Pragmatismo

Breve visão sobre sua aplicação no ordenamento jurídico pátrio.

23/06/2020 às 17:51
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O presente trabalho tem por fim demonstrar as fundamentações pragmáticas das decisões do Supremo Tribunal e até que ponto tais argumentos são válidos para sustentar decisões judiciais, máxime quando as decisões contrariam texto de lei ou da Constituição.

1 - Introdução:

 

O presente trabalho tem por fim demonstrar as razões pragmáticas das decisões do Supremo Tribunal e até que ponto argumentos consequencialistas são válidos para sustentar decisões judiciais, máxime quando as decisões contrariam texto de lei ou da Constituição.

Demonstraremos que o Pretório Excelso valeu-se de argumentos com nítido caráter pragmático para modificar seu entendimento sobre determinados temas.

Verificar-se-ão as principais críticas à utilização de argumentos consequencialistas como fundamento de validade da decisão judicial, bem como a positivação do consequencialismo no ordenamento jurídico brasileiro com o advento da lei n° 13.655/2018.

Discutir-se-á o acerto ou não das decisões do Supremo Tribunal Federal e o enfraquecimento da segurança jurídica a partir do momento em que decisões judiciais forem preferidas sem lastro nas leis oriundas do Poder Legislativo.

Ao final, concluiremos o estudo com nossas impressões acerca do tema, demonstrando a necessidade de observância da segurança jurídica, máxime em democracias jovens como a nossa.

2 – PRAGMATISMO

 

O termo pragmatismo é equívoco e, portanto, comporta diversos significados. Richard Posner defende que não é só uma coisa, um conjunto de ideias, mas ao menos três. O juiz norte-americano defende ser mais uma tradição, atitude, ponto de vista, do que propriamente uma doutrina. (Posner, 2010). São três as principais características: o anti-fundacionalismo, o contextualismo e o consequencialismo. A primeira delas significa que o pragmático não se prende a dogmas, doutrinas, apenas método. Por contextualismo entende-se que, no pragmatismo, as proposições devem ser julgadas em conformidade com as necessidades sociais e humanas. O consequencialismo, por sua vez, informa que o pragmatista tem o olhar para o futuro e não para o passado. “O pragmatismo traz à baila o empirismo, o cientificismo, no qual a validade de uma proposição depende de um mecanismo de observação e demonstração de suas prováveis consequências. (Bilhim, 2016).

 A princípio, com o fim de restringir o âmbito de estudo, cumpre destacar que o pragmatismo objeto do presente trabalho é o denominado pragmatismo jurídico de Richard Posner.

O foco deste estudo é a utilização de argumentos pragmáticos (em especial os que levam em conta as consequências do decisum) como fundamento das decisões emanadas por Juízes e Ministros dos Tribunais Superiores.

Em seu livro “Direito Pragmatismo e Democracia”, Posner traz algumas generalizações sobre o pragmatismo que entendemos necessário trazer à baila:

O pragmatismo legal na forma defendida neste livro carece de compromissos políticos de realistas e dos críticos. Não tem qualquer valência política inerente. Baseia-se em avanços na economia, na teoria dos jogos, na ciência política e em outras disciplinas sociocientificas, em vez de preferências e aversões políticas não examinadas, para tomar o lugar do formalismo legal [...].

Num resumo brutalmente breve, o pragmatismo legal não está preocupado apenas com as consequências imediatas, não é uma forma de consequencialismo, não é hostil à ciência social, não é um positivismo hartiano, não é realismo legal não é estudos jurídicos críticos, não é sem princípios e não rejeita a norma jurídica. Ele é absolutamente antiformalista, nega que o raciocínio jurídico difira de forma substancial do raciocínio prático comum, favorece fundamentos estreitos em vez de amplos para as decisões no início do desenvolvimento de uma área do direito, simpatiza com a retórica e antipatiza com a teoria moral, é empírico, é historicista, mas não reconhece “dever” em relação ao passado, desconfia da norma jurídica que não abre exceções e se pergunta se os juízes não poderiam fazer melhor em casos difíceis do que chegar a resultados razoáveis (em oposição a resultados demonstravelmente corretos).  

