Gêneros e sexualidades aprisionadas: uma análise discursiva da cartilha da mulher presa

Uma análise discursiva da cartilha da mulher presa

23/06/2020 às 10:31
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Esse artigo visa analisar discursivamente as relações sociais de sexo e de gênero materializadas na Cartilha da Mulher Presa, publicação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 2011. Aqui, o discurso jurídico é analisado com base na Análise do Discurso.

Buscando materialidades para a minha pesquisa em Análise do Discurso (AD), cujo objeto é o discurso jurídico acerca das mulheres presas, deparei-me com as produções normativas estatais e com uma publicação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ intitulado de Cartilha da Mulher Presa (CMP), cuja primeira edição é de 2011.

Não obstante a significativa quantidade de leis que regulam os sistemas penitenciários brasileiros e a Lei de Execuções Penais que representam condições de produções distintas, a Cartilha da Mulher Presa reforça o discurso jurídico dirigido às mulheres presas e o modelo de comportamento que se espera das que compartilham os pequenos espaços de uma cela com outras tantas mulheres e suas histórias.

Tendo em vista que a constituição do corpus necessita de uma reflexão maior, o que não caberia aqui no espaço deste ensaio, limito-me a expor em forma de uma pequena análise a materialidade discursiva da CMP, sob uma condição inquietante de confrontar-me com a referida materialidade discursiva a partir da remissão às condições de produção deste discurso. 

Dessa forma percorrendo as condições de produção amplas dos discursos materializados na referida cartilha, verifica-se um contexto histórico marcado pelo acentuado aumento do número de mulheres presas e as condições de vida nos presídios superlotados.

Além disso, as mulheres, no decorrer da história, submeteram-se e ainda se submetem aos mais diversos tipos de regras impostas pela heteronormatividade. A elas sempre coube o papel social da submissão, entretanto, com a modernidade, as mulheres passaram a vivenciar estágios de liberdade, mesmo que isso fosse controlado no intuito de moldar comportamentos ditos “normais” e estereotipados.

No tocante aos instrumentos de punição estatais, os primeiros presídios ainda tinham o caráter religioso e às mulheres cabia o regime de internato onde pudessem ser salvas das condutas desviantes. Os crimes por elas cometidos estavam, geralmente, relacionados a sua condição sexual e às transgressões aos padrões morais da sociedade. Cabe ressaltar que mesmo com o apoio das instituições religiosas na punição institucional das mulheres, o Estado se mantinha presente com seu papel repressor.

Com o tempo as mulheres foram conquistando direitos e sua luta adquiriu força com os diversos movimentos feministas e com a carga humanista e igualitária introduzida nas últimas constituições no Brasil, entretanto, esses direitos que vieram com sentidos de liberdade evidenciaram, ao mesmo tempo, os conflitos e questionamentos próprios do gênero humano e do ser social.

Cabe ressaltar que atualmente o principal motivo que leva as mulheres à prisão é o crime de tráfico de drogas, em geral, influenciadas por seus parceiros ou até mesmo para adquirir um meio ilícito de sustentar a família.

A partir do que foi dito, vale pensar sobre a materialidade em tela e questionar-se acerca dos efeitos de sentido da expressão “cartilha da mulher presa”, de modo que para a referida análise, faz-se necessária a mobilização de categorias importantes da Análise do Discurso, notadamente, as formações discursivas e formações ideológicas.  

De início, a palavra cartilha remete, como foi dito, a um sentido didático-pedagógico, o mesmo das informativas, cujas funções sejam precipuamente a de formar comportamentos, modelos de conduta ou conhecimento.

Há, nesse caso, o acionamento de uma memória discursiva que remete a um discurso da educação conservadora, no sentido de se utilizar as cartilhas como modelos a serem seguidos (cartilha do abc, cartilha do trabalhador etc.). São, pois, nessas condições que a Cartilha da Mulher Presa assume um papel modelador de comportamento, no sentido de trazer em seu texto alguns dispositivos legais, normas de boa conduta, direitos e deveres das mulheres encarceradas.

Antes, porém de analisar o efeito de sentido da preposição “da” no título em análise, cumpre desvelar os efeitos de sentido presentes na expressão “Mulher Presa”.

