Há, no Brasil, hemisférios políticos reciprocamente incoerentes com os ideais que declaradamente se apropriam, havendo a presença de uma parcela que se intitula “centro”, com clara pretensão em ostentar equilíbrio, extraindo-se dela o oposto: atrapalhada, tendenciosa e sem personalidade representativa. Tendo em vista a inexistência de qualquer pretensão de análise do quadro político brasileiro, neste momento, é o que cabe pigmentar sobre o tema.
“A vida é um filme”, recorrente e natural reflexão popular, é uma analogia que se inspira nas lembranças significativas, registradas em nossas memórias e naquelas que conosco contracenaram, testemunharam, ou de alguma forma foram destinatários da narrativa das “cenas” do filme de nossas vidas. Se isto for verdade, seria possível “pausar” a reprodução deste “filme”, ou melhor dizendo, interromper a sua gravação (registro), de modo a suspender o deslinde de seu roteiro, e evitar, assim, trágico erro de gravação ou a perda de cenas importantes para uma adequada interpretação por quem assiste àquela “obra cinematográfica”, mas que precisa interromper a sessão e deslocar-se ao toalete – por exemplo?
A situação descrita seria uma mimese (imitação representativa) de nossas vidas interrompidas, guardadas as proporções de cada realidade individual, em razão da pandemia causada pela COVID-19?
Independentemente de uma avaliação valorativa dos impactos sociais individualmente causados (positivos ou negativos), não há como negar a sua incidência e verossimilhança entre a mimese construída nestas linhas introdutórias e o contexto atual em que vivemos. Concorda?
Admitindo-se a premissa da metáfora trazida, as consequências impostas àqueles que se ausentaram, sem direito a “pause”, seriam fácil objeto de ilustração: a falta de algumas cenas poderão, certamente, interferir em uma total compreensão da trama, seja não entendendo o final do filme, abrindo-se margens a interpretações de uma falseada realidade - incompleta. Seria o mesmo que “pular” páginas ou capítulos de um livro que narra uma história, trama ou conto.
Em qualquer uma das hipóteses levantadas, só haveria uma solução satisfatória para o problema criado: continuar (retomar), em iguais condições (antes do “pause”), a partir da última cena “assistida” ou vivida, precisamente de onde parou, ou a partir do último parágrafo registrado na última página, lida ou escrita.
Saem prejudicados ambos interlocutores; autor e a obra; a trama e o ator; a obra e a plateia.
Inegavelmente, caso a interpretação resulte em uma conclusão diferente da pretendida (planejada), os prejuízos dos exemplos figurados terão um impacto muito maior na esfera dos autores daquela obra, que certamente se sentirão ofendidos, incompreendidos em sua narrativa, que, por mais que tenham sido adotados os cuidados e atenção, investidos em detalhes e minúcias, receberão uma crítica (consequência) injusta, em desacordo e em distorção com a realidade (ou ficção) narrada; prejudicada, estranha a seu registro integral e inalterado, tão somente em razão de “páginas não lidas” e “cenas não vistas ou puladas”, de um “pause no lugar errado”, de um “marcador de páginas mal colocado”, tendo sido impedido de deixar dito o que de fato deveria ter sido ouvido.
Metaforizando a metáfora, imagine-se escrevendo a obra literária de sua vida, no capricho de uma caligrafia a seu contento, sentindo-se no domínio da liberdade do ato de escrever, de acordo com suas opções. De forma abrupta, algo abalroa-se à sua caneta, causando um borrão, derramando todo o café da xícara que estava logo ao lado e, consequentemente, causando uma interrupção forçada de sua narrativa.
Adaptando-se o exemplo à modernidade das inovações tecnológicas (que por mais avançada que se considere, encontra-se de joelhos diante de um vírus), seria o mesmo que perder o arquivo do editor de texto em razão do encerramento inesperado do software, que, por mais avançado e inovador seja ele considerado, acaba falhando no salvamento automático de recuperação do arquivo.
