Como cediço, as microempresas e empresas de pequeno porte gozam de tratamento diferenciado e favorecido no ordenamento jurídico brasileiro, tendo como base o disposto nos artigos 170, IX e 179[1] da Constituição Federal.
Estas disposições têm como propósito promover o desenvolvimento econômico igualdade de condições econômicas, impulsionar a geração de empregos, e incentivar a criação e permanência das empresas menores no mercado.
A partir desta determinação, foi editada a Lei Complementar 123 de 14 de dezembro de 2006, que revogou outros diplomas que tratavam do tema, e instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, estabelecendo “normas gerais relativas ao tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios’’.
A supracitada lei também define os conceitos de microempresa e empresa de pequeno porte, tendo como critério a renda bruta anual, da seguinte forma: considera-se micro empresa aquela com renda bruta igual ou inferior a R$ 240.000,000 (duzentos e quarenta mil reais) e a empresa de pequeno porte aquela que aufira receita bruta superior a R$240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e igual ou inferior a R$2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais), ambas relativas à cada ano-calendário.
A Lei Complementar 123/06 trouxe diversos impactos, dentre eles, com relação às contratações realizadas com o poder público. Nesse ponto específico teceremos nossas breves considerações, sem pretensão de esgotar o tema, e exclusivamente quanto à exigência do Balanço Patrimonial e Demonstrações Contábeis como requisito para qualificação econômico-financeira das microempresas nas licitações.
Doutrinariamente, não há um consenso, haja vista que alguns defensores, refutam a idéia de que as microempresas sejam obrigadas a manterem escrituração contábil, sob o argumento de que se assim fosse representaria um ônus financeiro e burocrático ao crescimento destas empresas.
Ao analisarmos a Lei 8.666/93, conforme extraímos do seu art. 31, elenca qual a documentação que poderá ser exigida pela Administração para a qualificação econômico-financeira das licitantes. O citado artigo tem como objetivo permitir que a Administração possa avaliar a situação econômico-financeira do licitante e assegurar-se de que o futuro contratado tenha meios de cumprir com as obrigações pactuadas.
Dentre as exigências que pode a Administração impor destacamos:
Art. 31. A documentação relativa à qualificação econômico-financeira limitar-se-á a:
I - balanço patrimonial e demonstrações contábeis do último exercício social, já exigíveis e apresentados na forma da lei, que comprovem a boa situação financeira da empresa, vedada a sua substituição por balancetes ou balanços provisórios, podendo ser atualizados por índices oficiais quando encerrado há mais de 3 (três) meses da data de apresentação da proposta;
Essa qualificação encontra-se respaldada pela Constituição Federal, como se verifica o contido no inciso XXI, do art. 37[2]. Não nos resta dúvida de que, a Lei de Licitações é bem clara ao exigir, para demonstração da qualificação econômico-financeira da empresa disposta a contratar com a Administração Pública, que esta apresente o balanço patrimonial e as demonstrações contábeis, não podendo ainda substituí-lo por balancetes ou balanços provisórios.
Cabe-nos agora analisar, em consonância com a Lei Complementar 123/06, se tal exigência se mantém perante as microempresas e empresas de pequeno porte.
O referido diploma legal, em seu artigo 27, tratando do tema assim dispõe:
Art. 27. As microempresas e empresas de pequeno porte optantes pelo Simples Nacional poderão, opcionalmente, adotar contabilidade simplificada para os registros e controles das operações realizadas, conforme regulamentação do Comitê Gestor.
Muito se discutiu acerca do termo “contabilidade simplificada”. Alguns chegaram afirmar que o artigo dispensaria as microempresas e empresas de pequeno porte de manter escrituração contábil.
Vejamos que o artigo dependia de regulamentação do Conselho Gestor do Simples Nacional. Este por sua vez, através da Resolução CGSN nº 28/08, regulamentando o referido artigo, conferiu poderes ao Conselho Federal de Contabilidade para disciplinar acerca do tema ‘’Contabilidade Simplificada’’.
Nesse sentido, o Conselho Federal de Contabilidade editou a Resolução CFC Nº. 1.1.115/07, que aprova a NBC T 19.13 – Escrituração Contábil Simplificada para Microempresa e Empresa de Pequeno Porte.
Esta norma, em seu item 7 estabelece a obrigatoriedade da elaboração do Balanço Patrimonial e a Demonstração do Resultado pelas microempresa e a empresa de pequeno, como transcrevemos:
“7 A microempresa e a empresa de pequeno porte devem elaborar, ao final de cada exercício social, o Balanço Patrimonial e a Demonstração do Resultado, em conformidade com o estabelecido na NBC T 3.1, NBC T 3.2 e NBC T 3.3.”
Nesse diapasão, temos que, nos termos da Lei Complementar 123/06, e ainda conforme a disciplina supracitada, não há previsão de dispensa da referida escrituração para estas empresas.
Ainda, por outro lado, não podemos deixar de citar a legislação civilista, que por sua vez, em seus artigos 1.179 e 1.180 estabelece a exigência desta documentação. Vejamos:
Art. 1.179. O empresário e a sociedade empresária são obrigados a seguir um sistema de contabilidade, mecanizado ou não, com base na escrituração uniforme de seus livros, em correspondência com a documentação respectiva, e a levantar anualmente o balanço patrimonial e o de resultado econômico.
Art. 1.180. Além dos demais livros exigidos por lei, é indispensável o Diário, que pode ser substituído por fichas no caso de escrituração mecanizada ou eletrônica.
Parágrafo único. A adoção de fichas não dispensa o uso de livro apropriado para o lançamento do balanço patrimonial e do de resultado econômico.