           

Percebe-se que as decisões ditas pragmáticas são aquelas que se preocupam com as consequências, tanto no caso concreto, quanto sistêmicas. O pragmatismo de Posner é antiformalista, antipática às teorias do direito e fundamentalmente empírico. Assim, o juiz pragmático tem por preocupação inicial a melhor consequência para o caso concreto, independente da existência ou não de norma jurídica que ampare a pretensão ajuizada, podendo se valer de decisões anteriores, mas não vinculado a elas. Para Posner: “O pragmatista valoriza a continuidade com promulgações e decisões passadas, mas porque tal continuidade é de fato um valor social, mas não porque tenha um senso de dever para com o passado”. (Posner, 2010).   

O juiz norte-americano defende que, malgrado devam ser observadas a leis oriundas do legislador, o juiz pode desconsiderá-las em casos extremos: “Juízes declarando guerra ao Legislativo e a tribunais de instância superior é desestabilizador e, em geral, uma coisa ruim, mas nem sempre pior do que a alternativa”. (Posner, 2010).

Logo, para fins do presente trabalho, será levada em consideração a conceituação de Richard Posner sobre pragmatismo, em especial a análise, pelos juízes, das consequências de suas decisões como fundamento de validade.

Importante destacar que Richard Ponser difere pragmatismo de consequencialismo. Para o autor, apesar da ênfase nas consequências, o pragmatismo não é uma forma de avaliar as melhores consequências imediatas de uma decisão, mas também os efeitos da decisão sobre o restante do sistema jurídico. A ênfase será nas consequências do caso concreto, salvo quando implicar consequências sistêmicas nocivas. (Posner, 2010)   

A primeira vista, os estudiosos do direito pátrio poderão estranhar a terminologia, bem como desconfiar de sua aplicação em casos concretos aqui no Brasil. Contudo, como demonstraremos, não foram poucas as vezes em que argumentos pragmáticos foram utilizados pela Corte Suprema para decidir seus processos.

2.1 – Críticas ao pragmatismo:

Não são poucas as críticas ao pragmatismo e ao uso de argumentos consequencialistas como fundamento da decisão judicial. 

Humberto Ávila trata decisões pragmáticas como argumentos não institucionais, pois não guardam relação com o direito vigente. Defende o celebrado autor que argumentações consequencialistas possuem peso subsidiário justamente porque consequências econômicas e sociais não encontram seu fundamento de validade no Direito vigente, diferentemente da argumentação institucional. (Bilhim, 2016). Segundo referido autor, citado por Diego Werneck Arguelles:

Os argumentos institucionais são aqueles que, por serem determinados por atos institucionais - parlamentares, administrativos, judiciais -, têm como ponto de referência o ordenamento jurídico. Possuem, nesse sentido, maior capacidade de objetivação. Os argumentos não-institucionais são decorrentes apenas do apelo ao sentimento de justiça que a própria interpretação eventualmente evoca. Possuem, por isso, menor capacidade de objetivação. (Arguelles, Argumentos Consequencialistas e Estado de Direito: Subsídios para uma compatibilização, 2006.).

Essa menor capacidade de objetivação é um dos fatores que geram insegurança jurídica e permitem maior arbítrio ao julgador. Diego Werneck e Fernando Leal apresentam contraponto ao pragmatismo, levando em consideração a necessidade de um mínimo de previsibilidade das decisões judiciais:

Mas tal concepção (pragmática) também traz dificuldades. A principal delas diz respeito ao papel do Judiciário e do próprio Direito na estabilização de expectativas sociais. Certos comportamentos são praticados ou evitados na medida que os indivíduos esperam que o estado reaja às suas ações de uma maneira específica passível de identificação ex ante. Empresta-se dinheiro porque se sabe que o direito garante o acesso ao judiciário com vistas à obtenção da quantia emprestada; compra-se um bem pensando que o estado irá intervir caso terceiros prejudiquem a sua utilização pelo proprietário. Esta é justamente uma das dimensões do Estado de Direito – um ponto sobre o qual há extensa e convergente literatura jurídica, econômica e sociológica. DE qualquer sorte, ainda que os argumentos em defesa dessa tese possam variar, bem como os motivos que levam à sua aceitação, há amplo reconhecimento de que as hipóteses de admissibilidade da ação estatal – e sobretudo o seu conteúdo devem ser minimamente previsíveis”. (Arguelles & Leal, Pragmatismo como (Meta) Teoria Normativa da Decisão Judicial, 2009).

