Sumário: Considerações iniciais; 1. Elementos subjetivos; 1.1. De quem deve adimplir; 1.2. A quem se deve adimplir; Referências.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Em continuidade ao que desenvolvido na primeira parte, o adimplemento ficou definido como ato-fato jurídico desenvolvido pelo devedor que compreende a execução da prestação e cujas consequências são a extinção da relação obrigacional, a satisfação do crédito e a liberação do devedor[1].
Ocorre que alguns elementos normativos concorrem para que as consequências da realização da prestação irradiem. Doutrinariamente[2], a classificação feita leva o adjetivo subjetivos, ligados aos envolvidos da relação, e objetivos, ligados a questões não ligadas aos envolvidos.
Tendo em vista que o ato-fato não passa pelo plano da validade, eis que a vontade do exercente não é central no suporte fáctico, não se usará a classificação de requisitos, nome dado por Nelson Rosenvald, Cristiano Chaves de Faria e Felipe Braga Netto[3], e sim elementos subjetivos e objetivos do adimplemento, o que se amolda com a abordagem terminológica de Flávio Tartuce[4].
É justamente sobre esses contornos do cumprimento que as linhas a seguir se debruçarão, particularmente sobre os chamados elementos subjetivos do adimplemento.
1. ELEMENTOS SUBJETIVOS
A noção geral sobre os elementos subjetivos envolve disciplina positivada no Código Civil (arts. 304 a 312) e diz respeito de quem deve e a quem se deve adimplir, figuras que não se confundem com credor e devedor, posto que a teoria geral do Direito permite que titular da posição jurídica se distinga de quem a exerce[5].
1.1. QUEM DEVE ADIMPLIR
Regra geral, quem deve adimplir é o devedor, isto é, o titular da posição jurídica passiva (per si ou por representante) é o legitimado para realização da prestação. O nome dado àquele que realiza a prestação é solvens. Cabe destacar que as dívidas personalíssimas devem ser cumpridas tão somente pelo devedor, enquanto as não-personalíssimas permitem que sujeitos alheios à relação obrigacional possam, independentemente da vontade do devedor, adimplir[6].
Com relação à figura do terceiro, esta se divide em duas espécies. A primeira espécie é a dos terceiros interessados, que são aqueles que são direta ou indiretamente afetados pela relação obrigacional[7]. No caso, existe a satisfação do interesse creditício, todavia não ocorre a liberação do devedor, posto que o terceiro que adimpliu sucede (sub-roga) na posição creditícia. O que há mesmo é a extinção da dívida frente ao credor originário. São exemplos de interessados na satisfação do crédito o fiador, o adquirente de imóvel hipotecado, o promitente-comprador em relação a imóvel sobre o qual recai execução forçada.
O interesse opera, de acordo com o CCB/2002, a chamada sub-rogação legal em favor do terceiro interessado que cumpre toda ou parte de dívida pela qual era ou podia ser obrigado (art. 346, III), ou a sub-rogação convencional se terceira pessoa empresta ao devedor a quantia precisa para solver a dívida e fica estabelecida a sub-rogação pelo mutuante do credor satisfeito (art. 347, II). A primeira espécie se espraia para diversas hipóteses de prestações não-personalíssimas (dar, fazer e não fazer), enquanto a segunda espécie sub-rogatória alinha-se com as dívidas de dar, tanto as pecuniárias quanto as não-pecuniárias, desde que, evidentemente, a coisa emprestada seja fungível.
De outro lado, há expressas previsões do CCB/2002 sobre o terceiro não interessado que adimple a dívida (i) em nome e à conta do devedor, salvo oposição deste (art. 304, § ú); ou (ii) em seu próprio nome e, por isso, tem direito a ser reembolsado, mas não se sub-roga nos direitos do credor (art. 305).
