1- Introdução
De tempos em tempos, a sociedade evoluiu significativamente, desde pequenas tribos na pré-história, com o surgimento do homem, até a era da sociedade da informação no século XXI d.C.
Em toda a história, a autonomia da vontade, em determinados momentos foi deixada de lado, por limitações de costumes e ideologias das sociedades na época, mas, com o decorrer dos séculos, demonstrou-se como a mais valiosa ferramenta psicomotora (movimentos corporais governados pela mente) [1].
Dessa forma, podemos determinar à autonomia da vontade como um poder de se autogovernar, autodeterminar, uma pessoa que estabelece as suas próprias leis, com “o poder de estipular livremente, como melhor lhes convier...” [2], ou conforme os pensamentos de Pitágoras, “não é livre quem não obteve domínio sobre si”, logo, o ser humano necessita de autonomia para tomar as próprias decisões. Além disso, encontra-se como um dos princípios da bioética e do biodireito.
De acordo com o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1945), são direitos fundamentais do ser humano, a “dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida e de uma liberdade mais ampla”. Deste modo, todas às pessoas têm à autonomia, de maneira análoga, no que tange ao poder de decidir ou tomar alguma decisão relacionada à sua existência, de uma forma abrangente.
Porém, quando lidamos sobre os tratamentos compulsórios, devemos, em primeiro lugar, entender quais são os tipos de internações psiquiátricas. Assim, segundo a Lei 10.216/2001, em seu artigo 6° e seguintes, podemos observar:
I) internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário, na qual, segundo especialistas é uma forma de tratamento mais efetivo para o combate aos usuários de drogas;
II) internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro. No contexto da psiquiatria, “a autonomia do paciente pode ser relativizada, não apenas em situações iminentes de morte” [3], assim, segundo a Resolução do CFM 2.057/2013, em seu artigo 31, o paciente só poderá ser internado involuntariamente, em função de sua doença, se apresentar as seguintes condições: a) incapacidade grave de autocuidados; b) risco de vida ou prejuízos graves à saúde; c) risco de autoagressão ou de heteroagressão (consumação de atos destrutivos voltados para o mundo exterior); d) risco de prejuízo moral ou patrimonial; e f) risco de agressão à ordem pública. Deve-se, por fim, encaminhar um comunicado do fato ao Ministério Público Estadual em até 72 horas, nos termos da Portaria n° 2.391/GM/2002, artigo 7.
III) internação compulsória: aquela determinada pela justiça. Em geral, não está previsto em lei o término dessa internação, porém, cessa, quando o juiz competente acata o parecer técnico de um médico e emite um mandado para que ocorra a desinternação.
2- Tratamento Compulsório de Dependentes Químicos - Caso Cracolândia
Entre as diversas formas de dependência química, trataremos especificadamente, sobre o caso da Cracolândia, em São Paulo-SP. Assim, dentre as diversas operações realizadas pelos Policiais na Cracolândia, a última, ocorrida em 21/05/2017, com a coordenação da Prefeitura e o Estado de São Paulo, colocou um “fim” à inercia do poder público com relação ao abandono da região metropolitana da capital, com a desocupação dos dependentes químicos.
A grande questão acerca dessas operações, diz a respeito sobre o pedido feito pela prefeitura para poder realizar internações compulsórias aos usuários de drogas presentes no local, na qual, em um primeiro momento, foi deferido pelo Juiz Emílio Migliano Neto, da 7ª Vara da Fazenda Pública, porém, com recursos realizados pelo Ministério Público e a Defensória Pública, foi suspenso pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
Segundo os entendimentos de Eudes Quintino de Oliveira Júnior, “a questão, realmente, é tormentosa. Apesar de coexistirem várias figuras delituosas, como é o caso de comércio de drogas, furtos, roubos, contra a liberdade sexual, apreensões de arma de pesados calibres e tantas outras, a questão fulcral é ligada diretamente à proteção da saúde humana, com a prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana, conforme apregoado constitucionalmente” [4].
Conforme apresentado pela mídia [5], aproximadamente 80% dos moradores de São Paulo apoiam a internação à força de usuários de crack. Nesta mesma pesquisa, a grande maioria dos residentes em torno do local, concordaram em torno de 95%, que a família do usuário pode decidir interna-lo a força caso não houver qualquer capacidade de tomar as suas decisões por conta própria e 88% aprovam a internação, quando a família do usuário não é localizada.
