O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL E O SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

23/06/2020 às 10:43
Leia nesta página:

O presente trabalho busca analisar o acordo de não persecução penal, inovação trazida pela legislação nº 13.964/19, seu conceito e objetivo, bem como sua interligação e consequências em relação ao sistema prisional brasileiro,

INTRODUÇÃO

 

É notório as diversas problemáticas que assolam o sistema penitenciário brasileiro, além das péssimas condições de saúde em que vivem os carcereiros, há também uma estrutura física degradante e que, em sua maioria, suporta muito mais presos do que os limites existentes por metros quadrados de cela permitem.

Diante deste cenário, o poder público busca sempre trazer soluções a fim de tentar reduzir a quantidade de presos, bem como impedir – ainda que de forma precária e com forte atuação da legislação penal- o cometimento de novos delitos pela sociedade.

Ademais, além da possibilidade de aplicar os institutos da transação penal e a suspensão condicional do processo, as quais propiciam quando cumpridas as determinações legais, a extinção de punibilidade, o legislador brasileiro inovou incorporando no Código de Processo Penal brasileiro o acordo de não persecução penal.

Assim, torna o legislador através da lei nº 13.964/19 a novamente buscar diferentes ferramentas que propiciem uma negociação entre vítima e ofendido, como tentativa de desafogar o judiciário brasileiro de inúmeros processos, bem como oferecer ao criminoso uma solução distinta de uma sanção penal.

           

  1. O SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO E SEUS DESAFIOS

 

O principal objetivo do sistema prisional brasileiro é punir e ressocializar o agente criminoso, a depender da tipificação penal cometida pelo agente. Assim, o poder público restringe sua liberdade e sua convivência em sociedade por meio do sistema prisional. A justificativa maior do Estado é de que o infrator não possui condições de permanecer em sociedade sem antes responder por seus atos ilícitos e aprender a conviver pacificamente com outros indivíduos.

Todavia, a realidade do sistema prisional brasileiro é exatamente o contrário. Isto pois, é possível observar nos presídios o estado de falência em que se encontram, o que consequentemente traz condições precárias e subumanas aos detentos.

Diante deste cenário, é possível compreender, destarte, que atua o sistema prisional brasileiro em contramão com o disposto no art. 10 da lei de Execução Penal nº 7.210/84, a qual define que a assistência ao preso é dever do Estado buscando sempre prevenir novos crimes.

Segundo leciona Mirabete (2008), ocorre que com a falência do sistema carcerário brasileiro o Estado envia o criminoso para se reabilitar de forma hipócrita, uma vez que sabe que o sujeito retornara à sociedade com maior desenvoltura para a prática de novos delitos.

Logo, apesar de ser a intenção do poder público beneficiar tanto o sujeito como a sociedade, a realidade é o prejuízo de ambos, uma vez que devido às péssimas condições dos presídios, o que ocorre na prática é justamente o inverso.

Como se não bastasse, os presidiários durante cumprimento de sua pena, convivem entre si em um ambiente degradante, de tortura e de desrespeito à dignidade da pessoa humana. Alguns dos problemas enfrentados de forma corriqueira são: celas lotadas, rebelião contra os agentes penitenciários, disseminação de doenças, e neste cenário atual convém destacar a pandemia causada pelo novo coronavírus.

Dessa maneira, são inúmeros os aspectos os quais deveriam ser reconsiderados pelo poder público a fim de reinventar o sistema carcerário, uma vez que as próprias condições desumanas acabam funcionando como uma segunda pena, ainda mais rígida e humilhante, desrespeitando os direitos fundamentais do indivíduo.

 

  1. O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL

 

Inspirado no Direito Consuetudinário, trouxe o legislador brasileiro para o Código de Processo Penal, através da lei nº 13.964/19 o acordo de não persecução penal, conhecido internacionalmente como plea deal ou plea bargain.

 Essa nova possibilidade consiste na negociação entre o Ministério Público e o investigado para que não seja instaurada ação penal. Desde que o sujeito cumpra determinadas condições haverá a extinção de punibilidade, caso contrário oferecimento da denúncia.

Tal instituto, já aplicado em países a fora serve como mecanismo para não só evitar a superlotação carcerária, mas também aumentar a efetividade do sistema penal, uma vez que prevê imunidade a aquele que o faz, bem como a possibilidade de prisão de criminosos efetivamente perigosos.

Para a aplicação deste instituto é necessário que o réu preencha os requisitos expressos no art. 28-A, bem como cumpra determinadas condições impostas pelo Ministério Público de forma discricionária.

