1. O Advogado e a Arte de Persuadir
É do ofício do advogado persuadir. Nenhuma vitória alcançará, primeiro que tenha sujeitado pela força da razão o ânimo contrário. Para vencer, importa-lhe antes convencer. E como são infinitas as formas de persuasão, deve conhecer, sobre todas, as que melhor o capacitem a argumentar, isto é, a exprimir verbalmente (e com proveito seu) o raciocínio lógico, última aspiração dos oradores. Muitos se afadigaram pelo realizar, porém unicamente de uns poucos se soube que fossem coroados de magnífico êxito. Dos mais, ainda que nesse propósito se lhes rompessem as ilhargas, só nos ficou a confissão de sua impotência diante de um fato incontroverso: apenas à força da evidência costumam ceder os ouvintes, não às comuns razões do orador, exceto se dotado, além de vastos cabedais de ciências, de uma como centelha divina, com que prodigiosamente penetre os arcanos da alma humana. Tão difícil coisa é triunfar em questões polêmicas!
Todavia, conforme disse um que tinha voz no capítulo e cujo voto é valioso nesta matéria, nosso espírito “rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos”([1]). Donde a opinião, de voga desembaraçada, de que a imagem, ordinariamente falando, escusa discursos. Uma foto vale por mil palavras, reza o anexim. Mais facilmente convencerá o argumento que se ajudar da contemplação do objeto sobre que assenta o debate.
Para mover o povo romano a perdoar a Aquílio, acusado de furtos, não se dedignou o advogado Marco Antônio rasgar-lhe as vestes, “descobrindo as cicatrizes das feridas, que em seu peito tinha recebido em defesa da pátria”([2]).
Igual artifício de persuasão garantiu a vida à cortesã grega Frineia. “Acusada de impiedade, foi defendida perante os heliastas por Hipérides. Ia ser condenada, quando o orador teve a ideia de lhe arrancar as finas vestes que a cobriam: a beleza da mulher desarmou os juízes”([3]).
Isto mesmo praticou, haverá alguns anos, arrojado bacharel paranaense. Abrasado no zelo da causa e jurando nos protestos de inocência de sua cliente, usou do argumento “ultima ratio”: com assombro dos colegas, e muito mais dos graves e austeros desembargadores que lhe acabavam de indeferir pedido de revisão criminal, despiu suas calças no recinto augusto do Tribunal de Justiça. A foto (nada pudibunda!) do escândalo estamparam-na todos os jornais do País. Ao ser preso em flagrante por desacato, respondeu com ironia suprarrealista o temerário causídico: “Se a Justiça é cega, que mal há em tirar a roupa diante dela?”([4]).
Mais que muitas, bem se percebe, são as maneiras de argumentar. Advirta, no entanto, o orador que, escolhendo-as com desacerto, poderão converter-se em argumento de miseranda inépcia.
2. Palavra: Veículo do Pensamento
I – “Dom mimoso de Deus”, na frase de um de nossos clássicos([5]), é a palavra o instrumento da ideia. Mas, consequência da imperfeição mesma do homem, nem sempre a pode representar fielmente. Ao invés, tanta é a dificuldade para traduzir-se a ideia na sua inteireza, que o insigne Carlos Maximiliano, sem alguma injúria à verdade, antes com grande respeito dela, afirmou que “a palavra é mau veículo do pensamento”([6]). Isto mesmo escreveu o talentoso Saint-Exupéry, em sua obra-prima imortal: “A linguagem é uma fonte de mal-entendidos”([7]).
Não maravilha, pois, que, expressão literal de uma ideia, a palavra seja de igual passo causa e ocasião de incidentes, e estes muita vez graves.
