1. (“Zero à esquerda”?!)
No universo das realidades, infinito é o número de coisas que afimam a vida e lhe abrandam os rigores e demasias, pelo que se consideram úteis ou benéficas; outras, aos revés, trazem em si mesmas uma como tacha de deformidade que as desmerece e torna dispensáveis (e talvez repugnantes, por afrontosas do siso comum).
Quando queremos dizer que algo é imprestável (e, pois, despiciendo), costumamos juntar-lhe, para encarecer e avivar seus atributos e notas particulares, certos termos de comparação, deste feitio: inútil como verruga, fósforo apagado, trem fora da linha, barata (dentro ou fora de casa), sino sem badalo, ferramenta cega, lápis sem ponta, etc.([1])
Nesse rol de coisas reputadas inúteis averbou o vulgo, desde tempos imemoriais, a locução “zero à esquerda”, que Antenor Nascentes recolheu numa de suas obras: “Ser um zero à esquerda. Nada valer, não ter a menor importância, a menor consideração”([2]).
Onde, porém, o “zero à esquerda” (ou cifra da mediocridade, segundo os irreverentes) irradia sua estéril presença é no enunciado da numeração cardinal, notadamente na representação gráfica dos dígitos (ou números inteiros de 1 a 10), assim (“horribile dictu”!): 01, 02, 03…, etc.
Em verdade, é ordinário ver-se em todo lugar (placas em vias públicas, repartições administrativas, agências bancárias, locais de trabalho, áreas de lazer, peças de vestuário, papéis impressos, petições forenses, calendários, etc.) o tal símbolo excrescente:
Feriu o ponto, de forma cabal e irrespondível, o Comendador DeRose, num interessante opúsculo em que trata de certas mazelas da língua portuguesa. Parece bem reproduzi-lo aqui:
“Está grassando um cacoete do zero à esquerda. Na data, assim como em qualquer outro número, lembre-se de que zero à esquerda não tem valor. Portanto, nada de escrever 01, 02, 03, etc. Isso é cafona.
Se você escrever dia 03, vou querer escrever que no dia 018 de fevereiro de 02013 fiz 069 anos.
A desculpa esfarrapada de que o zero à esquerda é para evitar confusão não convence ninguém. Uma placa com a informação portão 03 é claramente mais confusa do que portão 3.
Tal praxe é incompreensível, pois, inclusive, sai mais caro mandar fazer 20 ou 30 placas com um algarismo a mais, um desnecessário zero, antes do número que se quer indicar.
E todas as vezes em que alguém colocar o zero à esquerda, deveríamos ler em voz alta: Dia zero três, na sala zero quatro, às zero duas horas, só para fazer gracinha!” (Falando Bonito, 2013, p. 31; Editora Gráfica Vida & Consciência; São Paulo).
À vista de tal lição — que se firma em argumentos de muita força e alcance, capazes de render os mais refratários entendimentos —, persistir na prática acintosa de grafar “zero à esquerda” seria mais do que teimosia de espírito, porque fora também chapada estultícia (vênia!).
2. (“Boa noite a todos e a todas”?!)
O poder atrativo da novidade e certa perversão do gosto, eis os responsáveis por atentarem muitas pessoas (algumas até da primeira esfera) contra o pudor da gramática. Exemplo frisante é o do orador que, ao proferir sua arenga, rompe cerimonioso: “Boa noite a todos e a todas!”. A flexão feminina “todas” mostra-se aí, evidentemente, por demais. Com dizer todos, por sua feição de coletivo universal, já se entende a totalidade dos ouvintes, sendo de todo o ponto supérfluo aditar ao pronome indefinido a forma genérica feminina.
Nem suponha algum espírito de contradição que a falta do termo específico importava desdouro ou menoscabo ao elemento feminino. É especioso o argumento!
O próprio vocábulo “homem”, de per si só (e em senso lato), máxime no plural, já presume o sexo oposto, visto encerra a ideia de gênero humano.
Numa assembleia, quando o conferencista apregoa: “Adianto aos senhores que serei breve”, ninguém duvida que exultarão homens e mulheres (se as houver no recinto). Isto é dos livros!
Advertiu, com efeito, o imperador Justiniano em seu Digesto([3]): É fora de dúvida que o termo homem compreende assim o varão como a mulher. Donde o haver proclamado a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, em seu art. 1º: Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Portanto, essa “página mais brilhante do pensamento jurídico da Humanidade”([4]) é o paládio ou garantia suprema, simultaneamente, do homem e da mulher!
Muita vez, o exagerado empenho do orador de dirigir-se a cada um dos ouvintes — dando-lhes “todos” e “todas” — sói interpretar-se menos por lance de galantaria e urbanidade do que por ingênuo e desgracioso bordão retórico. Evitá-lo, pois!
