Meus Amigos, boa tarde!
Quem fala por determinação de outrem, não por impulso próprio, há de ter em seu favor a justa escusa ou dirimente de que, sendo o dever um dogma, não fizera mais que respeitosamente curvar-lhe a fronte; o que decerto o defenderá da arguição de infrator daquele velho anexim, segundo o qual, “onde há galos de fama, pintos não têm que fazer”!
Nossa presença aqui, portanto, deve interpretar-se apenas como sincero desejo de colaborar em mais um mutirão em prol das Execuções Criminais. Tem o sentido também, para que assim o digamos, de um como preito aos distintos colegas que, debaixo de verdadeira “pena de limitação de fim de semana”, comparecem a este I Encontro Estadual de Juízes da Execução Criminal para aprimorar os cabedais de espírito e trazer-nos o conforto do amplexo fraterno.
É grande fortuna poder falar logo depois do Dr. Pedro Gagliardi, porque o orador (ou arengador) ainda encontra repleto o auditório. A debandada dos ouvintes (ou vítimas?) será mais tarde!
Mas, vamos ao ponto.
Faz poucos dias, no gabinete da Vice-Presidência do Tribunal de Alçada Criminal (Tacrim), onde está sempre a despachar, até noite cerrada, processos infinitos em número, o Pedrinho (perdão: Sua Excelência o Dr. Pedro Gagliardi) ministrou a alguns juízes que ali nos achávamos bela e oportuna lição, e foi que devíamos adotar, com referência às causas-crimes, a seguinte filosofia ou estilo de proceder: alguma severidade, se tivéssemos de usar com o réu, que o fosse até o momento da sentença, porque, ao depois, cumpria se mostrasse a Justiça menos implacável e mais tolerante com aquele que, já condenado e, pois, perdida sua liberdade (bem supremo), tornara-se, na frase de Carnelutti, “o mais pobre de todos os pobres: o encarcerado”([1]).
Para tanto, não será mister derrogar a ordem jurídica e social; bastará aplicar a lei, sem lhe agravar o rigor; se possível, praticar o conselho daquele extraordinário vulto que foi Bardot (referimo-nos, evidentemente, ao notável juiz francês Osvaldo Bardot, não à sua patrícia Brigitte): “(…) para manter o equilíbrio entre o forte e o fraco, o rico e o pobre, que não têm o mesmo peso, é preciso carregar um pouco a mão do lado mais fraco da balança”([2]).
E isto cabe perfeitamente nas atribuições do Juiz e está em suas mãos!
Do que sejam nossas prisões têm os nobres Colegas notícia completa, cabal e individuada. Desde Beccaria, que lhes chamou “horríveis mansões do desespero e da fome”([3]) e, antes dele, o egrégio Vieira, para quem o cárcere era “meia sepultura”([4]), há um consenso em derredor do termo prisão: é o pior lugar do mundo, antes do cemitério!
O emérito Des. Azevedo Franceschini, que foi o 2º Presidente de nosso querido Tacrim, afirmou num livreto: (…) “em relação à maioria dos presídios brasileiros, não se defere aos recolhidos nem aquilo que nos zoológicos aos animais se proporciona!”([5]). É aí que milhares de desgraçados cumprem suas penas!
A pena – que é o salário do crime e “traduz primacialmente um princípio humano por excelência, que é o da justa recompensa: cada um deve ter o que merece”([6]) – a pena constitui o núcleo objetivo da execução.
O cumprimento da pena, como era de razão, está subordinado ao critério da legalidade, de sorte que não pode extrapassar as raias da pretensão executória fixadas na sentença condenatória com trânsito em julgado; se não, como reza o art. 185 da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210, de 11.7.84), haverá excesso ou desvio de execução, com manifesta violação dos direitos e interesses do sentenciado.
Por amor da pouquidão de tempo, versaremos somente a hipótese de desvio de execução consubstanciada em manter-se o condenado em regime diverso daquele que lhe estabeleceu a sentença.
São de todos os dias, no Tribunal, com efeito, casos de réus que, pela via heroica do “habeas corpus”, se queixam de constrangimento ilegal, porque, embora lhes houvesse concedido a sentença o benefício do regime prisional semiaberto, permanecem no fechado sob o argumento da falta de vagas nos institutos penais-agrícolas.
Como resolver o empecilho?
Nisto, como em tudo o mais na vida, é necessário proceda o Magistrado com o arbítrio do varão prudente: comprovada a inexistência de vaga em estabelecimento penal adequado ao regime intermediário, pode o Juiz promover desde logo o sentenciado ao regime aberto, na modalidade de prisão domiciliar, que isto não ofende o zelo da Justiça, antes é o que a Jurisprudência preconiza.
O nº 8 da publicação do Tacrim – As Mais Recentes Decisões – traz venerando aresto do Colendo Superior Tribunal de Justiça, que faz muito ao nosso intento:
“Evidente a inadequação entre a lei de execução da pena e a realidade brasileira. A inexistência de Casa de Albergado não pode impor ao condenado regime mais rigoroso; caso contrário, afrontar-se-á o princípio da legalidade, com flagrante desrespeito do título executório. Na falta de local próprio, por analogia e precariamente, recomenda-se a prisão domiciliar, enquanto inexiste o local próprio” (STJ; REsp nº 120.595-DF; 6a. T; rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro; j. 10.6.1997; v.u.; DJU 8.9.1997, p. 42.626).