Em ambos os exemplos, resta apenas aceitar as consequências impostas e, apenas após a eventual recomposição de humor, abertura de novo arquivo, ou obtenção de novo papel e caneta, novos instrumentos, meios para continuar, socorrer-se da própria memória para que seja reprisado todo o conteúdo “perdido”. Posso até ouvir protestos de alguns leitores, agora mesmo, de sorte como “se escreveu/viveu/construiu uma vez, poderá fazer de novo”; e, de forma bastante genérica, pode-se até concordar com o prezado (a) leitor (a), mas fato é, que, ainda assim, haverá como inevitável o processo de reinício da escrita e reconstrução. Será necessário reviver e transcender todas as etapas, antes superadas, para que ao menos torne-se possível o retorno ao mesmo estado de coisas (situação), ou o mais próximo disso, status quo ante, bem como haverá a subordinação (relação de dependência) ao investimento do tempo que será demandado, condição que só será possível com retorno da normalidade que criou o ambiente propício para o resultado anteriormente vigente; será preciso cessarem-se as interrupções; retirar-se o pause, retomando-se o play, assegurando-se a integridade de um replay de duração proporcional ao tempo em que persistir o pause, causa que atinge não somente “quem foi ao toalete”, mas todos os envolvidos naquele contexto.
Quanto maior o pause, em igual medida deverá ser fixada a duração do replay.
Dentro do contexto trazido, não seria justo ou razoável exigir uma retomada imediata e instantânea, tanto por parte de quem lê, assiste, vive, ou escreve, sem que antes lhe fosse garantido o reestabelecimento das mesmas condições, viabilizando-se uma retomada concreta a fim de reproduzir, com a maior proximidade possível, o retorno aos momentos que precederam a interrupção da normalidade.
Nos casos em que se verifique a impossibilidade (inviabilidade) concreta para tanto, esforços não deverão ser medidos para que se aproxime ao máximo do estado anterior – máxima mitigação dos danos.
A título de exemplo, não seria razoável observar alguém que, em dado momento, estivesse caminhando normalmente, mas, no meio do percurso, sofresse uma torsão severa em um de seus pés, e que se esperasse daquela pessoa uma pronta retomada da caminhada – em igual marcha e destreza anteriores ao incidente.
Por mais heroico e louvável que isso possa nos parecer, ainda que tal fato excepcionalmente venha a se produzir na realidade, em sua eventualidade, poder-se-ia atribuir-lhe a notabilidade e a proeza da conduta, mas jamais tomá-lo como padrão de comportamento a ser seguido, tampouco exigido, o que consistiria na imposição de uma conduta que ignorasse a individualidade da dor e das consequências suportadas, bem como uma submissão moralmente forçada a riscos que poderiam ser evitados.
Ainda que se admitisse a heroica (percepção de quem apenas assiste, mas não vive), ou estúpida (percepção de quem apenas vivencia, mas não assiste), exigência do pronto retorno ao ato de andar, há de se reconhecer a imposição do dever moral, gerando a obrigação em respeitar, em justa e razoável deferente compreensão (empatia) da opção feita por quem vivencia fato similar ao exemplificado (consequência por causa imprevisível ou involuntária), seja por meio da redução da velocidade e intensidade dos passos da caminhada, esforçando-se para continuar se locomovendo em direção a seu destino prévio, seja fazendo bom uso da eventual contribuição oferecida por uma terceira pessoa, concedendo-lhe o apoio físico necessário até o abrigo mais próximo, evitando agravar a sua lesão; seja ao valer-se dos recursos que estiverem disponíveis no momento, elegendo o que lhe parecer mais adequado no atendimento de suas necessidades, razão por que são próprias (exclusivas) a quem as vivencia, não havendo substituto legítimo para tomada de decisão dentro de sua esfera individual, sendo certo que qualquer uma dentre as opções razoáveis disponíveis, por assim dizer, aceitáveis na medida em que compreensíveis e justificáveis, portanto, legítimas.
