Crise no Tribunal do Júri

24/06/2020 às 17:10
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I –       O Fato. Soou como um tiro de canhão no silêncio da noite o pregão de rebate que, pelos idos de março de 1993, deram alguns promotores de justiça do 1º Tribunal do Júri da Capital, de que as sessões daquela corte estariam eivadas de nulidade absoluta por inobservância de regra processual impostergável: a que impõe seja feita mediante cautelas especiais a convocação do júri.

            Esse ato, de tanta solenidade, relevância e graveza, estaria sendo praticado, a jurarmos nas palavras daqueles representantes do Ministério Público, à luz de critério outro que o exigido por lei. Indisputável, assim (proclamaram eles), que o tribunal popular infringiu em seu espírito e forma o preceito do art. 428 do Código de Processo Penal (de 1941), que reza: “O sorteio (dos vinte e um jurados que tiverem de servir na sessão) far-se-á a portas abertas, e um menor de dezoito anos tirará da urna geral as cédulas com os nomes dos jurados, as quais serão recolhidas a outra urna, ficando a chave respectiva em poder do juiz, o que tudo será reduzido a termo pelo escrivão, em livro a esse fim destinado, com especificação dos vinte e um sorteados”.

            Tal notícia não veio a público a descoberto de prova ou sob a cor de artifício retórico; antes se autorizou com elementos e testemunhos superiores a toda a exceção. Em suma: a pormos fé inteira na séria increpação do órgão ministerial, o 1º Tribunal do Júri, ao escolher por critério insólito os jurados que nele deviam servir, obrou com enorme afronta dos ditames da lei, pois até réu de homicídio doloso consta que figurara em seu cadastro geral onomástico.

II –      O Júri. As instituições humanas, ainda as mais nobres, têm lá seus detratores, que é coisa impossível concordarem todos os pareceres, conforme aquilo do excelso Vieira: “Até entre os anjos pode haver variedade de opiniões, sem menoscabo de sua sabedoria, nem de sua santidade”([1]).

            Assim quanto ao júri: alguns houve que o exaltaram aos cornos da lua([2]); estigmatizaram-no outros com o ferrete em brasa, não o poupando a aspérrimas diatribes e invectivas([3]). Mas, quem lhe definiu melhor a essência e fez subir de ponto sua utilidade foi decerto Rui, por estas palavras verdadeiramente dignas de se entregarem à memória: “Sentido, senhores! Quando o tribunal popular cair, é a parede mestra da Justiça que ruirá. Pela brecha hiante varará o tropel desatinado e os mais altos tribunais vacilarão no trono da sua superioridade”([4]).

            Todavia, muito a prazer de seus apologistas e com bem de pesar de seus críticos inexoráveis, tem o júri, em face do direito brasileiro, a consagração de garantia constitucional (art. 5º, nº XXXVIII). Os que o não quiserem aplaudir hão pois, ao menos por imperativo legal, de catar-lhe esclarecido e pronto respeito.

III –     As Nulidades. É doutrina jurídica triunfante, que não vale (sendo, portanto, nulo) o ato que deixa de revestir a forma determinada em lei([5]). Originando-se de infração de princípios capitais do sistema jurídico, a nulidade será “pleno jure”. Por seu caráter de ordem pública, pode alegá-la qualquer interessado, “e se o interessado guarda silêncio, se o Ministério não intervém ou se mostra incurioso no cumprimento de seus deveres, nem assim a nulidade se cobre”([6]).

            No âmbito da Justiça Penal, o maior interessado em arguir a nulidade do ato praticado em detrimento da forma prescrita em lei será aquele que ocupar o polo passivo da relação processual; aquele que, potencialmente, haja de suportar o gravame da condenação: o réu. Sua voz, por isso, com preferência a todas as mais, será a que vai emitir os veementes e firmes protestos contra a preterição de formalidades processuais relevantes.