É sem dúvida que o Magistrado advertirá o beneficiário de que a Justiça, havendo-o transferido diretamente do regime recluso ao aberto, deu-lhe voto de mui particular confiança, a qual, uma vez quebrada, implicará seu imediato retorno às sombras do cárcere.
Importará muitíssimo ainda que o Magistrado lhe encareça a necessidade impreterível de dedicar-se ao trabalho, que não é apenas obrigação social, mas o melhor fator de promoção humana.
O preso aidético. De quantos males afligem de presente a Humanidade, nenhum disputa primazia à terrível Aids, que arrebata ao indivíduo aquilo que tem em maior preço: a vida. Mensageira da morte, sobre todos exerce implacável sua jurisdição. Poderosos e desvalidos, celebridades e obscuros, bons e maus: ninguém está seguro contra os efeitos de sua formidável tirania.
Uma casta de pessoas, contudo, existe que merece, por mui particulares circunstâncias, especial atenção dos espíritos bem formados, notadamente dos constituídos em dignidade. Compõe-se daqueles que, havendo decaído (ainda mal!) de seu estado de liberdade, foram por isso excluídos do convívio social. Esses (os encarcerados) inspiraram sempre alguns acentos de compaixão no peito dos homens livres, ou porque, carecedores do sumo bem da liberdade, a própria vida não lhes devera parecer digna dos cuidados que lhe reservamos, ou porque, postos em regime de segregação, não lhes esqueceriam jamais aquelas pungentes palavras com que o divino Dante acrescentou o suplício dos réprobos: “Não há dor, que maior seja, do que lembrar o tempo feliz nos dias da desgraça”.([7])
Se a pena de prisão, ao aviso dos sujeitos eminentes em ciências e letras, é já um mal, “porque inútil como método penal e como fator de recuperação”([8]), com maioria de razão o será quando associada a castigo corporal ainda mais aflitivo, como é a insidiosa enfermidade que subjuga os portadores do vírus HIV, quebrantando-lhes as energias e fazendo que, pelo comum, de humanos só conservem a figura.
Desses tais é forçoso que se amerceie a Justiça; mantê-los em calabouço, onde aguardem com resignação estoica o sopro frio da morte, não seria só rigor excessivo, que fora também desmarcada impiedade. A mesma legislação penitenciária é a que, nesses casos, ministra aos desgraçados os derradeiros lenitivos, com facultar-lhes o recolhimento à própria residência (cf. art. 117, nº II, da Lei de Execução Penal).
Portanto, uma vez que lhe tenha chegado à notícia que certo preso se ache em adiantado (não terminal somente) estágio da atroz moléstia, dê o Juiz, com a maior brevidade que couber no possível, as providências necessárias para removê-lo ao pé de seus familiares. É que, havendo-se declarado impotente a Medicina para conjurar o mal, fora de preceito que o Estado (que mais se conhece por ente sem entranhas) relaxasse o preso aos desvelos de sua família, a qual, unicamente, lhe poderia acudir com o remédio que serve de atenuar ao mesmo tempo os achaques do corpo e os da alma: o amor.
Tanto que diagnosticada a doença gravíssima, a direção do presídio, firme em parecer médico oficial, comunicá-la-ia espontaneamente ao Juiz de Direito corregedor. Este, com aviso e cautela, e sem fazer caso nem cabedal da pena imposta ao recluso, enviá-lo-ia aos seus, num tributo sublime à piedade, considerando apenas no grande alcance do benefício (acaso o último), cuja concessão não encontra as regras do bom-senso nem faz rosto a seu amplo poder discricionário.
Mais que aconselhável, seria verdadeira obra de misericórdia isso de o Magistrado, para melhor aferir as condições físicas do enfermo, proceder a uma inspeção ocular e, de seguida, num generoso impulso de consciência reta, sensível sempre às tragédias humanas, transferi-lo para o domicílio, onde familiares o pudessem assistir até o doloroso momento em que ao curto dia de sua vida sucedesse a noite eterna.
Tal solução não desacreditaria o Judiciário nem recomendaria mal o Juiz; bem ao revés, consoante parêmia venerável, mais crescerá em crédidto e respeitabilidade o Magistrado que ao rigor antepuser a equidade, a um tempo corpo e alento da Justiça!
Notas
(*) Alocução no I Encontro de Juízes da Execução Criminal; Escola Paulista da Magistratura (18.10.97).
([1]) As Misérias do Processo Penal, 1995, p. 21; trad. José Antonio Cardinalli.
([2]) Apud Jucid Peixoto do Amaral, Manual do Magistrado, 4a. ed., p. 42.
([3]) Dos Delitos e das Penas, VI.
([4]) Sermões, 1959, t. XV, p. 276.
([5]) Tóxicos, 1973, p. 67.
([6]) Nélson Hungria, Novas Questões Jurídico-Penais, p. 131.
([7]) A Divina Comédia, 1886; Inferno, canto V; trad. Joaquim Pinto de Campos.
([8]) Evandro Lins e Silva, A Defesa Tem a Palavra, 1980, p. 265. Outro tanto, in Revista Forense: “A repressão pela expiação no cárcere não traz cura. Amontoa desespero sobre desespero” (vol. 155, p. 414).
Carlos Biasotti