Não exclui-se a legitimidade da opção adotada pela figura do herói, assim considerado por aqueles que o aplaudiriam: uma plateia que apenas assiste, mas não vive; seja pela crença de não estar sujeita ao risco de vivenciar o mesmo infortúnio vivido por seu herói postiço, seja por acreditar ser dotado do mesmo potencial; seja para alimentar seu faminto ego; seja para extrair à fórceps uma justificativa que reafirme seus próprios interesses, acreditando, ingenuamente, não estar eventualmente sujeito às condições adversas sofridas pelo aplaudido, mas caso isto aconteça, mudará imediatamente o seu discurso.
Por outro lado, o herói poderá ser visto como tolo ou idiota por aqueles não o aplaudiriam: uma plateia que assiste, mas também viveu; seja por ter sofrido a mesma dor; seja por ter suportado suas consequências, concluindo terem sido desnecessárias, onerosas, trazendo mais prejuízos do que benefícios; seja pela inutilidade que atribuem ao ato de sofrer deliberadamente (de propósito), masoquismo remunerado por aplausos; seja por acreditar que o silêncio que sucederá o fim dos aplausos marcará, de forma cruel, o breve período de glória gozado por um idiota que pensava ser herói, que agora convive com a certeza da inexistência de qualquer ato heroico, nem mesmo em favor de sua própria dor, concluindo que o “mérito” em torturar a si mesmo não traria qualquer benefício, mesmo que do ato “heroico” não restassem sequelas permanentes pelo agravamento das lesões ao forçar a caminhada (em igual ritmo e velocidade), seria inevitável a imposição de um período muito mais longo do que o habitual para a recuperação da torsão sofrida em seus pés. Contudo, não há como negar a natureza humana que também conduziria esta última plateia a ceder aos efeitos sedutores da hipocrisia, quando impulsionada por interesses próprios ou de seus semelhantes (com base em toda sorte de critérios como laços de família, de classe, de credo, de opinião, de gênero, time de futebol, de preferências similares das mais variadas), ou seja, com qualquer grupo, classe ou categoria, “tipos” de pessoa que possuam elementos de auto identificação capazes de influenciar na aplicação concreta daquilo que acredita.
Há, no Brasil, hemisférios políticos reciprocamente incoerentes com os ideais que declaradamente se apropriam, havendo a presença de uma parcela que se intitula “centro”, com clara pretensão em ostentar equilíbrio, extraindo-se dela o oposto: atrapalhada, tendenciosa e sem personalidade representativa. Tendo em vista a inexistência de qualquer pretensão de análise do quadro político brasileiro, neste momento, é o que cabe pigmentar sobre o tema.
Feita a introdução dos fundamentos lógicos e filosóficos, que serão utilizados para justificar o nosso ponto de vista sobre o tema abordado, passo às consequências sociais da pandemia e das posturas que acreditamos constituir-se em uma incontestável e necessária adoção de medidas com vistas a assegurar, de forma efetiva, a prevenção contra o caos que se aproxima, o que, em determinadas sociedades, acredita-se, poderá fornecer as coordenadas exatas, com passagem só de ida (one-way-ticket), rumo à ruína social.
As consequências econômicas trazidas pela pandemia da COVID-19 sempre foram previsíveis, e, por isso, conhecidas e experimentadas por todos e a partir das mais variadas perspectivas.