Dos enunciados acima é que se extrai a segunda espécie de terceiro, o não interessado, que consiste naquele que não será afetado pela relação obrigacional, particularmente pelos efeitos do inadimplemento. Como pontuam F. C. Pontes de Miranda[8], Flávio Tartuce[9] e Caio Mário da Silva Pereira[10], a ausência de interesse jurídico não implica na falta de interesse moral ou afetivo do terceiro para com o devedor.
Com relação aos dispositivos legais mencionados irradia uma divergência doutrinária, posto que o terceiro não interessado pode adimplir a dívida em nome próprio ou em nome do devedor.
Com relação ao adimplemento em nome próprio, o entendimento é de que o solvens não parte tem o direito a ser reembolsado sem que isso resulte em sub-rogação, exceto se houver possibilidade por meio da sub-rogação convencional (art. 347, II CCB/2002) ou no caso de cumprir com dívida de devedor fiduciante (art. 1.368 CCB/2002)[11].
Sobre o cumprimento em nome do devedor, parcela doutrinária entende que não há direito ao reembolso, porquanto opera-se uma doação[12], enquanto outra corrente entende que ocorre sub-rogação e pode o terceiro se valer dos meios legais para satisfazer o crédito (p. ex., a consignação em adimplemento)[13].
Adere-se à crítica desenvolvida pela segunda corrente à primeira, a qual tem uma contradição interna de parcela dos que entendem haver doação: adimplemento é ato-fato, não negócio jurídico e, portanto, não há vontade compondo o suporte fáctico normativo que permita haver uma doação sem que a vontade seja cerne. Ocorre que a segunda corrente, a partir das lições de F. C. Pontes de Miranda[14], equipara as espécies de terceiros, o que não ocorre em razão do fato de que ao terceiro é permitido – em razão da relação estabelecida com o devedor – reclamar o que lhe toca, como reembolso.
Com relação a essa última subcategoria (= terceiro não interessado que adimple em nome do devedor) há a questão de que o devedor pode se opor ao cumprimento, no trecho que consta ‘’se o fizer em nome e à conta do devedor, salvo oposição deste’’ (art. 304, § ú CCB/2002). Essa oposição do devedor não impede que o credor aceite o cumprimento, no entanto a negativa creditícia inviabiliza tanto a mora do credor quanto a existência de posições jurídicas que permitam ao terceiro exonerar o devedor[15].
O CCB/2002 inovou em relação ao seu antecessor ao determinar que pagamento feito por terceiro, com desconhecimento ou oposição do devedor, não obriga a reembolsar aquele que pagou, se o devedor tinha meios para ilidir a ação (art. 306). Tal previsão determina que o terceiro que cumpre sob ignorância do devedor não será reembolsado, posto que o titular da posição passiva tinha meios para evitar o exercício da posição ativa pelo credor, p. ex., a compensação, exceção de contrato não cumprido e a exceção do adimplemento.
A partir do que expõe Paulo Lôbo[16], a inexistência de justificativa para o cumprimento pelo terceiro faz nascer na esfera jurídica deste o direito à repetição do indébito contra o credor, que tem o dever de restituir o que recebido indevidamente, para os casos de prestações pecuniárias, ou em equivalente indenizatório, para as prestações não-pecuniárias.
Por último, uma exigência contida no art. 307 CCB/2002 remete ao brocardo de que ninguém pode transmitir direitos a outrem mais do que aqueles que possui (nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet). O adimplemento que importa em transmissão do direito de propriedade tem como pressuposto justamente que esse direito esteja na esfera do devedor e possa ser transmitida (= legitimação) para a esfera de quem recebe. Se não houver a pertinência jurídica entre sujeito e coisa, então o sistema jurídico reputa como ineficaz o cumprimento.
Há uma exceção à ineficácia acima e que consagra o princípio da boa-fé na sua feição subjetiva: se o adimplemento envolver coisa fungível, não se poderá mais reclamar do credor de boa-fé que a recebeu e consumiu, ainda que o solvens não tivesse o direito de aliená-la (art. 307, § ú CCB/2002).