            Não cuide alguém deva o interessado, em obséquio à teoria geral dos atos irregulares, fazer prova de seu prejuízo, primeiro que argua a nulidade. Fora demasia exigi-lo. Por simples presunção, com efeito, prova-se o prejuízo do réu julgado por juiz incompetente, a quem se equipara o jurado escolhido sem atenção ao requisito da “notória idoneidade”([7]).

IV –     Os Jurados. Ponto que não sofre disputa é esse do alto conceito que deve exornar os jurados, entre os quais não queria Firmino Whitacker senão “homens de moral pura e consciência reta”([8]). Faz-se mister concorram neles cabedais de ciências e virtudes que francamente os recomendem à terrível e bela função de julgar, a qual, por sua desmedida grandeza, parece havê-la o homem usurpado à própria divindade([9]). Estrito rigor, por conseguinte, deve presidir à seleção do corpo de jurados, pedra angular da veneranda instituição do Júri.

            Os que externaram profunda irresignação à vista dos episódios ocorridos na esfera do 1º Tribunal do Júri, estamos que não o fizeram com o intuito de “desmoralizar a Justiça” (como parecera a um de nossos egrégios criminalistas) ou por “frívolo curialismo”, porém pela muita importância que lhes mereceu o problema da irregularidade dos atos judiciais.

            Foram, nesse particular, fiduciários da doutrina do saudoso professor José Frederico Marques: “Muita prudência, portanto, deve guiar o juiz quando tenha de encarar o problema das nulidades no processo penal. Postergar, de maneira categórica, a relevância das formas processuais, para atender tão só ao aspecto teleológico do ato, pode redundar em violação aberta do direito de defesa. É que a observância das formas, na justiça penal, constitui, muitas vezes, o instrumento de que a lei se vale para garantir o jus libertatis contra as coações indevidas e sem justa causa”([10]).

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            Contrapondo-se à prática perniciosa que se instalara no seio do Judiciário, os promotores do 1º Tribunal do Júri souberam desempenhar o principalíssimo de seus deveres: zelar pelo fiel cumprimento da lei.

            Tenhamo-los, pois, em boa conta!

Notas


([1])        Sermões, 1959, t. IV, p. 216.

([2])        Na legião dos defensores do júri alistaram-se autores de muito nome, que lhe encareceram as excelências com frases lapidares: “O júri é a melhor forma de justiça que eu conheço” (Magarinos Torres, apud Evandro Lins e Silva, A Defesa Tem a Palavra, 1980, p. 237); “Se um dia tiver a infelicidade de cometer um crime, quero ser julgado pelo júri popular, porque é o único tribunal que pode fazer-me verdadeira justiça” (Pedro Lessa, apud Vitorino Prata Castelo Branco, O Advogado no Tribunal do Júri, 1989, p. 25); “Júri, santuário da justiça popular” (José Eduardo Fonseca, Justiça Criminal, 1925, p. 70).

([3])        Do júri, entre nós, foi quiçá Nélson Hungria seu mais iníquo censor, ao averbá-lo não menos que de “osso de megatério”: “…o famigerado Tribunal, osso de megatério que persiste em ligar repressão penal e regime democrático, redundou, pela incompetência e frouxidão, em fator indireto de criminalidade” (apud Pedro Paulo Filho, Grandes Advogados, Grandes Julgamentos, 1989, p. 20).

([4])        Obras Completas, vol. XXV, t. III, p. 86.

([5])        Art. 130 do Cód. Civil.

([6])        Orosimbo Nonato, Da Coação como Defeito do Ato Jurídico, 1957, p. 226.

([7])        Art. 436 do Cód. Proc. Penal.

([8])        Júri, 5a. ed., p. 18.

([9])        “Sublime e tremenda missão de julgar, que no dizer de Ellero foi usurpada pelo homem a Deus” (Carlos de Araújo Lima, Os Grandes Processos do Júri, 1957, vol. III, p. 175).

([10])      Estudos de Direito Processual Penal, 1959, p. 259.

Carlos Biasotti

Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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