Nesse sentido, apontar quais setores econômicos foram os menos afetados pela crise tornou-se uma tarefa facilmente executada por pessoas com qualquer, ou nenhum, grau de instrução: os serviços e bens de consumo tidos como essenciais à subsistência humana – alimentação (mercadorias, fornecimento de gás e energia elétrica), medicamentos, cuidados especiais (serviços médicos, hospitalares, produtos e serviços destinados ao cuidado de população vulnerável – crianças, idosos, enfermos) e de higiene (mercadorias, fornecimento de gás ou energia elétrica). Tudo isso nos conduz a passar a enxergar fatos muitas vezes não reparados na vida cotidiana, mas que hoje revelam o tamanho de sua relevância na consciência de uma parcela da sociedade, que, até então, esteve habituada a ter como certo o acesso a bens e serviços que passam a se tornar vulneráveis, a exemplo do acesso a saneamento básico, abastecimento suficiente e regular de alimentos, fornecimento de energia elétrica e gás natural. Com efeito, essa percepção evidencia nossa dependência a essas necessidades básicas, remetendo aqueles que as banalizavam à uma profunda reflexão, alguns apenas pelo temor causado pela iminência de perdê-las, outros, um pouco mais sensíveis, começam a flertar com o sentimento de empatia por aqueles que, mesmo antes da pandemia, já conviviam com a sensação de medo só agora experimentada, ou que passaram a totalidade de suas vidas tendo que apenas aceitar e conviver com a imposição das consequências de sua falta – invisíveis aos olhos da sociedade e do Estado.
Para melhor compreender os riscos iminentes e catastróficos que poderão materializar-se, em alta escala, não é preciso muito esforço: 32,1% da população brasileira, dados até 2017[1], e em 2020, mesmo antes da pandemia, o percentual subiu para 33,6%[2], é composta por inquilinos, pessoas que dependem da disponibilização de imóvel alugado para sua moradia, e/ou de sua família, pessoas que potencialmente estiveram sob o terror de atrair para si a condição de morador de rua, risco que havia sido mitigado, até então, em razão da iniciativa legislativa do Projeto de Lei 1179/2020, que havia aprovado os Artigos 9º e 10º, §§ 2º e 3º, que suspendiam a concessão de ordem de despejo liminar até o dia 30 de outubro de 2020. Todavia, após a conversão do PL 1179/2020 na Lei n. 14.010 de 10 de junho de 2020, o terror de se ver a si e sua família morando nas ruas volta a assolar a realidade de 32.1% da população brasileira em razão do veto presidencial, especialmente aos dispositivos que suspendiam ordens liminares de despejo durante a pandemia. Lamentavelmente, com seu veto, o Presidente Jair Messias Bolsonaro expõe milhões de brasileiros que moram em suas famílias em 13,3 milhões de imóveis alugados[3], e considerando que, de acordo com a tabela 4958, do IBGE, o indicador da média de brasileiros que residem no mesmo imóvel (urbano) aponta a média de 3 habitantes, ou seja, 39,9 milhões de eleitores expostos ao risco de se tornarem moradores de rua, com suas famílias, que deverão torcer pela derrubada do veto presidencial pelo Congresso.
Importante dizer que distorções estatísticas são recorrentemente utilizadas no Brasil, seja por omissão ou ação. Tal conclusão é amparada e extraída dos números logo acima exibidos e ostentados nas fontes citadas, bastando notar a forma como são abordados e exibidos os números, distorcidos e enunciados de forma obscura. Perceba.
A maior parte dos brasileiros mora principalmente em casas e em imóveis próprios, já pagos, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) Contínua 2019, divulgada hoje (6) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As casas representam 85,6%, o equivalente a 62 milhões de moradias no país. A maior parte dos lares é própria e quitada, o equivalente a 66,4%, ou 48,1 milhões.