1.2. A QUEM SE DEVE ADIMPLIR
Como receptor do cumprimento está a figura do accipiens, que, regra geral, confunde-se com o credor, mas nem sempre o é, eis que a realização da prestação pode se dar perante terceiro.
De acordo com Paulo Lôbo[17] e F. C. Pontes de Miranda[18], o legitimado passivo do adimplemento se distingue do credor nos casos que (i) o representante do credor é autorizado a receber; (ii) uma pessoa é autorizada pelo credor a receber; (iii) o anterior credor recebe se não houve ciência da cessão de crédito ao devedor; (iv) o credor é putativo ou aparente, p. ex., na hipótese de herdeiro presumido; e (v) o sujeito tem direito próprio em relação ao adimplemento, p. ex., o usufrutuário de crédito.
Apesar da locução valer ter de ser interpretada como eficaz, o CCB/2002 considerou as hipóteses acima ao determinar que deve ser feito ao credor ou a quem de direito o represente, sob pena de só valer depois de por ele ratificado, ou tanto quanto reverter em seu proveito (art. 308).
Como enunciado, são aqueles que podem receber a realização da prestação o próprio credor ou alguém que o represente. Tal representação está em conformidade com os arts. 115 e seguintes do CCB/2002, ou seja, podem receber os representantes legais, judiciais ou negociais do credor. Este é titular da posição jurídica subjetiva ativa, enquanto os representantes – se não atuantes em interesse próprio – são legitimados.
Como forma de sagrar a boa-fé subjetiva, há enunciado normativo de que cumprimento feito de boa-fé ao credor putativo é válido (rectius, eficaz), ainda provado depois que não era credor (art. 309 CCB/2002). Credor putativo para o teor legal em questão é aquele que aparenta a somatória de duas características jurídicas, quais sejam, a de credor e accipens[19].
Algo que ingressa na qualificação jurídica do credor é a sua capacidade, posto que o CCB/2002 determina como ineficaz o cumprimento cientemente feito ao credor incapaz de quitar, se o devedor não provar que em benefício dele efetivamente reverteu (art. 310). No caso, por observância à vedação ao enriquecimento sem causa, o adimplemento será eficaz nos limites daquilo que o devedor conseguir provar como benefício revertido ao credor[20].
Algo que importa é que a capacidade relativa ou absoluta do titular do crédito se liga não à realização da prestação em si, e sim ao poder dela decorrente, qual seja, o de conferir a quitação, que é a prova por meio da qual se demonstra que determinada prestação foi atendida[21].
Uma presunção legal relativa é a de que está autorizado a receber o pagamento o portador da quitação (art. 311 CCB/2002). Aquele que tem em sua posse a quitação – um documento escrito, público ou particular e no qual constam a dívida, sua correspondência pecuniária, tempo, lugar, nome do devedor e assinatura do credor ou de quem tenha poder para quitar (art. 320 CCB/2002) – é presumidamente apto a receber a concretização prestacional.
Por último ponto, para as dívidas pecuniárias, o CCB/2002 traz enunciado que imputa como ineficaz o pagamento se o devedor tomou ciência de penhora sobre o crédito ou da impugnação feita por terceiros. Argumentam Paulo Lôbo[22] e Flávio Tartuce[23] que a regra do art. 312 do diploma civil brasileiro concretiza o saber popular de que quem paga mal paga duas vezes, isto é, o devedor ciente da indisponibilidade creditícia não será liberado da relação obrigacional e, inclusive, estará sujeito a pagar ao terceiro (credor do credor), ressalvado o direito de regresso em face do credor demandado.
REFERÊNCIAS
FARIA, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil: volume único. 5. ed. Salvador: JusPODIVM, 2020.
GOMES, Orlando. Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
LÔBO, Paulo. Direito Civil: obrigações. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
LUMIA, Giuseppe. Lineamenti di teoria e ideologia del Diritto. Eª ed. Milano. Giuffrè. 1981. pp. 102-123. Tradução, com adaptações e modificações, do Professor Alcides Tomasetti Jr. Versão revista e bastante alterada em abril de 1999.
PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. Algumas linhas sobre o adimplemento (parte I): onde está e o que é. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83598/algumas-linhas-sobre-o-adimplemento-parte-i-onde-esta-e-o-que-e. Acesso em 05 jul. 2020.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: vol. II. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: tomo XXIV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
ROPPO, Vincenzo. Diritto Privato. 5. ed. Torino: Giappichelli, 2012.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e responsabilidade civil. 13. ed. Rio de Janeiro, 2018.
[1] PÁDUA, Felipe Bizinoto Soares de. Algumas linhas sobre o adimplemento (parte I): onde está e o que é. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83598/algumas-linhas-sobre-o-adimplemento-parte-i-onde-esta-e-o-que-e. Acesso em 05 jul. 2020.
[2] FARIA, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil: volume único. 5. ed. Salvador: JusPODIVM, 2020, pp. 562 e ss.; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: vol. II. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, pp. 177 e ss.
[3] Manual de Direito Civil: volume único. 5. Op. Cit.
[4] Direito Civil: Direito das Obrigações e responsabilidade civil. 13. ed. Rio de Janeiro, 2018, pp. 130 e ss.
[5] LUMIA, Giuseppe. Lineamenti di teoria e ideologia del Diritto. Eª ed. Milano. Giuffrè. 1981. Pp. 102-123. Tradução, com adaptações e modificações, do Professor Alcides Tomasetti Jr. Versão revista e bastante alterada em abril de 1999; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: tomo XXIV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 157.
[6] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: tomo XXIV. Op. Cit.; ROPPO, Vincenzo. Diritto Privato. 5. ed. Torino: Giappichelli, 2012, p. 282; LÔBO, Paulo. Direito Civil: obrigações. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 172-173; FARIA, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil: volume único. Op. Cit., p. 562.
[7] LÔBO, Paulo. Direito Civil: obrigações. 3. Op. Cit., p. 173; TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e responsabilidade civil. Op. Cit., p. 130; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: vol. II. Op. Cit., p. 178.
[8] Tratado de Direito Privado: tomo XXIV. Op. Cit., pp. 165 e ss.
[9] Direito Civil: Direito das Obrigações e responsabilidade civil. Op. Cit.
[10] Instituições de Direito Civil: vol. II. Op. Cit.
[11] FARIA, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil: volume único. Op. Cit., p. 564; LÔBO, Paulo. Direito Civil: obrigações. Op. Cit., p. 174.
[12] TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações e responsabilidade civil. Op. Cit., pp. 130-131; FARIA, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil: volume único. Op. Cit.
[13] LÔBO, Paulo. Direito Civil: obrigações. Op. Cit.; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: vol. II. Op. Cit., pp. 178-179.
[14] Tratado de Direito Privado: tomo XXIV. Op. Cit., pp. 167-169.
[15] FARIA, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil: volume único. Op. Cit.; LÔBO, Paulo. Direito Civil: obrigações. Op. Cit.
[16] Direito Civil: obrigações. Op. Cit., p. 175.
[17] Direito Civil: obrigações. Op. Cit., p. 175.
[18] Tratado de Direito Privado: tomo XXIV. Op. Cit., p. 175.
[19] FARIA, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil: volume único. Op. Cit., p. 565; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: vol. II. Op. Cit., p. 184; ROPPO, Vincenzo. Diritto Privato. Op. Cit., p. 283.
[20] LÔBO, Paulo. Direito Civil: obrigações. Op. Cit., p. 176.
[21] FARIA, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil: volume único. 5. ed. Salvador: JusPODIVM, 2020, p. 569.
[22] Direito Civil: obrigações. Op. Cit., p. 177.
[23] Direito Civil: Direito das Obrigações e responsabilidade civil. Op. Cit., p. 135.