São os requisitos:

  • Desde que não seja caso de arquivamento ou novas diligências;
  • Ter o réu confessado a prática do delito;
  •  O crime deve ter sido praticado sem violência ou grave ameaça;
  • Pena mínima tipificada deve ser inferior a 4 (quatro) anos;
  • Delito não deve ter sido praticado no âmbito de violência doméstica;
  • Não será aplicado o acordo caso cabível transação penal;
  • Não pode o sujeito ser reincidente;
  • Não pode o agente ter sido beneficiado nos últimos 5 anos anteriores aos institutos do acordo de não persecução; transação ou suspensão condicional do processo.

São as condições:

  • Reparar o dano ou restituir a coisa à vítima;
  • Renunciar a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como sendo instrumento, produto ou proveito de crime;
  •  Prestar serviço à comunidade ou outro lugar correspondente pelo período mínimo de pena cominada ao delito;
  •  Pagar prestação pecuniária para entidade pública;
  • Cumprir outra condição que o Ministério Público exigir.

 

Logo, é possível que, ainda na fase de investigações preliminares, as próprias partes negociem entre si a fim de evitar o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público. Com a realização do acordo, impossível será a aplicação de pena privativa de liberdade uma vez que inexiste ação penal, devendo o averiguado apenas cumprir as determinações escolhidas pelo promotor de justiça.

 

  1. DESAFIOS E PERSPECTIVAS DO FUTURO

 

Apesar da criação desta nova via negocial possuir como escopo a tentativa de solucionar os conflitos existentes de forma mais célere e assim, evitar a criação de novos processos, há ainda diversas controvérsias sobre a aplicação do tema.

Para alguns doutrinadores e pensadores do Direito, esta nova forma de negociação trouxe inúmeros pesares para o processo penal. Dentre eles cumpre-se destacar a violação ao princípio do devido processo legal e, consequentemente, da obrigatoriedade da ação penal. Sobre o assunto discorre Rogério Sanches:

 

Apesar de pressupor sua confissão, não há reconhecimento expresso de culpa pelo investigado. Há, se tanto, uma admissão implícita de culpa, de índole puramente moral, sem repercussão jurídica. A culpa, para ser efetivamente reconhecida, demanda o devido processo legal. (CUNHA, Rogério Sanches, 2020, p.129 APUD LOPES e JOSITA, 2020, grifo nosso).

 

Nesta mesma linha de raciocínio declara Souza e Teotônio (2019): “O mais basilar dos perigos ao implementar o plea bargain é o manifesto – e indigesto – desrespeito aos princípios da legalidade, moralidade, contraditório e ampla defesa, silêncio do acusado, idoneidade na produção de provas, dentre outros”.

Desta forma, apesar de não se iniciar uma ação penal, confessa o réu o ilícito cometido, devendo cumprir as determinações escolhidas pelo Ministério Público, sem a análise apurada dos fatos, ou seja, sem a existência do devido processo legal e a busca pela verdade real.

Outrossim, ainda sobre aspectos negativos, deve ser levado em consideração o aspecto psicológico do indivíduo, isto é, o medo da condenação influencia o sujeito para que aceite o acordo. Diante deste cenário, com receio de seu julgamento, da repressão por parte de seus amigos e familiares, muitas vezes o indivíduo acaba por aceitar sua aplicação.

Todavia, na contramão dos ideais supracitados, alguns doutrinadores defendem de maneira positiva esta inovação legal. Para eles, além de ser uma tentativa de desafogar o judiciário, o acordo favorecerá principalmente na redução de indivíduos no sistema prisional que, conforme discorrido anteriormente, encontra-se em estado de falência e superlotado.

            Dentre os defensores desta teoria está o autor Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2018) apud Castro e Souza (2019), o qual determina que o acordo “permite que o Ministério Público e Poder Judiciário possam dispensar maior atenção e celeridade aos crimes mais graves. Por outro lado, possibilita uma resposta muito mais rápida aos crimes de pouca gravidade”, além de simplificar a forma de resolver os conflitos penais.

O caso abaixo demonstra a necessidade de cumprimento das exigências expressas no art. 28-A, CPP. O indivíduo não preencheu os requisitos objetivos e subjetivos necessários para aplicação do acordo, a pena mínima do crime cometido era superior a quatro anos, agindo certo o Ministério Público em não propor o acordo.