Buscando os efeitos de sentido da expressão “mulher presa”, pressupõe-se a existência de mulheres que não são aprisionadas. Este rótulo, por sua vez, é carregado como uma marca que o Estado impõe, haja vista que depois da prisão institucionalizada, essa mulher carregará o rótulo de mulher ex-presa, egressa do sistema prisional, ex-presidiária.

A expressão “mulher presa” traz como pressuposto a existência de uma mulher livre. Ao que se sabe a mulher, enquanto gênero humano, está assujeitada a um sistema capitalista, à ideologia dominante, notadamente, sexista e machista ditada por uma sociedade patriarcal. O signo “presa” nos remete ao não-dito livre, possuidora de liberdade.

Ao questionarmos o termo “liberdade” entraremos em um terreno movediço que nos remeterá a diversas formações discursas: da liberal, para a qual a liberdade está atrelada ao poder de usufruir de direitos e patrimônios necessários a sua independência e autonomia; do discurso religioso, de onde se extrai a liberdade como resultado da salvação, sempre submetida a regras morais rígidas, atrelando a outrem a culpa que lhe angustiava. Há também a liberdade em seu sentido jurídico, como direito ou conjunto de direitos atribuídos à pessoa humana.

Considerando essas diversas formações discursivas inscritas em uma determinada formação ideológica, a posição sujeito ocupada pela mulher antes da terminologia de “mulher presa”, e ainda, a posição que essa mulher ocupava na sociedade antes de sua prisão, podemos questionar se realmente existe a liberdade atrelada a esta mulher, ora rotulada de presa.

A prisão institucionalizada pelos instrumentos punitivos e aparelhos repressores do Estado não diz que liberdade está subjacente ao termo “presa”. Há também um sentido a ser analisado: o de “presa” enquanto objeto de uma captura predatória. A mulher presa sendo aquela que foi capturada pelo Estado e afastada da sociedade, mantendo-se à margem desta e sendo interpelada, nos espaços prisionais, pela ideologia dominante, para o qual a sua situação de presa é resultado de suas escolhas enquanto sujeito.

Cabe destacar que a expressão “mulher presa” traz como dito uma locução constituída por um nome (mulher = gênero) e um adjetivo de valor restritivo (presa = espécie do gênero mulher). Há, com isso, uma marca difícil de ser apagada, registrada na memória discursiva.

Outra questão que se mostra necessária é: por que o CNJ como voz do Estado, diz “mulher presa”, enquanto o discurso da prisão como método ressocializador, assumido no país a partir da década de 1980, sugere o emprego da expressão “reeducanda”?

Nesse sentido, vale citar Pêcheux (1988, p. 160):

O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe “em si mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas).

Assim, passa-se agora à análise da preposição “da” utilizada no título. Sabe-se que a preposição “de” e suas contrações (da, das, do, dos) tem, gramaticalmente, um sentido de posse, pertencimento. Entretanto, o que se questiona no título em análise é se essa preposição “da” pode ser usada com esse mesmo sentido de pertencimento.

Vislumbrando a apresentação da referida cartilha tem-se o seguinte texto:

A Cartilha da Mulher Presa destina-se a esclarecer os direitos e deveres das mulheres encarceradas, com informações claras e diretas sobre garantias constitucionais, prerrogativas legais e administrativas.

Trata-se de ferramenta voltada para a ressocialização da mulher presa, disponibilizada gratuitamente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

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A Cartilha é fruto do intenso e dedicado trabalho de grupo constituído pelo CNJ, formado por juízas criminais e de execução penal brasileiras, que, diariamente, estudam e praticam a execução penal, na tentativa de encontrar soluções para o aumento do número de mulheres nas prisões nacionais, sobretudo em decorrência do tráfico de drogas.

A elas, juízas brasileiras, e especialmente às mulheres presas é que o CNJ dedica esta pequena cartilha, contendo valiosas informações para todas aquelas que se encontram privadas da liberdade (CNJ, 2012, p. 9, grifo nosso).