A crítica é escorreita, porquanto o pragmatismo, ao menos da forma trazida por Posner, retira do indivíduo qualquer previsibilidade nas decisões judiciais, o que gera, por óbvio, indesejável insegurança jurídica. Claro que o pragmatismo jurídico de Richard Posner leva em conta o sistema jurídico norte-americano e ele mesmo faz menção expressa a isso em sua obra. Contudo, como veremos, o pragmatismo, em especial as consequências da decisão como fundamento das sentenças têm sido amplamente utilizado, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, razão pela qual o cuidado deve ser redobrado.

Como cediço, pouco guardamos em termos de semelhança com o sistema jurídico norte-americano. Até mesmo o ingresso na magistratura nos diferentes países é feito de forma diversa. Boa parte dos juízes nos cinquenta estados federados é eleita por voto popular. Destarte, a legitimidade dos juízes que por aqui se dá com base na fundamentação das decisões e sentenças, por lá encontra amparo na própria forma de investidura no cargo.

Assim, entendemos que o juiz norte-americano que ingressa no cargo mediante voto popular e que baseia suas decisões em precedentes judiciais, tem maior possibilidade de fundamentar suas decisões visando às consequências que aquela sentença terá no caso concreto. Por aqui, esbarramos nessa ausência de legitimidade do juiz brasileiro em se sobrepor às leis votadas pelo Poder Legislativo e, portanto, o espaço que possui para fundamentar suas decisões nas consequências do caso concreto, principalmente quando contrariar a lei imposta, é limitado.  

  Renata da Silveira Bilhim também traz críticas contundentes ao pragmatismo:

É preciso aferir um comprometimento, ainda que mínimo, com o ordenamento jurídico vigente, caso contrário, restaria instaurada a segurança jurídica tamanha a colocar em xeque os ideais conquistados ao longo da história.

É importante aferir as consequências que dada decisão judicial poderá causar do seio da sociedade. Mas esse argumento, por si só, não é suficiente para afastar a norma jurídica existente e válida, transferindo ao Poder Judiciário a função de legislador positivo. (Bilhim, 2016)

Concordamos integralmente com a nobre professora. Entendemos de grande importância a análise das consequências da decisão, mas imprescindível que se respeite as normas vigentes no ordenamento jurídico, justamente pela necessidade de conferir segurança jurídica às decisões judiciais.

De qualquer forma, em que pesem as críticas, parcela da doutrina que estuda o pragmatismo no Brasil defende a possibilidade de utilização de argumentos consequencialistas como fundamento de validade das decisões judiciais, porém apenas subsidiariamente.

2.2 – As alterações promovidas na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro pela lei n° 13.655/2018, a positivação do consequencialismo no ordenamento jurídico. 

A lei n° 13.655/2018 trouxe substanciais modificações à Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, dentre elas conferiu nova redação aos artigos 20 e 21 da LINDB, in verbis:

 

 Art. 20: Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.

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Art. 21 “A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas. Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.

Por certo a preocupação do legislador foi com o número excessivo de decisões judiciais proferidas com base em princípios, muitas vezes contrariando o próprio texto legal. Como forma de frear esse ativismo judicial, o Congresso Nacional aprovou a modificação no texto legal positivando o argumento consequencialista no ordenamento jurídico.

Procede a preocupação de juristas e do Congresso Nacional com a utilização desenfreada de princípios como fundamento de validade das decisões, com maior razão quando os princípios são utilizados pelo julgador para afastar a incidência de lei ou artigo de lei sem prévia declaração de inconstitucionalidade. Ora, o ordenamento jurídico prevê as formas de retirada de leis (ou mesmo artigos, palavras ou interpretações) incompatíveis com a Constituição. O afastamento de leis vigentes pelo julgador sem prévia declaração de inconstitucionalidade nos parece indevida.