 

Habeas Corpus. Tráfico de drogas. Alegação de constrangimento ilegal, consistente na ausência de oferecimento de acordo de não persecução penal em benefício do paciente. Inocorrência. Justificada a manutenção, pela Procuradoria-Geral de Justiça, da recusa em oferecer ao paciente o aludido acordo, porquanto não foram preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos previstos em lei. Crime com pena mínima superior a quatro anos. Inexistência de ilegalidade cometida pela autoridade apontada como coatora. Ordem denegada. (TJSP; Habeas Corpus Criminal 2043667-07.2020.8.26.0000; Relator (a): Guilherme de Souza Nucci; Órgão Julgador: 16ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Jundiaí - 1ª Vara Criminal; Data do Julgamento: 09/05/2020; Data de Registro: 09/05/2020)

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

 

É notável, em síntese, que andou bem o legislador uma vez que determinou de maneira específica os casos em que é possível sua aplicação, incluindo apenas os crimes menos graves, e analisando as circunstâncias de acordo com o caso concreto.

           

 CONCLUSÃO

           

É possível concluir, portanto, que em um país com diversas dificuldades, é necessário primeiramente priorizar situações que urgem por imediatas modificações. Tal caso é o que ocorre com o sistema prisional brasileiro hodierno e o sistema judiciário abarrotado de processos.

Desta forma, apesar de diversas críticas negativas sobre o acordo de não persecução penal, há também inúmeros elogios a partir desta nova forma de negociação criminal. Assim, desde que as partes atuem dentro de sua legalidade sempre visando o respeito aos princípios e direitos fundamentais, o instituto plea bargain auxiliará de maneira profunda na reforma do sistema penitenciário e judicial, trazendo incontáveis benefícios.

 Além da possibilidade de atenção maior do judiciário aos crimes mais complexos, o não encarceramento dos indivíduos considerados menos perigosos, surge como tentativa de ressocialização sem a necessidade do afastamento social.

Destarte, tal feito no Direito brasileiro é considerado um avanço em prol da modernidade, a busca por resolução de conflitos com a menor interferência da figura do juiz e maior diálogo entre as partes.

 

                                                                  REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Lei de Execução Penal. Lei nº 7210, de 11 de julho de 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 12 mai 2020.

BRASIL. Código de Processo Penal. Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>. Acesso em: 12 mai 2020.

CÂMARA, Mariana. Pacote anticrime: reflexões sobre o plea bargain. Justificando. Disponível em: <http://www.justificando.com/2019/03/25/pacote-anticrime-reflexoes-sobre-o-plea-bargain/>. Acesso em: 09 mai 2020.

 CASTRO, Lara Thais Martins de; SOUZA, Leland Barroso de. A Legalidade do Acordo de Não Persecução Penal à Luz do Ordenamento Jurídico Brasileiro. Âmbito Jurídico. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-penal/a-legalidade-do-acordo-de-nao-persecucao-penal-a-luz-do-ordenamento-juridico-brasileiro/>. Acesso em: 09 mai 2020.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 2020

GUIMARÃES, Isaac Sabbá; MACHADO, Nicaela Olímpia. A REALIDADE DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: Nicaela Olímpia Machado, Isaac Sabbá Guimarães. Revista Eletrônica de Iniciação Científica., Itajaí, v. 5, n. 1, p. 556-581, jun. 2014. Disponível em: <https://www.univali.br/graduacao/direito-itajai/publicacoes/revista-de-iniciacao-cientifica-ricc/edicoes/Lists/Artigos/Attachments/1008/Arquivo%2030.pdf> Acesso em: 09 mai 2020.

LOPES JUNIOR, Aury; JOSITA, Higyna. Questões polêmicas do acordo de não persecução penal. Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-06/limite-penal-questoes-polemicas-acordo-nao-persecucao-penal#_ftn3>. Acesso em: 09 mai 2020.

SOUZA, Gabriel Vinicius de; TEOTÔNIO, Paulo José Freire. Os perigos do ‘plea bargain’ no Brasil, bem como suas falácias. Justificando. Disponível em: <http://www.justificando.com/2019/07/15/os-perigos-do-plea-bargain-no-brasil-bem-como-suas-falacias/>. Acesso em: 09 mai 2020.

TJSP. Tribunal de Justiça de São Paulo. Acórdão nº 2043667-07.2020.8.26.0000. Relator: Desemb. Guilherme de Souza Nucci. Jundiaí, 09 de maio de 2020.  Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/processos/262513816/processo-n-2043667-0720208260000-do-tjsp?ref=lawsuit-search&source=bloodhound>. Acesso em 13 mai 2020.

           

Sobre a autora
Larissa Herrera

Acadêmica de Direito da Universidade de RIbeirão Preto - UNAERP. Ex- estagiária do escritório AJM advogados - Ribeirão Preto, estágiaria de férias em GoLiza Startup - São Paulo e também no escritório Trench Rossi Watanabe - São Paulo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos