A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou em junho desse ano, por 17 votos a dois, um projeto que objetiva a extensão da Lei Maria da Penha ás mulheres transgêneros e transexuais, buscando-se para esse grupo a equiparação dos direitos, uma vez que o mesmo não têm salvaguarda jurídica em igual situação de vulnerabilidade nas agressões sofridas no campo doméstico. A proposta altera um artigo da lei que diz que "toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião" não pode sofrer violência, incluindo o termo "identidade de gênero". Caso não haja recurso, o projeto seguirá direto para a Câmara, sem passar pelo plenário do Senado. Caso aprovado pela Câmara, alterar-se-á o artigo 2º da Lei, que determinará que “toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social”.
A partir da ideia culturalista, a tradição feminista não essencialista, que vai de Simone Beauvoir a Judith Butler, faz uma crítica radical do sistema sexo-gênero. A multiplicação dos gêneros proposto por J. Butler, por meio da noção da performatividade, poderia se traduzir juridicamente pela ideia de que cada indivíduo adota o gênero que deseja.
Adviria assim, um sujeito de direito sem gênero (ou ainda com vários gêneros) se tornaria o princípio que governaria a nova gramática sexual. Bastaria, para isso, pôr fim à prática de colocar o sexo dos indivíduos na certidão de nascimento. Isso permitiria regularizar os problemas encontrados pelos intersexuais e transexuais e acabaria com a proibição do casamento e da adoção de casais de mesmo sexo. (BORRILLO, Daniel. O sexo e o Direito: a lógica binária dos gêneros e a matriz heterossexual da Lei. Meritum – Belo Horizonte – v. 5 – n. 2 – p. 289- 321 – jul. /Dez. 2010
Maria da Penha, farmacêutica brasileira natural do Ceará, vítima de constantes agressões por parte de seu marido, que em 1983 tentou executá-la com um tiro de espingarda. O tiro, apesar de não ter sido fatal, deixou-lhe paraplégica. Retornando ao lar após o convalescimento, sofreu nova tentativa de assassinato, dessa vez seu agressor tentou eletrocutá-la.
Como a maioria das mulheres vítimas de violência doméstica, quando encontrou coragem de para denunciar o autor da sistemática violência de que era vítima, deparou-se com a incredulidade por parte da justiça brasileira. Em 1994, resolve acionar o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino Americano e do Caribe Para a Defesa da Mulher (CLADEM). Essas Organizações encaminharam o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Em 2002 o Caso Maria da Penha foi finalizado quando o Estado Brasileiro foi condenado por Negligência e omissão pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, comprometendo-se em reformular suas leis e políticas em relação à violência no âmbito doméstico.
Iniciando uma quebra de paradigmas, Maria da Penha foi a precursora do enfrentamento feminino contra a violência vivenciada por centenas de milhares de mulheres no mudo inteiro, tornando a lei 11.340, que recebeu o seu nome, consagrada internacionalmente pela Organização das Nações Unidas (ONU), como uma das três melhores legislações de gênero do mundo e conhecida nacionalmente por noventa e oito por cento da população brasileira.
A Lei Maria da penha retirou do âmbito do Juizado Especial Criminal a apuração dos casos de violência doméstica. Antes do seu advento, as demandas dessa natureza eram tratadas em mesas de conciliação, sendo imposto como sanção ao agressor o pagamento de algumas cestas básicas, muitas vezes retiradas do próprio sustento da família. Somando-se aos ferimentos morais e emocionais da vítima, a sensação de que sua integridade física e psicológica nada valia para a Justiça. Para o autor da violência ficava a mensagem de que custava barato espancar uma mulher.
Na violência doméstica, quem tem sua natureza intricada em questões culturais, fruto e uma sociedade patriarcal e com expressões machistas, a punição dos agressores não é suficiente para a desconstrução da noção deturpada de masculinidade, que segundo os estudiosos, acompanha o agressor desde a infância, sendo resultado de um comportamento “aprendido” que se estruturou de tal forma e com tamanho poder de dominação que suas ideias foram naturalizadas na sociedade.
Em um contexto de opressão de gênero e desrespeito à diversidade sexual, afronta também o respeito à identidade que também compõe a dignidade (HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In Dimensões da Dignidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 76).
A Lei Maria da Penha estipula quatro tipos de violência doméstica, são elas: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, sendo a primeira, caracterizada por qualquer ato contra a integridade ou saúde corporal da vítima. Enquanto que a violência psicológica consiste em qualquer ação que cause prejuízo psicológico, como humilhação, chantagem, insulto, isolamento, ridicularização. Também se enquadram nesse tipo de violência o dano emocional e controle do comportamento da mulher. A violência sexual, que é caracterizada pelo uso da força física, é aquela que força a mulher presenciar, manter ou participar de relação sexual indesejada, enquadrando-se também nesse tipo de violência o impedimento do uso de método contraceptivo, gravidez forçada, aborto ou prostituição mediante força ou ameaça. Já a violência patrimonial caracteriza-se por situações em que o agressor destrói bens, documentos pessoais e instrumentos de trabalho. E por fim, a violência moral que se constitui em caluniar, difamar ou cometer injúria contra a mulher.
Existem para essa legislação, no contexto de violência doméstica, três grupos vulneráveis, sendo o primeiro grande grupo composto por mulheres adultas, que sofrem todos os tipos de violência acima elencadas, por parte do parceiro ou ex parceiro. O segundo grupo é composto por crianças, meninas e adolescentes do sexo feminino, que sofrem violência sexual praticadas, na sua maioria, dentro da própria casa tendo na figura do abusador algum parente muito próximo. O terceiro grupo de vítimas é formado por mulheres com mais de sessenta anos, idosas que sofrem violência física, psicológica e material praticadas pelos próprios filhos, muitas vezes, usuários de drogas.
São três realidades bastantes distintas, que exigem estratégias de enfrentamento bastante diversas, somando-se a isso, é uma realidade mundial que as mulheres suportem a violência por vários fatores: Não se entendem como vítimas de violência, o temor de serem incompreendidas pela sociedade e familiares, medo de expor a privacidade publicamente, dependência financeira ou emocional, dentre muitos outros.
As mulheres que denunciam as primeiras violências sofridas, via de regra tendem a se retratar, voltar atrás, entendem os especialistas ser o ônus emocional do processo bastante difícil de suportar. Os estudiosos da área comportamental apontam para um padrão denominada “ Ciclo da Violência”, onde na primeira fase inicia-se os primeiros desgastes (humilhações, ameaças). Segue-se a segunda fase com a explosão das tensões (violência propriamente dita). Na terceira fase, denominada “lua de mel”, o autor da violência desculpa-se, comprometendo-se em modificar sua conduta. E assim, muitas mulheres ficam em situações sistemáticos de abuso até que aconteça o feminicídio, que é o assassinato de mulheres por questões de gênero.
Em relação ao que se refere a “gênero”, vejamos:
Enquanto o sexo, que pode ser masculino ou feminino, é um conceito
Biológico, o gênero, também feminino e masculino, é um conceito sociológico
Independente do sexo. (NICOLITT, Manual de Processo Penal, RT, 2016, p.
575 e seguintes)
Para a antropóloga Maria Luiza Heilborn, a definição do termo gênero para as Ciências Sociais está diretamente ligada à construção social do sexo e serve para distinguir a dimensão biológica da social. Vale citar uma passagem do texto da autora:
“Gênero é um conceito que visa apontar para a não continuidade do sexo físico e o sexo social, e que tem sido usado por diversos campos de conhecimento. O comportamento esperado de uma pessoa de um determinado sexo é produto das convenções sociais acerca do gênero em um contexto social específico. E mais, essas ideias acerca do que se espera de homens e mulheres são produzidas relacionalmente; isto é: quando se fala em identidades socialmente construídas, o discurso sociológico/antropológico está enfatizando que a atribuição de papéis e identidades para ambos os sexos forma um sistema simbolicamente concatenado (HEILBORN, 2006, p.3).1
Foram muitos os avanços da justiça brasileira com o instituto da lei Maria da Penha, mas não o suficiente para tirar o País da quinta colocação dentre as nações com maior número de casos de feminicídio, e o que podemos extrair de tudo isso é o entendimento de que a violência doméstica precisa, além de ser enfrentada, ser amplamente discutida, apostando na educação das novas gerações e na conscientização acerca do respeito e da igualdade entre os gêneros, assim, convicções contrárias à orientação e identidade sexuais da pessoa não merecem acolhida nos dias de hoje, devendo o Poder Judiciário repelir violação ao arcabouço de direitos fundamentais da pessoa humana, em obediência ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, fazendo-se necessário que se adote uma interpretação teleológica e sistemática da Lei 11.340/2006, visando a proteger não só o sexo biológico mulher, mas sim todos aqueles que se comportam como mulheres, exercendo seu papel social.