Quando ainda tramitava no parlamento o então projeto de lei n° 7.448/2017 foi objeto de críticas tecidas pela Consultoria Jurídica do Tribunal de Contas da União – TCU (documento intitulado: “Análise Preliminar do PL 7.448/2017”). Em resposta a esta consulta foi emitido parecer oriundo de notórios juristas como Maria Sylvia Zanella de Pietro, Gustavo Binenbojm, Roque Carraza, Marçal Justen Filho, dentre outros, com o seguinte teor:

“O PL n° 7.448/2017 pretende inserir o artigo 20 na LINDB com a finalidade de reforçar a ideia de responsabilidade decisória estatal diante da incidência de normas jurídicas indeterminadas, as quais sabidamente admitem diversas hipóteses interpretativas e, portanto, mais de uma solução. A experiência demonstra ser comum a tomada de decisões muito concretas a partir de valores jurídicos bem abstratos — tais como o interesse público, o princípio da economicidade, a moralidade administrativa, etc. O fenômeno é comum às esferas administrativa, controladora e judicial. Diante desse quadro, o parágrafo único do art. 20 propõe instituir ao tomador de decisão o dever de demonstrar, via motivação, "a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas

Para o TCU, entretanto, o comando imporia ao julgador o dever de decidir com base em informações que não constariam dos autos e que precisariam ser fornecidas pelas partes. Para a Corte de Contas federal, a norma não poderia “exigir do julgador que analise as possíveis alternativas, se o conhecimento do julgador acerca da realidade está limitado ao que consta dos autos, trazido pelas partes".

As críticas são improcedentes. O dispositivo não exige conhecimento extra processual do julgador, mas sim que concretize sua função pública com responsabilidade. Veda, assim, motivações decisórias vazias, apenas retóricas ou principiológicas, sem análise prévia de fatos e de impactos. Obriga o julgador a avaliar, na motivação, a partir de elementos idôneos coligidos no processo administrativo, judicial ou de controle, as consequências práticas de sua decisão. E, claro, esse dever se torna ainda mais importante quando há pluralidade de alternativas. Quem decide não pode ser voluntarista, usar meras intuições, improvisar ou se limitar a invocar fórmulas gerais como 'interesse público', 'princípio da moralidade' e outras. É preciso, com base em dados trazidos ao processo decisório, analisar problemas, opções e consequências reais. Afinal, as decisões estatais de qualquer seara produzem efeitos práticos no mundo e não apenas no plano das ideias. ".

 Percebe-se, portanto, que a intenção do legislador foi conferir diretrizes ao juiz quando seu julgamento basear-se em princípios jurídicos abstratos, evitando-se, conforme o parecer, “motivações decisórias vazias, apenas retóricas ou principiológicas”. Destarte, as consequências da decisão passaram a ter papel relevante nas sentenças judiciais e são de observância obrigatória pelo julgador.

Uma vez que não há parâmetros definidos em lei, caberá aos Tribunais Superiores decidir acerca de quais as consequências (econômicas, socais, etc.) deverão ter relevância sobre outras, sendo o tema ainda deveras controverso e carente de maior elaboração doutrinária e jurisprudencial. Pergunta-se, caso uma consequência seja melhor do ponto de vista econômico, porém socialmente prejudicial a determinado número de pessoas, referido argumento é válido? Como ponderar? Por outro lado, imagine-se uma decisão que beneficia um grande número de pessoas fornecendo, por exemplo, medicamentos de quantia vultuosa a quem deles precise. Nesse caso, possivelmente, as consequências econômicas serão danosas ao erário, mas a decisão será excelente àquelas pessoas que poderão se beneficiar dos fármacos. Como decidir?  Qual consequência deve preponderar no caso concreto?   

Nos parece que a nova redação do artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro trouxe ainda mais perplexidade a um tema ainda muito complexo, sem grande aprofundamento doutrinário, ao menos no Brasil, e deveria ter sido objeto de maiores debates, porquanto seu intento de frear o ativismo judicial pode ter efeito contrário ao atribuir ao juiz uma nova possibilidade de fundamentar suas decisões com base em consequências que lhe pareçam mais caras.

Portanto, a modificação do artigo que visava, talvez, engessar a atuação judicial, evitando decisões “vazias”, acabou por conferir uma maior oportunidade de discricionariedade ao Juiz ao fundamentar suas decisões com base nas consequências que melhor lhe aprouverem, justamente por não haver baliza a ser respeitadas, ou mesmo parâmetros sobre qual resultado deve preponderar quando houver consequências conflitantes.

 

2.3 – Decisões pragmáticas no âmbito dos Tribunais Superiores:

 

A utilização de argumentos consequencialistas pelos Tribunais Superiores não é novidade e, por óbvio, não foram utilizados pela primeira vez no julgamento do Habeas Corpus 129.292/SP. Neste tópico traremos algumas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal que se valeram de fundamentos pragmáticos.  