(FONTE: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-05/maioria-dos-brasileiros-mora-em-casaee-dona-do-imovel-mostra-ibge)
A forma com que a informação é exibida se vale de recursos de redação para atrair audiência em cliques, e, ao mesmo tempo, se proteger juridicamente, já que o título que encabeça a notícia – matéria – diz “Maioria dos brasileiros mora em casa e é dona do imóvel, mostra IBGE”, em fonte consideravelmente maior, mas, logo abaixo, prevenindo-se de consequências jurídicas, exibe com fonte 2/3 menor em tamanho, “Casas representam 85,6%, o equivalente a 62 milhões de moradias”, visando confundir o leitor desatento – o que é diuturnamente visto nos mais variados veículos de comunicação. Todavia, o levantamento se refere à quantidade de imóveis, e não de habitantes, informação que pode ser encontrada no próprio texto da matéria, desde que seja lido em sua integralidade, de forma atenciosa e analítica, o que não acontece. Prova disso é que a maioria das pessoas lê apenas o título – manchetes ou chamadas – das notícias, e, no máximo, as primeiras linhas. Tal fato é precisamente comprovado por meio de ferramentas que auxiliam na atividade publicitária, chamadas de analytics[4], de fácil comprovação e precisão cirúrgica em razão da predominância atual dos formatos digitais, de onde se extra que apenas 20% dos seres humanos sequer rolam a página dos navegadores de internet (computadores e smartphones) para revelar o restante do conteúdo (dados do Chartbeat e da Google), registrando a média de tempo de permanência em cada página, por 80% da população da internet, pelo período máximo de 13 segundos. Levando em conta o tamanho da fonte do título, imagem da matéria e espaços reservados para banners publicitários, conclui-se, sem sombra de dúvidas, que 80% sequer chega ao primeiro parágrafo. Lamentavelmente, o atual comportamento das linhas editoriais da mídia brasileira demonstra que os veículos de comunicação estão mais interessados em seus próprios interesses políticos e econômicos, finalidade que persegue, de forma ardil, dando contornos tendenciosos às informações divulgadas, tanto para atrair audiência dos usuários e inflar suas receitas publicitárias, quanto para disseminar a conotação que melhor atenda seus interesses e de seus semelhantes.
Retomando os possíveis efeitos e catastróficas consequências do veto presidencial, um olhar detido na justificativa do veto é capaz de extrair apenas duas conclusões, confira-se:
“Art. 9º Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020.
Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo aplica-se apenas às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020.”
Razões do veto
“A propositura legislativa, ao vedar a concessão de liminar nas ações de despejo, contraria o interesse público por suspender um dos instrumentos de coerção ao pagamento das obrigações pactuadas na avença de locação (o despejo), por um prazo substancialmente longo, dando-se, portanto, proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor, além de promover o incentivo ao inadimplemento e em desconsideração da realidade de diversos locadores que dependem do recebimento de alugueis como forma complementar ou, até mesmo, exclusiva de renda para o sustento próprio.”
(FONTE: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-331.htm)
Não se sabe se o Presidente cometeu tais infelicidades por estupidez (ignorância ou má instrução), dando um “tiro em seu próprio pé”, ou se age com clara intenção de prejudicar a maioria dos eleitores brasileiros, inclusive contra a maior parte de seu próprio eleitorado, haja vista que o total de votos computados em seu favor foi de 57.797.847, cerca de 58 milhões de eleitores, enquanto, conforme demonstrado acima, 39,9 milhões dos eleitores são inquilinos, que moram, sozinhos ou com suas famílias, em imóveis alugados, cerca de 40 milhões, o que representa 69,03% do total de seus próprios eleitores. Quando consideramos o número total de votos válidos no 1º turno das eleições presidenciais de 2018, ou seja, 48.277.010 milhões, o cenário se agrava, e vemos que o Presidente da República Jair Messias Bolsonaro prejudica, diretamente, o equivalente próximo a 84% dos eleitores que o asseguraram o 2º turno, número estimado dos brasileiros que dependem de imóvel alugado para morar.
Assim, é no mínimo absurdo dizer, nas razões do veto, que o dispositivo contraria o interesse público, e revela despicienda preferência (ingênua ou maléfica) pelos mencionados “diversos locadores que dependem do recebimento de aluguéis como forma complementar, ou, até mesmo, exclusiva de renda para o sustento próprio”. Importante voltar a atenção para sua “coragem” ao fazer expressa menção ao caráter complementar da renda dos locadores a partir do recebimento de alugueres. Em primeiro lugar, ao sair em defesa dos locadores, demonstra afeição a uma minoria que não seria capaz, em número, de elegê-lo presidente da república, o que parece ser fruto de imaturidade do chefe de estado ao demonstrar sua preferência por uma categoria privada que possui semelhanças em características com suas condições sociais (ser proprietário de mais de um imóvel – investimento imobiliário), razão por que sua opção chega a dar indícios de ter sido fruto da impulsividade característica do presidente, não atentando-se ao fato de que os locadores por ele protegidos representam menos de 16% do total de votos que o permitiu participar do segundo turno das eleições, e chegando a pouco mais de 29% do total de votos que o fez Presidente da República. Em segundo lugar, tem-se como totalmente desvirtuado de seu propósito – ontológico – a justificativa em proteção ao interesse público, sendo certo que a parcela preterida e afetada constitui maioria até mesmo entre seus próprios eleitores, sendo ainda mais certo que a proteção de minorias só possui abrigo constitucional quando verificada a sua hipossuficiência, o que sequer seria razoável levando ao considerar a posição social e financeira em que se encontram os particulares que possuem imóvel excedente para destinar ao investimento imobiliário, o que por certo não constitui desvantagem apta a qualificar a sua proteção constitucional como minoria.
Para piorar ainda mais, no cálculo dos números acima exibidos e comprovados por meio de fontes oficiais do governo, não foi considerado o número de imóveis cedidos ou emprestados, 8,9% dos imóveis brasileiros, totalizando 6,4 milhões de imóveis que reflete um total aproximado de 19,2 milhões de eleitores ao considerar a média de 3 eleitores por imóvel em território urbano nacional [6] . Considerando as pessoas que moram “de favor”, dotadas de presunção lógica e racional de dependência e vulnerabilidade, se contabilizadas junto ao total de inquilinos (39,9 milhões), soma-se 59,1 milhões de eleitores potenciais que não possuem um imóvel garantido para residir, superando o total dos eleitores de Jair Bolsonaro no primeiro turno (49.277.010 votos), ou seja, 119,95% em relação ao total de votos válidos que garantiram-no o segundo turno – eleitores que não dispõem de imóvel próprio para morar – , e 85,25% se comparado com a contabilização dos votos que outorgaram-lhe o mandato presidencial, e agora deixados de lado. Ressalta-se que sequer foram considerados, na contagem, os números correspondentes à população de área rural, votos brancos, nulos ou pendentes, ou seja, total em abstenções e votos não apurados, o que agravaria ainda mais o quadro apresentado, o que seria, de certa forma, inconcluso.
Todavia, destaca-se que sequer foi considerada a eventual diferença na proporção entre os imóveis próprios localizados em regiões demográficas de baixa renda (pobres e miseráveis) e de alta e média renda (ricos e classe média), o que desfavorecia ainda mais os números de Bolsonaro, esvaziando completamente suas razões do veto, tendo em vista quantidade elevada de imóveis situados em favelas e bairros de baixa renda, proprietários que, indubitavelmente, não têm a sorte de possuir imóvel “extra” a fim de constituir a “forma complementar” de renda defendida por Bolsonaro, o que não contribuiria nem um pouco com o absurdo argumento consubstanciado em suposto interesse público, em total inobservância ao princípio da moralidade, orientador da administração pública, que, diga-se de passagem, tem como finalidade principal a garantia dos direitos fundamentais, nada mais, valendo-se da atividade econômica apenas para angariar recursos escassos (dinheiro – latu senso), função estritamente instrumental da atividade financeira, que não constitui fim em si mesma, tendo em vista a sua leitura teleológica que vincula o Estado Financeiro, sendo-lhe vedado o acúmulo de riquezas, devendo destinar todos os recursos adquiridos, de forma detalhada, sujeitando-se ao detalhamento orçamento anual – princípio básico norteador de Direito Econômico.[5]
Aproximando-se da conclusão do tema proposto, o que nos remete ao início deste artigo, não se pretende, com isso, afastar os direitos obrigacionais firmados entre particulares, mas reconhecer que a imagem figurada do pause ou páginas puladas, utilizada nos parágrafos introdutórios, foi imposta a todos que participam deste filme, ou livro, intitulado COVID-19 – A Pandemia, e, de acordo com período que será marcado entre a interrupção do curso normal da vida comum e o efetivo fim da calamidade pública mundial, será inevitável admitir tempo de proporcional duração ao replay, que será de direito, para permitir a recapitulação da trama, de modo a tornar possível recuperar, ao menos em parte, o que estava escrito, o que foi assistido, o que estava sendo vivido, nas condições, ainda que na exigência de sua comprovação, que estavam sendo vividas no estado de coisas anterior (status quo ante) ao da ruptura com a normalidade.
Assim, nasce, em nossa modesta opinião, um postulado necessário: o direito ao tempo necessário para que seja possível o recomeço a partir do estado mais próximo possível daquele em que ocorreu a ruptura com a normalidade – o pause compulsório. Não poderão credores contar com a liquidação de obrigações tão logo seja declarado o fim das restrições impostas pela pandemia. Após o seu término, será necessário assegurar proporcional espaço de tempo para que se reconstrua o que foi destruído.
A nosso juízo, não se trata de uma proposta de criação de um novo instituto jurídico, independente, mas de uma reafirmação necessária a partir de uma leitura contextualizada do direito à vida. O que se extrai do vasto acervo de bens jurídicos da teoria geral do direito, é o fato inegável de que cada um deles possui sua forma própria de mensuração, a exemplo do patrimônio, que é mensurado por meio do acúmulo de recursos financeiros escassos disponíveis, não excetuando-se a vida, não sendo possível atribuí-la valor correspondente em dinheiro, o que consistiria em uma valoração subjetiva impossível de ser realizada com justiça, mas pode ter a sua duração objetivamente mensurada a partir do tempo. Tomar o tempo de alguém, não sendo-lhe assegura esforçada compensação, seria o mesmo que matar sem causar o óbito, e não há forma que mais se aproxime proporcionalmente de uma justa compensação do que aquela que não medirá esforços para tentar preencher, com tempo, a cavidade deixada pelo lapso temporal subtraído.
Diante do contexto atual de pandemia, as iniciativas do poder público em mitigar os danos que estão sendo causados, seja por meio do auxílio emergencial ou através de outras medidas, são, inegavelmente, louváveis, porém insuficientes caso não seja materialmente assegurado a todos os afetados a compensação, em tempo (prazo), de forma proporcional, para que pelo menos busque-se oportunizar à população uma tentativa concreta de recuperação, em que se permita reescrever, ao máximo, um conteúdo que se aproxime às histórias individuais pigmentadas às páginas da vida de cada um, em tutela do direito à vida, que se materializa no direito ao tempo necessário para o recomeço de direito, compensando-se a morte temporária imposta ao titular de direito por fatos que não deu causa, estes, consequências de uma negligência global e generalizada, que, mesmo ciente da existência do vírus, contando com a antecedência e ostentação de avanços científicos, priorizou escolhas erradas, e fica de joelhos diante de um inimigo invisível, falhando na função de proteção de uma sociedade que paga por isso abrindo mão de parcela de suas liberdades, mínimas o suficientes para outorgar ao poder público o monopólio do uso da força, o que deve ser retribuído pela garantia da paz social, compromisso que desonra, em nítido descumprimento de cláusulas do contrato social hipotético que dá origem à figura estatal – razões únicas e exclusivas aptas a justificar sua existência e a manutenção legítima de suas atribuições.