A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 1 À CONSTITUIÇÃO AMERICANA E UM CASO CONCRETO

20/06/2020 às 10:01
Leia nesta página:

O ARTIGO DISCUTE SOBRE A EMENDA Nº 1 À CONSTITUIÇÃO AMERICANA.

A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 1 À CONSTITUIÇÃO AMERICANA E UM CASO CONCRETO

Rogério Tadeu Romano

I – O FATO

Segundo o Expresso de Portugal, “não há qualquer base ou precedente jurídicos para impedir a publicação do livro do ex-conselheiro para a Segurança Nacional sobre os seus mais de 400 dias de reuniões quase diárias com o Presidente dos Estados Unidos. Donald Trump utilizou esta estratégia antes e sempre sem sucesso. Não deverá conseguir, até porque censurar a obra de John Bolton seria “um enorme ataque à Primeira Emenda” à Constituição, diz ao Expresso o especialista Joshua Dressler”.

São 600 páginas, 450 dias de serviço na Casa Branca, mais de uma página por dia, espaço mais do que suficiente para contar as histórias potencialmente mais secretas e embaraçosas sobre a Administração de Donald Trump. É mais ou menos assim que os publicitários andam a promover o novo livro de John Bolton, antigo conselheiro para a Segurança Nacional dos Estados Unidos.

“The Room Where it Happened”, em tradução livre “A Sala Onde Tudo Aconteceu”, já está esgotado em várias livrarias digitais, mas nem sequer está à venda. Isto porque o Departamento de Justiça instaurou um processo judicial contra Bolton para impedir a publicação de um livro que, segundo o próprio, contém detalhes bombásticos sobre a conduta do atual Presidente dos Estados Unidos, nomeadamente no que diz respeito às decisões de política externa.

Já consoante reportagem da Veja, “entre as histórias, Bolton diz que o presidente americano pediu ao presidente da China, Xi Jinping, para ajudá-lo a ser reeleito comprando mais produtos agrícolas dos EUA. Em uma reunião individual entre Trump e Xi, durante o encontro do G-20, em junho de 2019, no Japão, o mandatário chinês teria reclamado sobre críticos da China na América. “Ele, surpreendentemente, virou a conversa para a próxima eleição presidencial dos EUA, aludindo à capacidade econômica da China de afetar as campanhas em andamento, implorando a Xi para garantir que ele vencesse”, escreveu Bolton. A versão é corroborada por relatórios escritos após a reunião do G-20, que sugeriram que Trump pressionou Xi a comprar mais produtos agrícolas dos EUA, mas o presidente chinês relutou em assumir quaisquer compromissos.”

Ao que nos parece a tentativa noticiada do atual presidente em ajuizar ação inibitória objetivando proibir tal publicação confronta de todo a Emenda Constitucional nº 1 à Constituição americana.

II – AS DEZ EMENDAS

Começo por dizer que o primeiro Congresso Federal, em 1789, submeteu à ratificação das legislaturas de vários Estados-membros um projeto de “10 emendas” à Constituição Federal, que acabara de votar mediante pressão da corrente radical liderada por Patrick Henry e Samuel Adams, que não compreendiam como a Lei Magna pudesse deixar de contar um Bill of Rights, à semelhança das constituições dos Estados-membros, segundo entendiam Salisbury and Cushman, The Constitution, pág. 36). Essas emendas não passam de restrições ao poder federal, que deve assegurar as liberdades de religião, de palavra, de imprensa, de reunião e de petição; os direitos de segurança pessoal e domiciliar, como o de não ser privado da vida, liberdade ou propriedade, sem “o devido processo de direito”, os direitos de julgamento criminal por um júri local, com recurso para as cortes superiores, e de fiança, multa e punição não excessivas; o principio salutar de que a enumeração de uns direitos na Constituição não exclui outros já exercidos pelo povo; e o de que os poderes não delegados aos Estados Unidos pela Constituição, nem proibidos aos Estados-membros, são reservados a esta ou ao povo.

III – A EMENDA Nº 1 DA CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS

Eis o texto da Emenda Constitucional nº 1 dos Estados Unidos:

"Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances."

"O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas".