Ao julgar procedente a ADI 1.946-DF, proposta pelo PTB, o Supremo Tribunal Federal conferiu interpretação conforme a constituição, excluindo da aplicação do artigo 14, da EC n° 20/98 o salário da licença gestante, a que se refere o art. 7°, XVIII, da Constituição Federal. O teor do julgado foi que o salário da licença à gestante deve ser pago pela previdência social e não pelo empregador. O relator, Ministro Sidney Sanches, fundamentou sua decisão baseando-se em uma suposta opção do empregador pelo trabalhador do sexo masculino em detrimento das mulheres, face à necessidade de arcar com o valor sobressalente àquele pago pela previdência às beneficiárias do benefício. Vejamos um trecho notoriamente pragmático do julgado:

Na verdade, se se entender que a Previdência Social, doravante, responderá por apenas R$1.200,00 por mês, durante a licença da gestante, e que o empregador responderá, sozinho, pelo restante, ficará sobremaneira facilitada e estimulada a opção deste pelo trabalhador masculino, ao invés da mulher trabalhadora. (ADI 1.946, Rel. Min. Sydnei Sanches, julgamento 3-4-2003, Plenário, DJ de 16-5-2003.). (FEDERAL, 2011)

 Percebe-se que o argumento utilizado pelo Supremo Tribunal Federal foi o da dificuldade do ingresso das mulheres no mercado de trabalho, caso o salário licença gestante precisasse ser arcado pelo empregador. Logo, o argumento possui manifesto caráter pragmático e foi o fundamento de validade da decisão que julgou procedente a ação direta de inconstitucionalidade. 

Em outros julgado paradigmático proferido no RE .135.328-7-SP, o Supremo foi instado a se manifestar acerca da constitucionalidade do artigo 68 do Código de Processo Penal que prevê a possibilidade de o Ministério Público ingressar com ação civil ex delicto quando o titular do direito for “pobre”. Como cediço, a partir da Constituição Federal de 1988, a defesa judicial do hipossuficiente passou a ser da Defensoria Pública, órgão de extrema importância, mas ainda desestruturada em muitos estados.

O Estado de São Paulo recorreu ao Supremo objetivando a declaração da ilegitimidade ativa do Ministério Público para propor ações civil ex delicto em favor dos hipossuficientes, por se tratar de atribuição da Defensoria Pública. Ao decidir a questão, o STF reconheceu a inconstitucionalidade do artigo 68 do CPP, porém, preocupado com as consequências que referida decisão teria, em especial nos Estados em que a Defensoria Pública não estivesse organizada de direito e de fato, declarou que referido artigo estaria passando por um processo de inconstitucionalização, subordinando-se a alterações da realidade fática que a viabilize. Vejamos parte do acórdão:

No contexto da Constituição de 1988, a atribuição anteriormente dada ao Ministério Público pelo art. 68 do CPP – constituindo modalidade de assistência judiciária – deve reputar-se transferida para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do artigo 134 da própria constituição e da lei complementar por ela ordenada: até que – na União ou em cada Estado considerado – se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o artigo 68 do CPP será considerado vigente: é o caso do Estado de São Paulo (RE 147.776, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-5-1998, Primeira Turma, DJ de 19-6-1998).  (FEDERAL, 2011).

Segundo Werneck, a decisão pela não-recepção do art. 68 do CPP seria um “elo” em uma cadeia causal que resultaria em um estado de coisas no qual os pobres não teriam o seu acesso à justiça garantido – um “mundo possível” contrário ao disposto no art. 5o, LXXIV da Constituição”. (Arguelles, Argumentos Consequencialistas e Estado de Direito: Subsídios para uma compatibilização, 2006.).