Como se pode constatar, a cartilha não é da mulher presa, mas das juízas brasileiras para a mulher presa. Entretanto, ao utilizar a preposição “da”, no lugar de “para”, busca-se criar um sentido de pertencimento nessas mulheres, destinatárias da tal cartilha, ou seja, para que o trabalho das juízas, organizadoras do material e pertencentes a uma classe diferente com realidades também distintas, faça efeito sobre essas mulheres, ditas presas, faz-se necessário que elas se sintam possuidoras da cartilha, que elas tenham com a cartilha um sentimento de pertencimento.

 O poder de escrever e organizar a cartilha foi dado a mulheres cuja função é a de aplicar a lei ao caso concreto, de “prender”, de utilizar-se dos instrumentos que o Estado lhes dá para possibilitar a punição estatal.

Com isso, apaga-se a luta de classes, as contradições e conflitos próprios de uma sociedade dividida em classes. Dessa forma, busca-se atrelar ao material produzido o pertencimento a que as mulheres destinatárias devem ter em relação a ele, ou seja, um material produzido de mulher para mulher, ocultando a realidade de uma produção da mulher que prende para a mulher presa.

Assim, as mulheres que ocupam uma posição privilegiada na sociedade, detentoras de um poder-saber jurídico, são convocadas a escrever para mulheres que estão no lado oposto: presas, pobres, em sua maioria, com baixa escolaridade e que vivenciam durante suas vidas as mais diversas formas de violência. Com isso, tenta-se conferir a cartilha, além de um sentimento de que foi feito para que sejam das presas, um sentimento de pertencimento, uma unidade de sentidos que não existe, tendo em vista ser o signo uma arena de conflitos ideológicos, como afirma Bakhtin/Volochinov (2004, p. 47): “[a] classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo monovalente”.

Cabe, agora, mobilizar as categorias da formação discursiva e formações ideológicas para a presente análise.

Entendendo as formações discursivas como campo de saber e a partir da perspectiva adotada pela AD pecheutiana, conforme Orlandi (2001, p. 103), “a formação discursiva – lugar provisório da metáfora – representa o lugar de constituição do sentido e de identificação do sujeito.”, identifica-se na materialidade em análise uma formação discursiva liberal que sustenta o sentido da expressão “mulher presa”. Há também nesta materialidade a convergência de outros discursos, como na palavra “Cartilha” que traz o sentido próprio de uma formação discursiva pedagógica, em que são expostos modelos de comportamento.

Considerando o sujeito que produziu (reproduziu) a Cartilha da Mulher Presa, que assume a posição dominante na sociedade capitalista e reproduz essa ideologia dominante, marcadamente liberal e opressora, há uma formação ideológica do capital em que se inscrevem as determinadas formações discursivas.

Disso resulta que ao desvelar os efeitos de sentido presentes no título em tela, deve-se compreender que com um discurso próprio de uma formação discursiva pedagógica, atrelado ao termo cartilha e ao sentido de pertencimento atribuído ao conectivo “da”, atribui-se o efeito de apagamento dos conflitos de classe, revelado pela ilusão da unicidade de sentidos contidos no texto.

Em suma, este pequeno ensaio monográfico se configurou como uma tentativa de confrontar-se com a materialidade discursiva na busca dos caminhos metodológicos que venho tomando em minha pesquisa e na própria reflexão acerca das materialidades que devem compor o corpus discursivo.

Referências

BAKHTIN, Mikhail/VOLOCHINOV, V.N. Marxismo e filosofia da linguagem. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004

ORLANDI, Eni Puccianelli. Discurso e texto: formulação e circulação de sentidos. Campinas, São Paulo: Pontes, 2001.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de EniOrlandi et al. Campinas: Edunicamp, 1988.

Sobre o autor
Diego Lacerda Costa

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) (2010). Possui licenciatura em Letras - Língua Portuguesa pelo IFAL (2016), Mestrado em Linguística pela UFAL (2016). Atuou como advogado nas áreas cível, trabalhista e previdenciário. Atualmente atua como professor de língua portuguesa. Tem como áreas de interesse e estudos: Análise do Discurso, Ensino de Língua Portuguesa, Relações de Gênero e Sexualidades.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Texto elaborado para disciplina de Seminários Temáticos em Análise do Discurso, do Programa de Pós-graduação em Linguística e Literatura (PPGLL) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

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