II – Temos entre mãos exemplo que faz ao caso. Certo advogado, narra uma folha carioca([8]), empregara em petição a palavra quadrilheiro em referência a um oficial de justiça, o que este não levou em paciência, comunicando-o logo a seu juiz (o Dr. Paulo César Salomão), o qual, tomando o vocábulo à má parte, representou à Ordem dos Advogados do Brasil contra o Dr. Salomão Velmovitsky (assim havia nome o nobre causídico). Aquela entidade, órgão a um tempo de disciplina e defesa dos que pertencem à ínclita profissão, rejeitou o libelo proposto pelo juiz, preferindo acolher os argumentos do advogado, reputados da primeira intuição: quadrilheiro não significava só o indivíduo que fazia parte de quadrilha, era também sinônimo de oficial de justiça. O que tudo bem visto e examinado, foi força achar razão ao perspicaz bacharel (íamos quase a dizer nosso herói). Em verdade, registraram a palavra quadrilheiro, na última acepção, os mais autorizados lexicógrafos da língua. Depara-no-lo o bissecular Rafael Bluteau, com a seguinte definição: “Quadrilheiro, oficial humilde de justiça”([9]). Pelo mesmo teor o velho Morais([10]) e o Constâncio([11]). As próprias Ordenações Filipinas, “de autoridade clássica entre os clássicos”, na opinião de Rui([12]), reservaram aos quadrilheiros não menos de um título([13]). Portanto, da mesma sorte que meirinho, beleguim e aguazil, a palavra quadrilheiro tem carta de vernaculidade portuguesa entre os sinônimos de oficial de justiça.
III – No intuito de justificar a exação de sua linguagem, o conspícuo advogado (jamais rábula) louvou-se no argumento de autoridade, “in verbis”: “Descobri, num artigo do jurista Eliézer Rosa, que quadrilheiro era sinônimo de oficial de justiça”. E, tendo-se abordoado à lição de autor de tanto crédito, de nenhuma outra havia ele mister, em firmeza do acerto do tratamento dispensado ao oficial de diligências.
Falara contudo verdade, quando disse ter reproduzido o magistério de Eliézer Rosa, não só mestre na ciência do Direito, senão cultor exímio das boas letras? Estamos que sim.
Temos, com efeito, diante dos olhos cópia do artigo que, debaixo do título Estudinhos de Processo, aquele eminente magistrado tirou à luz em jornal do Rio de Janeiro. Dele transcrevemos este relanço: “Em nosso vernáculo, são sinônimos dicionarizados de oficial de justiça os seguintes: oficial de diligências, beleguim, esbirro, alcaide, aguazil, sargente, ovençal, meirinho, quadrilheiro”([14]). De seguida, ajuntou esta judiciosa advertência: “Desses termos, muitos se tornaram obsoletos, caíram em desuso muito justamente, porque não significam nada em nossos dias, sobre serem muito pejorativos, injustamente pejorativos” (ibidem).
O ponto, logo se vê, está em usar com discrição aqueles vocábulos, dos quais uns caíram em mortório, outros porém têm curso livre e são vernáculos de lei. Quadrilheiro, posto que de fidalga genitura, termo é que hoje se não deve empregar por sinônimo de oficial de justiça, à conta de seu cunho notoriamente injurioso.
Matéria é esta, pois, digna de especial cautela, não se converta em pedra de escândalo, de que mal puderam eximir-se dois altos sujeitos, que traziam por timbre de sua muita ciência e raro aviso o nome de Salomão, “o mais sábio de todos os que nasceram”([15]).
Notas
([1]) Vieira, Sermões, 1959, t. I, p. 15.
([2]) Quintiliano, Instituições Oratórias, 1788, t. I, p. 5; trad. Jerônimo Soares Barbosa.
([3]) Cf. Lello Universal, vol. III, p. 655.
([4]) Cf. O Estado de S. Paulo, 20.8.93.
([5]) Silvério Gomes Pimenta, in Discursos Acadêmicos, 1936, p. 65.
([6]) Cf. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 1933, p. 131.
([7]) O Pequeno Príncipe, 35a. ed., p. 71; trad. D. Marcos Barbosa.
([8]) O Dia, 17.8.95.
([9]) Vocabulário, 1720, t. VII, p. 7.
([10]) Dicionário da Língua Portuguesa, 1813, t. II, p. 531.
([11]) Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 1877, p. 816.
([12]) Cf. Réplica, nº 2.
([13]) O LXXIII do liv. I, que dispunha: “Em todas as cidades, vilas, lugares e seus termos, haverá quadrilheiros, para que melhor se prendam os malfeitores”.
([14]) Cf. Jornal do Comércio, 5.6.78.
([15]) Vieira, Sermões, 1959, t. IX, p. 256.
Carlos Biasotti