Recentemente, o Ministro Luiz Fux, ao revogar a medida liminar que conferiu aos Juízes de todo o Brasil o direito ao auxílio moradia, valeu-se de fundamentos pragmáticos para sua decisão. Vejamos um trecho da decisão proferida na Ação Originária 1773/DF:

Portanto, o enfrentamento de tema tão sensível como o dos presentes autos, em que se examina a licitude do regime remuneratório das carreiras da Magistratura e do MP, e em que a repercussão econômica é vultosa para os cofres de todos os entes da federação, não pode desprender-se dos impactos orçamentários resultantes tanto da tutela antecipada deferida quanto do recém-aprovado reajuste dos subsídios, sobretudo no contexto de grave crise econômica que acomete o país. Em cenários como esse, o Poder Judiciário deve, sempre que possível, proferir decisões ou modificar as já existentes para que produzam um resultado prático razoável e de viável cumprimento. É que, em uma abordagem pragmática e multidisciplinar, a atuação do juiz, como agente político dotado da missão de resolver conflitos intersubjetivos, deve ser informada por três axiomas: o antifundacionalismo, o contextualismo e o consequencialismo. Primeiro, o Direito não é um fim em si mesmo, mas um processo dinâmico com finalidades sociais. Destarte, as decisões judiciais devem ser avaliadas relativamente à sua potencialidade de resolver e pacificar conflitos reais, fortalecendo relações jurídicas outrora estremecidas, maximizando a normatividade do ordenamento jurídico e promovendo o bem-estar social, sem que o magistrado possa se descuidar dos limites de sua própria função.

  

Acreditamos que referida decisão ilustra perfeitamente como se valer de argumentos pragmáticos para afastar a incidência de lei. Aliás, o trecho trazido à baila parece ter saído diretamente do livro de Richard Posner. Como cediço, o auxílio moradia é previso na Lei Orgânica da Magistratura. Logo, enquanto não retirada do ordenamento jurídico, declarando-se sua não-recepção pela Constituição Federal de 1988, a Lei deveria manter sua vigência. Contudo, argumentos como a realidade orçamentária, o atual cenário econômico, finalidades sociais, foram utilizados para justificar a revogação da liminar alhures conferida.

Nos parece que referida decisão do Ministro Fux escancara a possibilidade de utilização de argumentos pragmáticos nas decisões judiciais. O acerto dessa possibilidade será discutido mais a frente. O que não se pode negar é que o Supremo Tribunal Federal, por meio de grande parte de seus Ministros, tem-se utilizado do pragmatismo jurídico de Richard Posner como argumento de validade das decisões. 

Não se está defendendo o auxílio-moradia, tampouco a decisão liminar conferida anteriormente. Defende-se que, dentro do ordenamento jurídico, os instrumentos colocados à disposição do Supremo Tribunal Federal, dentre eles os de declarar que determinada lei, ou artigo de lei, não foi recepcionada pela Constituição Federal, sejam devidamente utilizados, até para evitar que, no futuro, referido auxílio (caso contrário à Constituição) volte a ser implantado. Ora, da forma como que a decisão foi proferida, nada obsta que, com o fim dos problemas econômicos, volte-se a pagar esse e outros benefícios, pois não se declarou sua incompatibilidade com a Constituição Federal.

Esses são apenas alguns exemplos acerca da utilização de argumentos consequencialistas como fundamento de validade das decisões dos Tribunais Superiores. Não se trata de matéria nova, algumas decisões são ainda do século passado. Assim, demonstra-se que sempre houve uma preocupação do Poder Judiciário em maior ou menor grau com as consequências de suas decisões. Em que pese a utilização desses argumentos pragmáticos há mais de duas décadas, pouco se evoluiu, seja na doutrina, seja na jurisprudência, no estudo sobre o pragmatismo jurídico, seus parâmetros e meios de ponderação de consequências desejáveis ou não.

Não se olvida dos notáveis esforços de parcela da doutrina, como os dos autores narrados nesse trabalho, como o fim de compatibilizar o uso de argumentos pragmáticos ao ordenamento jurídico, sendo tais trabalhos de enorme importância para o estudo das consequências nas decisões judiciais.

 

3. Argumentos pragmáticos na esfera criminal.

Bruno Torrano faz interessante ensaio acerca do uso de argumentos pragmáticos em matéria penal:

O dispositivo constitucional (art. 5°, LVII) cuida de matéria relativa à atenção em direitos e garantias criminais, seara jurídica à qual o legislador não deposita no magistrado grau suficiente de confiança que autorize a realizar grandes digressões argumentativas sobre a desejabilidade de solução imposta pelo legislador. A interpretação deve, no ponto, ser a mais literal possível. (Torrano, 2018)

Concordamos com o eminente autor. Argumentos pragmáticos já possuem a característica de ser antiformalista e gerador de insegurança jurídica, quando utilizados sem parâmetros razoáveis. Na esfera criminal, a ausência de segurança é ainda mais preocupante e configura seara indesejável para afastamento da lei, quiçá da Constituição Federal.