A internação à força dos dependentes químicos divide os especialistas, conforme uma matéria realizada pela BBC Brasil [6]. Entre os pontos contra a internação compulsória, segundo o Psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, o tratamento de usuários de drogas só é mais efetivo quando for de maneira voluntária, envolvendo visitas regulares na clínica e centros especializados. Ressalta, ainda, que é relativamente fácil alguém ficar longe das drogas quando está internado, isolado, pois, a grande dificuldade na realidade é de se manter longe das substâncias toxicas quando há o retorno ao convívio familiar ou de emprego. Diz, ainda, que a grande maioria tem a primeira recaída no primeiro mês depois da internação. Destaca, por fim, que a condição de miséria da população de rua é decorrência de uma omissão do Estado, da falta de acesso à moradia, à saúde e à educação.
De acordo com os pontos favoráveis a internação compulsória, segundo o Psiquiatra Ronaldo Laranjeira, que na Suécia, 30% do tratamento psiquiátrico é coercitivo e que nos Estados Unidos têm pesquisas que demonstram uma grande eficiência com esse método. Expôs, ainda, que a maioria das pessoas que chegam contra a sua vontade nas clínicas, mas acabam aderindo voluntariamente, uma vez que passa a crise inicial, a pessoa começa a ter condições de analisar a situação e acaba aderindo o tratamento. Demonstrou que cerca de 100 leitos chefiada por ele no interior do Estado, 50% são ocupados por pessoas internadas por ordem judicial e mais de 90% delas em uma semana se tornam voluntárias.
Segundo o Dr. Laranjeira, quando uma pessoa é internada compulsoriamente por estar em um estado emergencial de dependência, seu período médio de permanência na clínica não deve ultrapassar dois meses. Uma vez estabilizado, o paciente deve ser submetido a uma fase de tratamento ambulatorial – frequentando uma clínica especializada uma ou duas vezes por semana, para receber acompanhamento médico, psicológico e de assistentes sociais. Dentre as maiores preocupações, porém, o Governo do Estado de São Paulo já deu um passo significativo, com a abertura de leitos (30 atualmente) para internação de mulheres grávidas usuárias de crack. Na opinião do médico, nesses casos a internação involuntária é muito necessária, pois não envolve apenas a saúde da mãe, mas também a do bebê.
Nos termos da lei 10.216/2001, no artigo 2°, parágrafo único, são direitos da pessoa portadora de transtorno mental: I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade; III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração; IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas; V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária; VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis; VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento; VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis; IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental. Desse modo, existe um rol de direitos disponibilizados pelo legislador aos pacientes portadores de transtorno mental, a fim de garantir melhores informações, tratamentos e reinserção na sua família, no trabalho e na comunidade.
Mas, quem tem a responsabilidade quando não tem a localização da família do dependente químico? Podemos dizer que é dever do Estado ou do Médico? Podemos responder em um primeiro momento, que os dois.
Segundo alguns deveres do Estado, no artigo 3° da Constituição Federal, constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Além do mais, constituem os direitos sociais, nos termos do artigo 6° da CF/88, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
E conforme o artigo 4°, do Código Civil de 2002, são incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; Portanto, a função do Estado, na verdade, além de proporcionar o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, conforme elencados no artigo 3°, da Lei 10.216/2001 é de disponibilizar mais vagas e leitos nos hospitais para o tratamento de dependentes químicos.
Por outro lado, na perspectiva do médico, “se o paciente não está em condições de se manifestar, por motivos de urgência ou inconsciência, e se não há quem por ele possa decidir, o médico está obrigado tanto de iniciar o tratamento quanto de continuar com este” [7], porém, existe uma grande dificuldade em poder avaliar o estado de consciência do paciente.
De modo geral, existem limites do médico, segundo o Código de Ética do Médico (Resolução CFM n° 1.246/88) na realização de qualquer procedimento ao paciente. Conforme o artigo 46 é vedado ao médico efetuar algum procedimento sem o esclarecimento e o consentimento prévio do paciente ou de seu responsável legal, salvo iminente perigo de vida.
Também é vedada a limitação do direito do paciente de decidir livremente sobre a sua pessoa ou o seu bem-estar, nos termos do artigo 48. Nestes moldes, caso o médico desrespeite o interesse e a integridade do paciente, conforme o artigo 53, “pode caracterizar cárcere privado, constrangimento ilegal e até lesões corporais, conforme o caso” [8]. Ocorrendo quaisquer atos lesivos à personalidade e à saúde física ou psíquica dos pacientes a ele confiados, o médico está obrigado a denunciar o fato à autoridade competente e ao CRM (Conselho Regional de Medicina), segundo o parágrafo único do artigo 53 do Código de Ética do Médico.