Primeira Emenda (Amendment I) da Constituição dos Estados Unidos é uma parte da Declaração dos Direitos dos Estados Unidos. Foi adotada no dia 15 de dezembro de 1791. Impede, textualmente, ao Congresso americano de infringir seis direitos fundamentais. O Congresso passa a ser impedido de:

A constituição norte-americana, de 1788, para ficar apenas num único exemplo, desde sua primeiríssima emenda, de 1791, assinala como sacrossanta a liberdade de manifestação (“free speach”) e o seu consectário, a liberdade de imprensa (“free press”), garantias essas reafirmadas pela sua Suprema Corte sempre que provocada (o famoso caso Jerry Falwell x Larry Flynt é didático), base jurídica essa que não destoa daquela do art. 5º, IX, da nossa Carta Constitucional.

No sobredito caso, a Suprema Corte americana asseverou “No coração da Primeira Emenda está o reconhecimento da importância fundamental do livre fluxo de ideias e opiniões sobre questões de interesse e preocupação públicaA liberdade de falar o que pensamos não é apenas um aspecto da liberdade individual, mas também é essencial para a busca comum da verdade e da vitalidade da sociedade como um todo. Temos, portanto, sido particularmente vigilantes para assegurar que as expressões individuais de ideias permaneçam livres de sanções impostas pelo governo” (grifos nossos). Essas balizas se aplicam, tanto por tanto, abaixo da linha do equador.

A Constituição dos EUA protege até mesmo o discurso mais ofensivo e controverso da repressão do governo, e permite a regulamentação da expressão somente sob certas circunstâncias limitadas e restritas. O sistema americano é construído em cima da ideia de que o intercâmbio livre e aberto de ideias encoraja a compreensão, promove a busca pela verdade e permite a refutação de falsidades. Os Estados Unidos acreditam, e a experiência mostrou, que a melhor forma de se contrapor a um discurso ofensivo não é por meio de regulamentação, mas com mais discurso.

A primeira emenda garante liberdade de expressão, disposição também encontrada nas constituições estaduais(Lawrence M. Friedman, American Law, an Introduction, pg. 209). Expressão tomada em sentido amplo, lato, projetada em vários campos da atividade humana, modelada no pensamento da classe dominante(Charles A. Beard, An Economic Interpretation of the Constitution of the United States.) no novo país, encharcada no ideário iluminista, projeto que oxigenou a luta dos chamados pais da pátria, os founding fathers(A instrumentalização juridica da república norte-americana é fortemente influenciada por John Locke, Two Treatises of Government.)Amparava-se liberdade de religião, tema afeto à época e às condições que marcaram a formação do país(John S. Baker, Jr., The Establishment Clause as Intended : No Preference among Sects and Pluralism in a Large Commercial Republic, in Eugene W. Hickok , Jr., op. cit. , pg. 41), no qual não havia uniformidade nas relações entre igreja e poder secular, a par também de relações inter-estaduais(Michael W. McConnell, Free Exercise as the Framers Understood it, in Eugene W. Hickok, Jr, op. cit., pg. 54.). .

Mas, há restrições.

Embora restrições baseadas em conteúdo sejam geralmente inadmissíveis, há algumas exceções muito específicas. Categorias especiais de expressão que podem ser restringidas ao abrigo da Primeira Emenda incluem incitação à violência iminente, ameaças reais, discursos difamatórios e obscenidades.

O discurso pode também ser restringido com base em seu conteúdo, se ele cai dentro da classe específica de “ameaças reais” de violência. Uma ameaça real é a declaração de que um destinatário razoável entenderia significar que o orador, ou pessoas trabalhando com o palestrante, tem a intenção de cometer dano físico contra o destinatário.

A obscenidade pode ser restringida nos termos da Primeira Emenda, mas tem havido um longo debate sobre o que constitui obscenidade e como ela deve ser regulamentada. A Suprema Corte dos EUA definiu obscenidade em 1973 como uma expressão que a pessoa média, aplicando padrões comunitários contemporâneos, consideraria que 1) apela para interesses lascivos, 2) mostra ou descreve a conduta sexual de um modo patentemente ofensivo, e 3) não tem nenhum sério valor literário, artístico, político ou científico, quando tomado como um todo(Miller v. California, 413 U.S. 15 (1973)).  Um tribunal avalia cada elemento independentemente e não classificará uma expressão como obscena a menos que existam todos os fatores. Por exemplo, se um livro usa uma linguagem grosseira e retrata conduta sexual, mas, tomado como um todo, não apela para interesses lascivos ou tem valor literário, não é obsceno(United States v. One Book Called “Ulysses”).  Tendo em vista tais padrões elevados, é raro que os tribunais considerem uma expressão como obscena.