Como visto, a possibilidade de observância das consequências da decisão agora é expressa em razão da nova redação do artigo 20 da lei de introdução às normas de direito brasileiro, quando o juiz decidir com base em valores jurídicos abstratos. Não é este o caso do disposto no artigo 5°, LVII, da Constituição Federal. Na consagrada divisão entre normas e princípios, cediço que o artigo em comento é considerado norma e não princípio. 

Recorremos, outra vez, à doutrina de Bruno Torrano que afirma: “o art. 5°, inciso LVII, da Constituição, que é uma norma garantidora de direitos, só poderia ser considerada “princípio” ao preço de rasgar-se toda a dogmática jurídica que sustenta as distinções analíticas entre direito e regra”. (Torrano, 2018)

 Logo, não encontra guarida no ordenamento jurídico, tampouco é desejado, o uso de argumentos pragmáticos na esfera criminal. Em casos de normas como a do artigo 5°, LVII, da Constituição Federal, que é cogente, a utilização de argumentos pragmáticos para afastar sua incidência chega a ser teratológica. 

Defendemos tal posição não apenas quando os argumentos pragmáticos forem contrários ao réu, mas também quando forem favoráveis. Percebe-se a existência por parte do Poder Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça, de uma especial preocupação do sistema carcerário. Não vamos surpreender ninguém ao falarmos dos inúmeros problemas das penitenciárias e cadeias públicas brasileiras, situação deveras alarmante e que chegou a ser considerada “estado de coisas inconstitucional” pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 347. 

Pergunta-se, pode o juiz pragmático decidir pela inexecução de uma pena privativa de liberdade ou mesmo deixar de decretar uma prisão preventiva, quando presentes seus requisitos, com base no argumento da precariedade das prisões ou com base nesse estado de coisas inconstitucional? Entendemos que não. Da mesma forma que o argumento pragmático não pode prejudicar o condenado, não pode beneficiá-lo. Não se pode ter entendimentos diversos quando o pano de fundo é um só. A segurança jurídica deve ser observada em ambas as hipóteses. Afinal, quem tem o poder de decidir quais réus devem ou não cumprir pena com base na superlotação das cadeias? Quais réus devem ser agraciados? Mais uma vez permite-se ao juiz utilizar-se de ampla discricionariedade para decidir de forma contrária à lei.

Ora, o cumprimento da pena após o trânsito em julgado é uma imposição legal e não uma faculdade. Não compete ao Juiz decidir quem deve ou não cumprir pena. Já não bastasse a calamitosa situação existente em diversos Estados da Federação em que os presos do regime semiaberto ficam soltos nas ruas, em manifesta afronta às Lei de Execuções Penais, podemos chegar ao cúmulo de permitir que presos condenados a regime de pena fechado cumpram a reprimenda em liberdade ou em “prisão domiciliar”, que é tudo, menos prisão. 

Pode-se argumentar, com razão, que o cárcere não ressocializa e que por vezes os presos voltam à sociedade piores do que entraram. O argumento é válido e sedutor. Contudo, insistimos, não compete ao Juiz decidir, contrariamente à lei, quem deve ou não ser preso, quando presentes os requisitos da prisão preventiva ou quando se tratar de condenado a regime fechado por sentença irrecorrível.

O que de fato ocorreu nessa questão do problema da superlotação carcerária foi a avocação indevida pelo Poder Judiciário de um problema do Poder Executivo. Ora, se faltam vagas, se as condições do cárcere são insalubres, se os presos seguem cometendo crimes dentro do estabelecimento prisional, esses imbróglios devem ser resolvidos pelo Pode Executivo estadual ou federal a depender da competência. Compete aos juízes de primeiro grau, isso sim, velar para que ninguém fique preso preventivamente sem sentença por período exacerbado e irrazoável, conceder aos presos que cumprem pena todos os direitos e benefícios previstos na LEP, preferencialmente assim que cumpridos os requisitos objetivos, como nos casos de progressão de regime de pena. Aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais cabe o julgamento célere de habeas corpus e dos recursos de apelação ou em sentido estrito de réus presos interpostos contra sentenças e decisões do juiz de piso. Aos Tribunais Superiores, além do julgamento rápido de habeas corpus e Recursos Especiais e Extraordinários submetidos à apreciação, exige-se a uniformização de suas decisões como forma de garantir a necessária segurança jurídica dos indivíduos e operadores do direito. Fora dessa esfera, os problemas são de outros Poderes, mas não do Judiciário.    