3. (“A poeta” Cecília Meireles?!)
Conta-se do diabo que, tanto se extremou em enfeitar a cara do filho, que acabou por vazar-lhe um olho.
Estão nesse caso os que, para armar ao efeito, não trepidam em remeter inconsideradamente o disco além da meta, esquecidos de que o ótimo é inimigo do bom!
Descendo ao particular: em beleza, eufonia e acepção, poucas palavras há, na língua portuguesa, que possam apostar primazia com poetisa.
Não é este, porém, o vocábulo que, ao presente — ainda mal! —, empregam alguns (ia a escrever excêntricos) — para designar, por escrito ou verbalmente, o feminino de poeta. Quando acerta de aludirem a Cecília Meireles, justapõem-lhe, muito de estudo, a forma de tratamento “a poeta” (que não a poetisa, conforme os cânones gramaticais).
Poetisa (falando-se de mulher) é a forma que praticaram sempre os mais acreditados padrões da boa linguagem:
a) “…Safo, poetisa grega (VII-VI séc. a.C.” (Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, 11a. ed.; v. sáfico; Editora Civilização Brasileira S.A.; Rio de Janeiro).
b) À filha do poeta português Tomás Ribeiro (a qual também o era das musas) chamara-lhe Cândido de Figueiredo, com sua reconhecida competência de lexicógrafo e escritor de nota, “(…) Branca de Gonta, a poetisa das Matinas” (Os Meus Serões, 1928, p. 40; Livraria Clássica Editora; Lisboa).
c) À derradeira, como quem tem voz no capítulo, Paulo Bomfim, O Príncipe dos Poetas Brasileiros, além de prosador elegante e vernáculo: “Certa vez me disse (Ruy Apocalypse) que a única pessoa que poderia fazê-lo feliz era a poetisa Renata Pallottini” (O Caminheiro, 2001, p. 124; Editora Green Forest do Brasil; São Paulo).
Na doutrina gramatical não se conhece discrepância: o feminino de poeta é poetisa (cf. Eduardo Carlos Pereira, Gramática Expositiva, 91a. ed., p. 88; Ernesto Carneiro Ribeiro, Gramática Portuguesa, 1932, p. 70; Júlio Ribeiro, Gramática Portuguesa, 1900, p. 87; Cândido de Oliveira, Dicionário Gramatical, 1967, p. 525; Francisco da Silveira Bueno, Gramática Normativa da Língua Portuguesa, 1968, p. 166; Napoleão Mendes de Almeida, Gramática Metódica da Língua Portuguesa, 1980, p. 104, etc.
A Academia Brasileira de Letras, que, por disposição de seus Estatutos, “tem por fim a cultura da língua e da literatura nacional” (art. 1º), assentou que o feminino de poeta é poetisa([5]).
José Maria da Costa, jurista de prol e cultor exímio de nosso idioma, exarou: “(…) uma forma própria para o masculino (poeta) e outra para o feminino (poetisa), não se admitindo seu emprego como se fosse substantivo comum de dois gêneros” (Manual de Redação Jurídica, 6a. ed., p. 570; Migalhas; Ribeirão Preto SP).
O que fica dito autoriza esta forçosa conclusão: atribuir à palavra poeta o caráter — que não tem — de substantivo comum de dois gêneros e dizer “a poeta” (em vez de poetisa) seria contravir a regra elementar de gramática, sobre sancionar um desconchavo, que os sujeitos avisados geralmente aborrecem e proscrevem.
Em suma: honremos, quanto em nós couber, a memória de Cecília Meireles([6]), Francisca Júlia e Colombina, poetisas notáveis pelo estro e primor de estilo!
Notas
([1]) Ao cadoz das coisas inúteis também Agrippino Grieco deitou sua cota-parte: “Inútil como um tenor resfriado” (Gralhas & Pavões, 1988, p. 106; Editora Record; Rio de Janeiro).
([2]) Tesouro da Fraseologia Brasileira, 1945, p. 447; Livraria Editora Freitas Bastos; Rio de Janeiro.
([3]) “Hominis appellatione tam foeminam quam masculum contineri nemo dubitat” (Dig. 58,16, 152).
([4]) Jayme de Altavila, Origem dos Direitos dos Povos, 4a. ed., p. 185; Edições Melhoramentos; São Paulo.
([5]) Cf. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, 5a. ed., p. 662.
([6]) “Falecida em 1965, viveu sempre no Rio de Janeiro. Professora primária, soube elevar-se aos mais altos píncaros da poesia lírica, tornando-se a primeira poetisa contemporânea” (Francisco da Silveira Bueno, História da Literatura Luso-Brasileira, 6a. ed., p. 195; Edição Saraiva; São Paulo).
Carlos Biasotti