A única hipótese de dispensa está no artigo 1.179, que diz respeito ao pequeno empresário:
§ 2o É dispensado das exigências deste artigo o pequeno empresário a que se refere o art. 970.
A definição de pequeno empresário encontra-se na lei Complementar 123/06, em seu artigo 68, in verbis:
Art. 68. Considera-se pequeno empresário, para efeito de aplicação do disposto nos arts. 970 e 1.179 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, o empresário individual caracterizado como microempresa na forma desta Lei Complementar que aufira receita bruta anual de até R$ 36.000,00 (trinta e seis mil reais).
Noutro giro, podemos verificar que a Lei 9317/93 que regulamentava o SIMPLES, dispensava das micro e pequenas empresas da escrituração comercial. No entanto, tal legislação foi inteiramente revogada pela Lei Complementar 123/06, sendo que esta última não reproduziu tal dispositivo.
Tal dispositivo consta do Regulamento do Imposto de renda, que assim dispõe:
Art. 190. (...)
Parágrafo único. A microempresa e a empresa de pequeno porte estão dispensadas de escrituração comercial desde que mantenham em boa ordem e guarda e enquanto não decorrido o prazo decadencial e não prescritas eventuais ações que lhes sejam pertinentes (Lei nº 9.317, de 1996, art. 7º, § 1º):
I - Livro Caixa, no qual deverá estar escriturada toda a sua movimentação financeira, inclusive bancária;
II - Livro de Registro de Inventário, no qual deverão constar registrados os estoques existentes no término de cada ano-calendário;
III - todos os documentos e demais papéis que serviram de base para a escrituração dos livros referidos nos incisos anteriores.
Ocorre que, tal regra, foi estabelecida tão somente ao aspecto tributário e de fiscalização, haja vista que o Decreto 3000 /99 regulamenta tão somente a tributação, fiscalização, arrecadação e administração do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza.
Ou seja, tal legislação nos diz respeito somente ao aspecto tributário e de fiscalização, e ainda, como vimos, a legislação comercial não dispensa a escrituração, e muito menos a Lei Complementar 123/06, que dispõe especificamente sobre a Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte.
Nesse sentido, como o balanço patrimonial não se presta tão somente para efeitos tributários e de fiscalização, não é vedado à Administração exigir o balanço patrimonial para as licitações públicas, quando isso for indispensável.
Corroborando com este entendimento, destacamos a doutrina do Prof. Carlos Pinto Coelho Motta[3], lição escrita ainda sob a vigência da revogada Lei nº 9.317/96, que explicitamente dispensava a escrituração contábil das micro e pequenas empresas:
“Mesmo as empresas optantes pelo Simples (Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições, Lei 9.317, de 5/12/96) devem apresentar, para habilitação, o balanço patrimonial, em face da exigência do inciso I do art. 31 em comentário.”
Tal posicionamento encontra divergências não só na doutrina, como no poder judiciário, que por diversas vezes entende que, se a microempresa pode ser dispensada da escrituração, como destacamos:
"MANDADO DE SEGURANÇA - Licitação - Renovação de cadastro para viabilizar participação em procedimentos licitatóríos - Admissibilidade - Empresa de pequeno porte - Dispensada legalmente da representação do balanço patrimonial e demonstrações contábeis - Lei n" 9.317/96 (regime tributário de micros e pequenas empresas) e artigo 179, da CF. – Ordem confirmada - Recurso não provido"(Apelação n° 275.812.5/6-00,Campinas, rei. DES. SOARES LIMA, j . 15.05.2008)
"MANDADO DE SEGURANÇA - Licitação - Modalidade de Concorrência - Impetrante que foi inabilitada por não cumprir determinação do edital próprio, relativa à apresentação de balanço patrimonial e demonstrativo contábil do último exercício social - Ilegalidade - Impetrante que é microempresa optante do "SIMPLES" que. a teor do disposto na Lei 9.317/96 dispensa a obrigatoriedade de apresentação de balanço patrimonial e demonstrativos contábeis - Ordem concedida" (ap. n° 389.181.5/1, São Paulo, rei. DES. ANTÔNIO C. MALHEIROS, j . 18.03.2008).
MANDADO DE SEGURANÇA - Licitação - Exigência de apresentação de balanço patrimonial para comprovação da qualificação econômico-financeira - Microempresa - Escrituração simplificada por meio de Livro Diário - Inexigibilidade de apresentação do balanço - Sentença concessiva da segurança mantida - Recursos não providos - Permitido à microempresa a escrituração por meio de processo simplificado, com utilização de Livro Diário, registrado na Junta Comercial, torna-se dispensável a apresentação de balanço patrimonial, aya confecção traria despesas extraordinárias à microempresa, podendo impossibilitar sua participação na licitação (Relator(a): Luis Ganzerla, Julgamento: 26/01/2009, Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Público Publicação: 26/02/2009)
Por fim, diante de todo o exposto, concluímos que, as empresas que desejarem fornecer bens e serviços à Administração deverão se submeter às regras por esta imposta, mais especificamente, à apresentação do balanço patrimonial e demonstrações contábeis, nos termos do disposto na Lei 8.666/93.
Insta relatar ainda que, a nosso ver, tal exigência não fere o tratamento favorecido e diferenciado dispensado às estas empresas, mas tão somente garante à administração poder averiguar as condições daqueles que pretendem fornecer para a mesma e zelar pelo interesse público.
Notas:
[1] “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”.
"Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei. "
[2] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(...)
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (grifo nosso).
[3] MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Eficácia nas Licitações e Contratos. 10ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005