 

4. CONCLUSÃO:

Demonstramos no presente trabalho que a utilização de argumentos consequencialistas nas decisões judiciais remonta ao século passado e já foram utilizados nas mais diversas áreas do Direito.

A despeito de outros argumentos previstos dentro do ordenamento jurídico, a Corte Suprema valeu-se de fundamentos com nítido caráter pragmático afastando na espécie a incidência de normas constitucionais e legais.

Vimos que a utilização de argumentos consequencialistas como fundamento de validade da decisão, máxime na esfera criminal, gera insegurança jurídica e, em que pese ter sido positivada na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, o julgamento baseado em consequências possui caráter subsidiário só devendo ser utilizada quando o julgador valer-se valores jurídicos abstratos. Essa aplicação subsidiária é defendida por parte da doutrina como Humberto Ávila e Diego Werneck.

O pragmatismo como teoria normativa da decisão judicial demanda maior aprofundamento doutrinário e, principalmente, de balizas legais ao julgador no momento da apreciação de qual consequência utilizar no caso concreto, sob pena de conferir ao juiz ampla discricionariedade em suas decisões, aumentando o ativismo judicial e fomentando a insegurança jurídica. 

Conferir ampla discricionariedade aos juízes no momento de escolher qual a melhor consequência de uma decisão no caso concreto quando se deparar com princípios “vagos”, não é melhor ou mais segura do que a decisão baseada nos próprios princípios. Em ambos os casos, o problema é o mesmo, qual seja, a ausência de um maior controle sobre as decisões judiciais.

A lei n° 13.655/18 perdeu excelente oportunidade de impor aos Juízes parâmetros seguros de escolha quando estes se depararem com a necessidade de fundamentar suas decisões com base em princípios ou mesmo nas consequências de suas sentenças.

Destarte, conforme aprofundado no presente trabalho, a utilização de argumentação pragmática das decisões judiciais ainda carece de maior aprofundamento doutrinário e jurisprudencial, pois não se pode admitir que o jurisdicionado desconheça ou não seja capaz de prever o resultado de uma decisão judicial.   

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

Arguelles, D. W. (2006.). Argumentos Consequencialistas e Estado de Direito: Subsídios para uma compatibilização. Anais do XIV Congressso Nacional do CONPEDI.

Arguelles, D. W., & Leal, F. (2009). Pragmatismo como (Meta) Teoria Normativa da Decisão Judicial. Em Filosofia e Toeria Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris.

Bilhim, R. d. (2016). Pragmatismo e Justificação da Decisão Judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris.

Campos, C. A. (2015). Dimensões do Ativismo Judicial do STF. Rio de Janeiro: Forense.

Dworkin, R. (2011). Levando os Direitos a Sério (3ª ed.). (N. Boeira, Trad.) São Paulo: Martins Fontes.

FEDERAL, S. T. (2011). A Constituição e o Supremo. Brasília: Secretaria de Documentação.

Posner, R. A. (2010). Direito Pragmatismo e Democracia (1ª ed.). (T. D. Carneiro, Trad.) Rio de Janeiro: Forense.

Schuartz, L. F. (s.d.). Consequêncialismo Jurídico, racionalidade decisória e maladragem. Atlas.

Torrano, B. (2018). Pragmatismo no Direito - E a urgência de um "pós-pós-positivismo" no Brasil. Rio de Janeiro : Lumen Juris.

Sobre o autor
Pedro Nogueira

Juiz de Direito desde junho de 2002. Ex-Juiz Eleitoral - tendo realizado três eleições (2012, 2014 e 2018). Mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa. Participante do “International Judicial Training Program in Judicial Aministration” – University of Georgia – EUA. MBA em Poder Judiciário pela FGV (em andamento). Formador de formadores (FOFO), certificado pela Enfam – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. Coautor de obras jurídicas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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