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O discurso do ódio – geralmente definido como um discurso que calunia uma pessoa ou grupo com base em raça, etnia, gênero, religião, orientação sexual ou deficiência – recebe total proteção da Primeira Emenda. Discurso que se destina a incitar a violência iminente ou de ameaçar indivíduos de forma plausível, no entanto, pode ser restringido conforme descrito acima. Embora os Estados Unidos não restrinjam o discurso do ódio, entende que a arma mais eficaz no combate ao discurso do ódio não é repressão, mas o contradiscurso tolerante, verdadeiro e inteligente. Banir o discurso intolerante ou ofensivo pode ser contraproducente, elevando o perfil do discurso ofensivo e fazendo com que ideologias de ódio se propaguem de formas perigosas, às vezes furtivas. Persuasão – não regulamentação – é a solução. As fortes proteções constitucionais dos Estados Unidos para a liberdade de expressão não significa que ficamos de braços cruzados enquanto indivíduos e grupos procuram difundir expressões tóxicas de ódio. Em vez disso, os Estados Unidos implantam uma série de políticas para estender a mão à comunidades afetadas, oferecer serviços de resolução de conflitos e reforçar o diálogo.

IV – A EMENDA V

Mas, acresça-se, que, nos Estados Unidos, a 5ª Emenda, em 1791, à Constituição dos Estados Unidos possui entre as proibições incidentes sobre o Governo Federal a exigência de um due processo of law para privar alguém da vida, da liberdade ou da propriedade,

Anotou, aliás, Francisco Linares(Poder discrecional administrativo, Buenos Aires, 1958),  que a Corte Suprema, em 1869, no caso Hepburn v. Griswold, 8 Wall, 603, já “havia expressado que o devido processo da Vª Emenda restringia o poder legislativo do Congresso em relação não somente aos direitos processuais reconhecidos pela common law, senão também aos direitos reconhecidos.

V – A EXPERIÊNCIA NA ALEMANHA

É certo que o direito constitucional alemão tem uma visão diversa sobre essas restrições aos direitos fundamentais.

Alexy(Teoria de los derechos fundamentales, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993, pág. 279) exemplificou as restrições diretamente constitucionais com o artigo 8º, parágrafo I, da Lei fundamental, que diz textualmente: “Todos os alemães têm o direito de se reunirem pacificamente sem armas, sem notificação nem autorização prévias” . A regra restritiva(cláusula restritiva) erigida pelo legislador constituinte alemão gera desde já uma restrição definitiva no próprio princípio que concede a proteção iusfundamental. Ele determina as razões que podem restringir o princípio fundamental. As razões contrárias ao direito fundamental, neste caso, constituem a regra, que mantém a importância do princípio. Razões contrárias à proteção iusfundamental, portanto, independentemente da forma como rem veiculadas, por regras ou princípios pertencem ao âmbito das restrições. “Se se renúncia a este raciocínio, haveria o perigo de que o jogo das razões a favor e contra fosse substituído por intervenções mais ou menos intuitivas.

Disse Alexy(obra citada) que o Tribunal Constitucional Federal Alemão põe na categoria da restrição diretamente constitucional apenas “norma que formal e materialmente seja conforme à Constituição”. A presença da “cláusula ordem constitucional” significa a permissão a restrição mediante normas infraconstitucionais, consistindo numa “cláusula de reserva: autoriza ao legislador a estabelecer restrições mediatamente constitucionais”. As restrições morais de um direito fundamental não possuem como condição de validade a imposição por meio de atuação do legislador ordinário. “Para tanto, falta a referência à competência do legislador, que é constitutiva par aas restrições indiretamente constitucionais. Por isso, as normas não jurídicas envoltas no conceito de lei moral podem ser classificadas como restrições diretamente constitucionais, como ensinou ainda Alexy. A não autorização pelo legislador constituinte ao legislador ordinário é um princípio formal e, ao mesmo tempo, a razão para a não competência do legislador infraconstitucional, ainda que sejam admitidas por princípios materiais.

De toda sorte, na Alemanha, o limite à restrição e restringibilidade de um direito fundamental é o resguardo do núcleo essencial.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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