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. tem por fundamento a proteção à dignidade do devedor, com a manutenção do mínimo existencial e de um padrão de vida digno em favor de si e de seus dependentes. Por outro lado, o credor tem direito ao recebimento de tutela jurisdicional capaz de dar efetividade, na medida do possível e do proporcional, a seus direitos materiais.4. O processo civil em geral, nele incluída a execução civil, é orientado pela boa-fé que deve reger o comportamento dos sujeitos processuais. Embora o executado tenha o direito de não sofrer atos executivos que importem violação à sua dignidade e à de sua família, não lhe é dado abusar dessa diretriz com o fim de impedir injustificadamente a efetivação do direito material do exequente.5. Só se revela necessária, adequada, proporcional e justificada a impenhorabilidade daquela parte do patrimônio do devedor que seja efetivamente necessária à manutenção de sua dignidade e da de seus dependentes.6. A regra geral da impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. (art. 649, IV, do CPC/73; art. 833, IV, do CPC/2015), pode ser excepcionada quando for preservado percentual de tais verbas capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família.7. Recurso não provido”.(EREsp 1.582.475/MG, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, CORTE ESPECIAL, julgado em 3/10/2018, REPDJe 19/03/2019, DJe 16/10/2018).
Entendeu-se, pois, que o mutuário (devedor) recebe determinada quantia do mutuante (instituição financeira ou cooperativa de crédito) e, em contrapartida, ocorre a diminuição do salário devido aos descontos efetuados diretamente na folha de pagamento. Porém, ainda que as parcelas do empréstimo contratado sejam descontadas diretamente da folha de pagamento do mutuário, a origem desse valor não é salarial, pois não se trata de valores decorrentes de prestação de serviço, motivo pelo qual não possui, em regra, natureza alimentar.