No artigo 5°, caput, da Constituição Federal, não é estabelecido os deveres da vida, portanto, “é assegurado o direito (não o dever) à vida” [9], sendo garantido, ainda, ao enfermo químico, no artigo 5°, XXXV, CF/88, ao direito do paciente em recorrer ao Poder Judiciário para deter qualquer intervenção ilícita em seu corpo em oposição a sua vontade.
Além disso, no artigo 5°, II, da CF/88, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei e conforme o artigo 15, do Código Civil, ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica. É nesse contexto, que observamos como a autonomia da vontade de um ser humano pode preservar o seu livre arbítrio na sociedade.
Portanto, como uma forma reflexão, à autonomia da vontade e a internação compulsória, segundo os entendimentos do Jornalista Sérgio Henrique da Silva Pereira, no seguinte sentido, “se existe os objetivos da CF de 1988, deduz que a autonomia da vontade não pode ser egoísta ao próximo que necessita de ajuda. O que não se pode permitir é o abandono de seres humanos que, por vários motivos (pessoais, sociais e políticos) perderam suas autonomias e vivem como fantoches das drogas”[10].
Portanto, podemos falar que a humanização da saúde significa a mesma coisa de relativizar os direitos do paciente? Ou que a lei impõe certos direitos a liberdade médica para atuar em prol da vida? Todos os debates sempre continuaram a existir e nós, como praticantes do direito, devemos amplicar as discussões a fim de tutelar os direitos dos indivíduos.
3 - Conclusão
Percebemos que é indiscutível o desempenho e funcionamento da autonomia da vontade dos pacientes e indivíduos, diante da internação compulsória, sendo um dos impasses mais sólidos dos princípios da Bioética e do Código Civil de 2002.
Por outro lado, em detrimento do exercício regular do direito, artigo 23, III, do Código Penal e a depender do caso a caso, exclui-se a conduta típica do médico que está realizando um procedimento legítimo e necessário para salvar uma vida, principalmente, quando o paciente não reúne condições de discernimento a respeito da sua saúde, autogoverno e autodeterminação.
Porém, podemos enxergar nos tempos atuais, que a humanização e os valores de cada indiviuo com o próximo (empatia) vem decaindo com o passar dos anos, seja por decorrência das novas tecnologias da Sociedade da Informação ou, seja por conta das mudanças de costumes da sociedade.
Por fim, não podemos deixar de resgatar os nossos valores morais e pessoais de dentro do nosso ser, buscando respeitar sempre que possível o próximo, solidarizar a quem necessite de ajuda, tratar com equidade os desiguais e educar, para que possamos criar um futuro mais humanizado, não apenas na área da saúde, mas, sim, em toda sociedade.
4 - Bibliografia
Dilemas acerca da vida humana: interfaces entre a bioética e do biodireito, São Paulo, Editora Atheneu, 2015 – (Série hospital do Coração-Hcor);
Biodireito: Ciência da vida, os novos desafios/Organizadora Maria Celeste Cordeiro Leite Santos, Editora Revista dos Tribunais, vários autores, 200
[1] Analogia realizada para explicar autonomia da vontade, portanto, se você governa a sua mente, você governa a sua autonomia.
[2] DINIZ, Maria Helena, (2011, p.40-1)
[3] Dilemas acerca da vida humana: interfaces entre a bioética e do biodireito, São Paulo, Editora Atheneu, 2015 – (Série hospital do Coração-Hcor), vários editores, p.97.
[4] Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI260242,91041-Autonomia+da+vontade+e+a+internacao+compulsoria> Acesso em: 22/09/2018.
[5] Disponível em: <https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/80-dos-moradores-de-sp-apoiam-internacao-a-forca-de-usuarios-de-crack-diz-pesquisa-datafolha.ghtml> Acesso em: 22/09/2018.
[6] Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/01/130119_crack_internacao_lk.shtml> Acesso em: 24/09/2018.
[7] Biodireito: Ciência da vida, os novos desafios/Organizadora Maria Celeste Cordeiro Leite Santos, Editora Revista dos Tribunais, vários autores, 2001, p.294.
[8] Idem, p.294.
[9] Idem, p.298.
[10] Disponível em: <https://sergiohenriquepereira.jusbrasil.com.br/artigos/463147960/cracolandia-autonomia-da-vontade-internacao-compulsoria-e-direitos-humanos?ref=serp> Acesso em: 23/09/2018.